Uma pausa merecida

Mesmo bêbado, Gabe era extraordinariamente cuidadoso naquele veículo quando se tratava de levar Dalila aonde quer que fosse, deu para ela o deu capacete e dirigiu apenas com seus óculos escuros, provavelmente porque se preocupava com os gatilhos que uma direção arriscada poderia disparar nela. Desde a morte dos Feigenbaum, Gabriel era um porto seguro para a morena, sendo sempre o primeiro a se preocupar com as suas verdadeiras necessidades, medos e pesares, os meios que usava para lidar com a dor e o que a deixava confortável de verdade. Ele sabia tudo sobre ela e cada detalhe das suas ações era milimetricamente pensada, desde as provocações até os momentos de distanciamento. Ele sempre sabia o que fazer.

Não é que Elias e Jenny não soubessem como cuidar de Dalila, mas eles tinham dificuldades quanto a personalidade dela. Elias, por exemplo, era o tipo que nunca fazia perguntas ou questionava sua amiga porque não queria bater de frente com ela, que já tem personalidade o suficiente por dois. Além de não questionar, fazia qualquer coisa que ela pedisse com 100% de confiança (mesmo que discordasse severamente dela). Ela podia lhe contar qualquer segredo intimo e sabia que ele levaria aquilo para o túmulo, mas se não contasse nada ele ainda estaria ali para apoiá-la. Fiél como um cão.

Jenny era o extremo oposto. Dalila e ela precisaram se afastar durante um período, primeiro porque Jenifer nunca soube como lidar com o luto das pessoas que gostasse, e segundo porque ela era controladora demais e sua personalidade estava prejudicando todo o processo de amadurecimento da sua amiga, que acabou explodindo em algum momento. Enquanto Elias nunca se opunha a Dalila e isso inclinava-a a atitudes mais do que impulsivas, Jenifer queria manter todos os seus amigos (principalmente ela) em uma coleira curta e vivia tomando para si os fardos, decisões e necessidades, mesmo sem ter sido convidada a fazê-lo. Controladora compulsiva.

Nenhum dos dois podiam fazer tão bem a ela como Gabriel fazia. Ele era um equilíbrio perfeito entre a fidelidade e a proteção.

Por isso, por esse respeito e cuidado, mesmo bêbado ele estacionou a moto em segurança no gramado do sitio de seus pais e ofereceu sua mão para que Dalila descesse e enquanto ela tirava o capacete, ele também descia e procurava em seus bolsos o seu celular, o que a morena assistiu com curiosidade, imaginando se ele teria perdido suas chaves no caminho.

— Tudo bem? — Questionou preocupada, segurando o capacete com uma mão.

— Tudo. Um minuto. — A procura continua, ele já olhou todos os bolsos e não achou o que procurava, então Dalila começou a se preocupar.

— Tu perdeu a chave, Gabes? — Ela questionou segurando o riso e ele a encarou atordoado.

— Não, pera... — Concentrado, ele entrega para ela um kit de chaves em um chaveiro do Naruto e continua a procura. Ela arqueia a sobrancelha desconfiada.

— O que ta caçando afinal, Gabriel?

— Aqui, caralho! — Ele grita de repente e ela agarra o braço dele entre risos, fazendo "shiu" para que ele não acordasse a casa inteira.

— O que caralhos tu perdeu, seu sem noção? — Ela sussurrou para força-lo a abaixar seu tom de antes.

— O celular. Aqui essa merda. — Ele deu o celular para ela também, que segurou com dificuldade, porque já tinha nas mãos vários itens.

— Ai meu deus... Virei cabide né? — Resmungou o seguindo para a varanda da sede aonde ele morava.

