Sob o Seu Domínio - Morro
Sob o Seu Domínio - Morro
Por: Alê Santos
Capítulo 1

AVISOS: ESTA OBRA TRATA-SE DE UM DARK ROMANCE, PODE CONTER VIOLÊNCIA DOMÉSTICA (AGRESSÃO FÍSICA E VERBAL), PALAVRAS DE BAIXO CALÃO, USO DE DROGAS LÍCITAS E ILÍCITAS, HOMICÍDIO, SUICÍDIO, CENAS DE SEXO EXPLÍCITO, ENTRE OUTRAS COISAS. LEIA POR SUA CONTA E RISCO.

A OPNIÃO POLÍTICA E RELIGIOSA DA AUTORA NÃO É EXPRESSA NA OBRA. A AUTORA NÃO COMPACTUA, NEM CONCORDA COM NENHUMA DAS AÇÕES ACIMA MENCIONADAS, MENOS AINDA, ESTÁ ROMANTIZANDO RELACIONAMENTO ABUSIVO E AFINS, PORÉM, TRAZ AQUI FATOS REAIS DA VIDA DE MUITAS MULHERES E MORADORES DAS FAVELAS DO BRASIL.

LEMBRE-SE: VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER É CRIME, DENUNCIE! LIGUE 180.

(...)

Malu

— Corre, Malu! Abaixa a porta! — Eloá grita, enquanto sai do banheiro às pressas, fechando o zíper da calça jeans e vindo em minha direção e as outras correm para uma parte segura do lugar, onde não há risco de uma bala perfurar as paredes ou a porta e atingir alguém.

Não conseguimos ouvir nada além do som de tiros do lado de fora do salão de beleza. Meu coração está extremamente acelerado e tenho certeza que as outras mulheres que estão no local, estão tão assustadas quanto eu, o fato disso ser algo habitual não significa que estamos acostumadas a ver bala para tudo que é lado a cada segundo. Ao menos para mim não é normal.

Como não deu tempo para nós duas corrermos, já que ela veio desesperada até mim, nos abaixamos e cobrimos nossas cabeças com os braços.

— Está tudo bem, Malu? — a voz de Eloá me faz sair do transe. Solto a respiração que nem percebi haver prendido.

Ela analisa cada parte do meu corpo, provavelmente verificando se não levei um tiro, já que simplesmente paralisei em frente a porta de enrolar feita de aço, após fechá-la.

— Está, sim, Elô. Não se preocupa.

— Ufa, menina! — vejo seu peito subir e descer rapidamente e ela soltar uma lufada de ar — Você me assustou.

Mesmo com toda a situação, acabo rindo do olhar de desespero dela, seus olhos estão quase saltando.

— Ri não, filha da puta — me xinga, dando um tapa de leve em meu braço, me fazendo rir ainda mais — Tenho idade

pra

ser tua mãe, posso te bater.

— Concordo, mas se tu fosse minha mãe, estaria xingando a si própria. — comento tentando conter a risada.

Ela para e reflete sobre as minhas palavras por um instante.

— Otária! — diz, dando o assunto por encerrado. 

— Parece que o fogo cruzado cessou. — falo, observando que o barulho de tiros está diminuindo e ficando mais longe.

 — Tá todo mundo bem, né? — Eloá pergunta, elevando um pouco seu tom de voz para que todas escutem, já que só ficamos nós duas perto da porta.

Vejo as clientes e as outras funcionárias do salão assentirem, enquanto retornam para onde estamos, mesmo a maioria estando com um semblante assustado. Levanto e espero ter certeza que o tiroteio acabou para poder abrir a porta.

Eloá é a dona do estabelecimento, é uma mulher de fibra, que já passou por maus bocados, mas nunca deixou o sorriso abandonar seu rosto. Deve ter numa faixa de trinta e cinco a quarenta anos, no máximo, não sei a idade dela ao certo, porque sempre que pergunto, ela diz que é antiético perguntar a idade de uma dama, o que posso afirmar é que ela é linda, com um bronzeado na pele que nunca a abandona, os cabelos no meio da cintura, tingidos de loiro e muito bem cuidados, sem esquecer de mencionar o corpo de fazer inveja em qualquer uma. E é exatamente assim desde que nos conhecemos, sempre que andamos juntas, as invejosas aqui do morro Cidade de Deus, a olham atravessado.

(...)

Durante o horário do almoço, enquanto estou sentada e comendo na sala de descanso que a Eloá fez questão de organizar para suas funcionárias, meu celular vibra no bolso do avental que usamos durante o expediente e eu acabo fazendo dele uma farda.

Deixo a marmitex de isopor na mesa de plástico branca e pego o celular, colocando no ouvido assim que vejo o nome da Yasmin.

— Manda. 

— Tá aonde? 

— Tu é meu macho por acaso? — pergunto pela forma como fala comigo e a ouço bufar do outro lado da linha.

— Fala logo, mona. 

— Estou no trabalho, esqueceu?