Ele andava na sua frente, mal conseguia fazer uma linha reta até a porta, isso porque carregava apenas seu capacete. Ela segurou o riso durante todo o percurso, prevendo todas as merdas que daria até chegarem no quarto dele em segurança, não seria a primeira vez, na verdade era quase como um dejavú do dia em que ela dormiu na casa dele aos 15 anos, totalmente alcoolizada, falando alto e rindo freneticamente ao ponto de acordar os pais de Gabriel e, por nervosismo, vomitar no tapete caro da sala. Bons tempos... Lembrava deles com saudosismo, porque naquela época ela ainda tinha seus pais e sua única preocupação real era curtir.

Diante da porta ele finalmente pegou o molho de chaves das mãos de Dalila e ela ligou a lanterna de seu próprio celular para iluminar a fechadura e ajuda-lo a abrir, eles entraram sem tantas dificuldades e ele foi logo acendendo todas as luzes, começou a tirar os sapatos e correu para a cozinha, fazendo barulho demais para quem entrara na casa dos pais em um começo de madrugada. Ela o encarava incrédula, fechou a porta com cuidado e ele se virou, sem entender porque não ouviu a porta batendo.

— O que você ta fazendo, Gabes? — Ela repreendeu num sussurro e ele sorriu de canto.

— Que foi? Ta preocupada de passar vergonha na frente dos meus pais de novo, Coelhinha? — Provocou, apoiando-se em uma peça de cerâmica que Dalila jurou que iria quebrar.

— Sim?!

— Relaxa, meus pais estão em uma assembleia. — Ele finalmente a tranquilizou e ela conseguiu respirar, o vendo longe suficiente daquele vaso.

Tirou suas botas, sobretudo e deixou no cabideiro ao lado da porta junto com a sua lace. Mais tranquila, ela o seguiu até a cozinha aonde ele bebia água como se tivesse saído do deserto, sorriu vendo-o pegar uma garrafa para ela sem parar de entornar a sua própria. Bebeu um pouco de água, olhou ao redor para apreciar um pouco da decoração que misturava rústico e moderno e quando se virou para ele de novo, percebeu que estava sendo encarada.

— O que foi? — Ele pareceu curioso e ela deu de ombros, sem ter o que justificar sobre sua distração.

— Só olhando.

— Sei... Quer alguma coisa? Posso fazer umas pizzas congeladas, não sei...

Ela refletiu um pouco e de fato estava com fome, então assentiu. Enquanto ele mexia em seu congelador para preparar o que havia dito, ela se lembrou de ter o ouvido explicar que seus pais estavam em uma assembleia e por um instante ficou curiosa com o que significava. Seria a igreja? Seria uma convenção de fazendeiros?

— Como assim "assembleia"? —Ele a olhou brevemente, confuso sobre a pergunta feita. Provavelmente nem se lembrava do que disse. — Disse que seus pais estão em uma.

Ele concordou se lembrando do que dissera e respondeu, mesmo concentrado na manipulação do forno elétrico.

— É tipo uma reunião com outras pessoas da mesma posição política que eles, digamos...

— Seus pais vão entrar na política? — Ela estava ainda mais curiosa, não imaginava os pais de Gabriel metidos em algo assim.

— Não! — Ele negou exagerado e risonho, de fato era uma ideia perturbadora. — Definitivamente não, Lila. Tipo... Meio que eles são obrigados a ir nisso aí de 2 em 2 anos, mas é mais pra fazer uma média com... ahm... outros fazendeiros.

Depois da explicação as coisas fizeram sentido para ela, que se sentou no balcão da cozinha para conversarem enquanto esperavam a pizza. A casa de Gabe era um lugar aconchegante e ele, mesmo bêbado, era muito divertido e sociável. A madrugada não poderia ser mais agradável, e de certa forma ela estava grata por não precisar lidar com os pais de seu amigo esperançosos que o filho galinha finalmente estivesse namorando. Sempre pensavam isso.

Comeram, beberam litros e litros de água, riram como dois idiotas e nomearam aquela noite como "O desastre mais saudável de todos", afinal, apesar de terem praticamente fugido da festa de aniversário de um amigo, estavam juntos, hidratando-se, divertindo-se sem drogas ou álcool, o oposto do que faziam todos os outros na festa... Os problemas não podiam atingi-los. Não naquela noite.

Quando estavam cansados de ficar sentados ao redor do balcão na cozinha, Gabriel mostrou o caminho do seu quarto, haviam muitos quartos naquela casa, mas ele pensou que ela ficaria menos intimidada no quarto dele e assim que pôs os pés no cômodo ela entendeu o motivo. Uma das paredes tinha um mural de colagens de fotos dele e seus amigos, incluindo especialmente ela que estava em muitas das fotos, sob a cama ele tinha o filtro dos sonhos que ganhou dela em seu 17° aniversário e um quadro em uma das paredes com uma pintura que fizeram juntos no 5° ano. Ela caminhava de um lado para o outro, encantada, tocava em cada item com um brilho de saudades e emoção. Em muitas daquelas memórias ela ainda tinha os seus pais e tudo era normal.

— Não acredito que guardou tudo isso... — Disse emocionada e ele ficou parado no batente da porta.

— Eu gosto de salvar tudo o que traz boas memórias e por alguma razão, você se enfia em quase 100% delas. — Ele diz com falsa indiferença e ela se vira para ele.

— Bastava dizer que me ama, idiota. — Ela rebate indignada com sua audácia e ele ri.

— É brincadeira, coelhinha! — Exclamou carinhoso e se aproximou dela o bastante para segurar suas mãos e beijar demoradamente as costas de ambas, uma a uma. — E será que não ficou óbvio que te amo?

Ela deveria, mas não enxergou nenhum duplo sentido naquela frase sussurrada e o olhar cheio de paixão que ele direcionava somente a ela, na verdade, Dalila apenas constatou como ele ficava doce bêbado e o abraçou forte, embalando-o em um movimento lento que os mantiveram grudados. Uma chama de esperança se acendeu no coração de Gabriel que a puxou mais para si, mas logo se apagaria.

— Obrigada, Gabes...Por sempre estar comigo quando as coisas parecem querer complicar. — Sussurrou somente para ele pouco antes de se afastar.

O silencio dele olhando os olhos castanhos dela foi como se a reação dela fosse frustrante ou inesperada de alguma forma, mas infelizmente ela também não percebeu.

— Ta tranquilo, Lila. Para isso que amigos servem... Boa noite. — Gabriel disse, num meio sorriso sem graça, antes de abaixar a cabeça, decidido a parar de fazer aquilo.

Rapidamente ele se retirou do quarto, ela achou levemente estranho que tivesse feito isso, mas ignorou qualquer dúvida, se jogou sob a cama de casal coberta de veludo e dormiu.

Dalila nunca quis lidar com a possibilidade de ser de fato desejada por seu melhor amigo. Era difícil convencê-la de se relacionar com outros homens, quem dirá com um que ela vê como seu irmão.

Por volta das 11 da manhã Dalila acordou sorrindo, podia sentir o veludo abaixo de si e perceber como dormiu pesado, não se moveu um milímetro desde que se deitou e a sensação de descanso era um alivio para ela que convivia com a insônia há anos. Respirou fundo antes de se levantar e ir até o banheiro do Gabriel, pensando em só lavar o rosto, mas mudando de ideia assim que viu a ducha aquecida majestosa do amigo, que certamente lhe faria muito bem. Ela tomou banho despreocupadamente, usou o shampoo, sabonete e condicionador do amigo, simulou uma escovação com a ponta dos dedos mesmo e saiu enrolada em uma toalha limpa que pegou da prateleira, pensando então no que poderia vestir.