Apoio o celular entre meu ombro e ouvido e volto a comer, porque daqui a pouco nosso horário de descanso acaba e as clientes da tarde começam a chegar.

— Vai ter baile hoje, vamos comigo, Malu… — pede quase choramingando.

— Está cansada de saber que não vou a esses lugares, não é porque moro na favela que sou obrigada a isso.

— Ah, tomá no cu, Maria Luiza! Toda vez é a mesma ladainha, cara. 

— A gente pode sair, ir a outro lugar, uma sorveteria, uma praça, mas isso aí é pedir demais.

— Às vezes tu parece uma dondoca, sabia?

— Me chame do que quiser, minha resposta continuará sendo a mesma, não adianta insistir ou tentar argumentar.

— Ok, tudo bem. Esteja pronta às sete.

Não a respondo, apenas encerro a ligação. Verdade seja dita: não estou com um pingo de ânimo para sair, após passar um dia inteirinho em pé escovando cabelos, tudo que meu corpo deseja é uma boa noite de sono e mais nada. Contudo, conheço muito bem a Yasmin e sei que se eu não for, ela é capaz de me arrastar até onde quer que seja o lugar onde combinarmos de ir. Não sei que milagre até hoje ela não me forçou a ir aos bailes aqui da favela.

— Sua cliente favorita acaba de chegar, Malu. — Julia, uma das minhas colegas de trabalho, me informa com um leve tom de sarcasmo, me fazendo perceber exatamente de quem se trata.

No mesmo instante, o desânimo me toma com tudo e perco até a fome. Bufo frustrada.

— Ah, quebra essa pra mim, vai. — choramingo, olhando para ela.

— Nem vem, Malu. Sabe como aquela lá é, insuportável.

— Não consigo entender porque ela insiste em ser atendida por mim, já que nunca se agrada do meu trabalho e ainda passa horas falando sobre o macho dela. 

— Dela e de todas, você quer dizer, né? Porque o Pardal não é de uma só, nunca nem assumiu uma fiel.

— Pouco me interessa esse assunto, só queria não ter que ouvi-la, até a voz dela me irrita. 

Julia ri.

— Nem adianta reclamar, termina aí e vai logo atender ela, antes que faça um barraco aqui.

Meneio a cabeça em concordância com a Julia, porque não seria a primeira vez que isso acontece. Essa mulher parece ser perturbada ou algo assim.

Mesmo sem a menor vontade de continuar comendo, termino minha refeição, jogo o marmitex no lixo, escovo meus dentes rapidamente no pequeno banheiro e retorno sem nem poder dar tempo de a comida descer direito. 

— Oi, querida. — a voz enjoada da cabelos de fogo, completamente plastificada, soa em meus ouvidos.

Forço um sorriso para tentar ser o mais cordial possível.

— Oi, Agatha. O que vai ser hoje? — pergunto, gesticulando para que ela venha até a cadeira giratória em frente ao espelho.

— Me surpreenda, quero arrasar no baile hoje. — diz toda sorridente.

Olho de soslaio para minhas colegas, inclusive, a Eloá também, e vejo-as quase se sufocando para não rirem da situação em que me encontro. Até penso em dar uma resposta à Agatha, mas sei que minha chefe não se agradaria disso e como dizem por aí: o cliente sempre tem razão. Por isso, engulo meu orgulho e a vontade de encher a Agatha de porrada ou passar a zero nos cabelos dela e inicio meu trabalho.

Solto os cabelos da ruiva tingida e os desembaraço antes de levá-la ao lavatório. Já no lavatório, envolvo seu pescoço com uma toalha para não molhá-la e, enquanto isso, ela começa seu falatório.

— Amiga, você não sabe da maior, se tudo der certo, o Pardal vai me assumir como fiel. Já até vendo a cara de inveja das inimigas.

Tão iludida… Pelo que sei, o dono do morro tem várias amantes e nunca assumiu nenhuma. Pior mesmo é saber que há tantas mulheres que se prestam a isso, se rebaixam tanto só por ter um patrocinador que banque seus luxos.

À medida que vou lavando seus cabelos e hidratando, vendo um pouco de resíduo da tinta vermelha descer pelo ralo misturada à água, por vezes, meneio a cabeça em concordância ao que ela está dizendo, sem dar a mínima atenção as futilidades que ela fala sempre que vem aqui e tenho que atendê-la.

— O que acha de retocar a cor desse cabelo? Já está desbotado. — sugere assim que senta na cadeira giratória novamente.

— Você retocou semana passada, Agatha. — a respondo, lembrando que é sempre a mesma ladainha.

— Ah, faz esse favorzinho aí, vai. — pede fazendo biquinho, deixando seus lábios carnudos de preenchimento, ainda mais saltados.

Respiro fundo e reviro os olhos internamente, então decido atender ao seu pedido.

(...)

— Mona, você arrasou muito. Fui literalmente do lixo ao luxo. — surpreendo-me com seu comentário após terminar meu trabalho, enquanto ela se admira em frente ao espelho.