Dalila não tinha tanto senso de preservação ao lado de Gabes. Mexeu em suas gavetas a procura de uma blusa de manga longa que lhe caiu como um vestido e vestiu sua calcinha por baixo, considerando-se pronta para ir procura-lo e já que estava ali, propor lhe fazer companhia por mais umas horas para que pudessem assistir um filme juntos. Estava por fechar as gavetas que tinha aberto quando viu algo reluzir no fundo de uma delas, sorriu curiosa e atrevida, inapta a se conter. Com cuidado tateou o fundo de madeira até alcançar o objeto e analisa-lo por todos os ângulos, viu que se tratava de uma espécie de adaga com uma bainha entalhada, era linda, mas a morena nunca imaginou seu amigo cafajeste colecionando armas, ele era sempre muito pacifico e nunca demonstrou interesse em algo que não fossem motores e flertes, além disso, a peça era única e estava escondida embaixo de suas camisetas.

Não colocaria algo que parecia tão pessoal em pauta, mas deu uma olhada na lâmina antes de guardar a peça, e percebeu que ali estava um desenho como um Sol tribal e uma inscrição que pareciam runas, por um momento concluiu que fosse algum item colecionável de algum anime ou série, mas o corte reluzia de tão afiado e Dalila não se sentiu bem segurando-a depois de perceber isso. Se retirou do quarto com urgência. "Homens..." Ela pensou, pondo um fim em suas teorias a respeito daquilo.

Descia a escadaria quando viu Gabriel saindo da sala de estar para a cozinha.

— Bom dia, gatinho! — Ela se anunciou e ele parou para espera-la.

— Bom dia, coelhinha. Pensei que fosse dormir para sempre. — Brincou ele, parecendo diferente de como estava na noite anterior quando se despediram.

— Bem que eu queria. — Recebeu o olhar repreensivo dele que odiava ouvi-la com aquela conversa suicida. — To brincando, juro! Na verdade, hoje eu me sinto bem melhor do que de costume e adoraria passar o dia vendo filmes com você, já que todos os nossos amigos devem estar indo dormir agora.

— Uau! — Ele fez um sinal oferecendo café da cafeteira elétrica e ela recusou, então ele tirou uma caneca para si e apontou a geladeira para ela. — Se auto convidar para a casa alheia virou uma mania, hein?

Ele riu e bebeu um gole antes de continuar.

— Comida pronta, filmes e cervejinhas? Até parece que ta me pedindo em namoro, Lila... Eu aceito. — Ele disse malicioso e ela riu como resposta, mais uma vez, sem leva-lo a sério.

— Café da manhã primeiro, gatão. — Ela brincou e tirou da geladeira o que lhe interessava.

Passaram um dia leve, mais uma vez, não queriam se preocupar com nada além de seus próprios umbigos, e funcionou bem. Infelizmente Dalila precisava ir embora antes de anoitecer para se preparar para o que viria nos próximos dias entre mudanças, a universidade e o novo mundo de grupos estranhos e música psicodélica em que estava prestes a entrar de cabeça... Um tempo de preparação era pouco, na opinião dela.

Quando se despediam na varanda, brevemente ele entrou para pegar o sobretudo dela, então naquele instante sozinha ela sentiu-se observada de novo, como na festa. Olhou ao redor desconfiada, com medo, e seu plano de ir a pé até o ponto de ônibus caiu por terra. Assim que Gabriel voltou para ela, percebeu sua expressão e franziu o cenho igualmente preocupado.

— Dalila... Ta acontecendo alguma coisa né? — Ele questionou, não tinha nenhuma noção das propostas de Tommaso, talvez nem conhecia o rapaz e a morena não queria preocupar ninguém.

— Não, mas eu tenho me sentido estranha quando fico sozinha. — Era verdade de certa forma, ele foi compreensivo com a resposta considerando o passado dela e a abraçou protetoramente.

— Não vai ficar sozinha se depender de mim, coelhinha... Um segundo e eu te levo para casa. — Ele a tranquilizou.

Não protestou contra a oferta, já tinha ido até a fazenda dele de madrugada com ele bêbado, então a carona não seria nada demais agora.

Com sorte chegaria antes do jantar na casa da amiga.

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