Noto que tanto a Eloá, quanto as outras funcionárias estão tão pasmas quanto eu. Essa é a primeira vez, desde que comecei a trabalhar aqui ano passado e passei a atendê-la, que a Agatha se agrada de algo que faço.

— Você gostou? — pergunto franzindo o cenho.

— Demais, mona. Você arrasou dessa vez. — tenho vontade de meter a mão na cara dela por tamanha audácia, porém, engulo meu orgulho sem um gole de água e forço um sorriso.

— É… Obrigada?! — fico até sem saber o que dizer.

— Valeu, mona. A gente se b**e por aí. — diz, se levantando da cadeira e se aproximando do caixa para pagar.

Logo em seguida, ela sai.

— O que rolou aqui, gente? É isso mesmo, produção? Eu não ficando louca, né? — Julia comenta, embasbacada.

— Um dia eu ainda passo a zero naquele cabelo de fogo, juro que passo. 

— Deve ter dado muito, só pode ser isso para estar com todo esse bom humor. Ou deu, ou mamou. — Eloá deduz, nos fazendo cair na gargalhada.

Até mesmo as outras clientes do lugar riem, porque todas conhecem a fama de puta da Agatha.

— Acho que está feliz assim porque, dizendo ela, que o Pardal vai assumi-la como fiel. — lembro desse detalhe e digo, as encarando.

— Essa eu pago pra ver, porque deve ser mais uma das paranoias dessa louca, essa aí é só pente e rala de geral, muito Maria fuzil. — Julia fala.

(...)

Ao fim do dia, o céu já está escuro e sento na poltrona, quando todas as clientes já saíram, movendo o pescoço de um lado para o outro, estalando-o, sentindo-me exausta.

— Nossa! Estou morta com farofa. — o movimento hoje foi daqueles, é sempre assim quando tem baile. Não que eu esteja reclamando.

— Vamos, meninas? — Eloá chama nossa atenção, já com a bolsa no ombro.

Vou até à sala de descanso, tiro o avental e pego minha bolsa, a colocando no ombro, e retorno até as outras. Nos despedimos enquanto a Elô fecha a porta e seguimos cada uma, o seu próprio caminho. 

As ruas estão movimentadas, o comércio já fechando. Passo em frente a uma rodinha de vapores e sinto olhares queimando em cima de mim, mesmo sem querer, acabo desviando meu olhar naquela direção e vejo o Pardal me dar uma secada de cima a baixo, dando uma reparada privilegiada em minha bunda, continuo andando, mas é impossível não me sentir incomodada com isso. 

Ele não esboça nenhum tipo de emoção, nem diz absolutamente nada, mantendo seu olhar de mau, mas bastou isso para que eu sentisse um arrepio na espinha, porém, ignoro e sigo meu rumo. Ao longe, consigo ouvir os assobios e as piadinhas dos capos do Pardal, a meu respeito. Assim que passo pela porta, vejo tudo completamente revirado.

— O que está acontecendo aqui? Mãe? Tá aí? — elevo um pouco meu tom de voz, a fim de que, se ela estiver em casa, possa me escutar.

— Cadê aquela porra? Cadê? — a mulher que costumava ser tão bonita e cheia de vida, aparece na sala, com um semblante nada bom.

Seus olhos estão dilatados e vermelhos pelo uso de drogas, está cada vez mais magra e debilitada devido ao vício.

— O que está fazendo, mãe? 

— Quero a porra do dinheiro. Cadê? Se você escondeu, me fala agora onde

tá! — ela para de revirar tudo e olha para mim com fúria. Não consigo mais enxergar aquele brilho de mãe em seu olhar, quando se direcionava a mim.

Esse vício está cada vez mais acabando com ela.

— Mãe, calma! Respira, por favor! — me aproximo dela, ou melhor, tento — Não sei do que está falando.

— Não sabe o caralho, Luiza! Você escondeu o dinheiro de mim, não é? Me dá aquela porra! — sem pensar, ela avança sobre mim e, quando percebo, estou encostada na parede e minha mãe levanta a mão na direção do meu rosto como se fosse me bater.

— Mãe, por favor, para com isso — sinto o peso das lágrimas em meus olhos — Eu não fiz nada, eu juro. Olha pra você, está fora de si.

— Cala a porra da boca, caralho! — diz após desferir um tapa em meu rosto, fazendo-me virar a cabeça para o lado — Eu não te pedi opinião. — aponta o dedo em riste em minha cara.

Fico horrorizada e, instantaneamente, sinto as lágrimas molharem o meu rosto.

— Se eu descobrir que você escondeu o dinheiro que eu guardei, eu te mato. Ouviu bem? — engulo em seco ao ouvir as palavras saídas de seus lábios.

Ela me solta e sai de casa, batendo a porta atrás de si com força e eu me jogo no sofá com o rosto virado para o assento, me permitindo desabar. O sentimento de culpa por não conseguir ajudar minha mãe, está cada vez mais acabando comigo. Como eu queria que ela voltasse a ser aquela mãe amorosa. Dói demais.

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