Fazendo o papel de mãe

Acordei às seis horas da manhã, pois pego as nove no shopping. Acordei Marjorie, depois fui ver quem Bernard trouxe para casa na noite passada. Fui entrando devagar para não constranger ninguém e era Grigor do seu lado dormindo de conchinha com ele — há muito tempo que eu não sei o que é isso, dormir com alguém que ame — eles estavam com aquele ar condicionado ligado sem necessidade e já fui desligando, cheguei perto da cama dos pombinho e cutuquei o cabelo crespo de Grigor, ele era ruivo e cultivava um Black, eles dois eram até bonitinhos dormindo juntos, mas sei que brigam demais por vários motivos. Enfim, jovens.

— Bom dia gata!

— Bom dia Grigor!

— Vim dar uma força para seu irmão. Arrumei um emprego para ele a noite, três vezes na semana. Um bar.

— E a faculdade dele? Como fica?

— Dá para ele trabalhar e estudar tranquilo e lá os clientes dão bastante gorjeta.

— Depois eu quero o endereço e o telefone do local.

— Você parece a mãe dele!

— É, eu sou também responsável por ele. Não quero ele metido em encrenca. Eu zelo muito pelo meus irmãos, pela educação; e você, voltou para a faculdade?

— Voltei. Minha mãe ficou me enchendo o saco. Agora falta menos de um ano e meio, então é estudar.

— Bom dia, Drezza! — Meu irmão finalmente abre os olhos. E antes de responder, ele continua: — Falou com a  mamãe?

— Falei. E falar com ela e nada é a mesma coisa!

— Eu fui ontem com Grigor conversar com o dono de um bar e restaurante, é perto da faculdade, praticamente uma boate. Ele me deu uma chance lá! Disse que tinha pouco tempo disponível.

— Eu só quero que você termine a faculdade, certo. Eu sempre dou um jeito.

— Mas eu também preciso começar a ajudar mais. Qualquer coisa eu vendo a moto, ela está me deixando mais na mão do que me ajudando.

— Leva ela no Vaguinho no começo de Paraisópolis. Ele cuida do meu carro e pede para ele fazer uma avaliação por mim.

— Quer dizer então que você anda em Paraisópolis?

— Eu ando em lugares que sejam mais baratos!

— É por isso que não arruma ninguém que preste!

— Verdade irmã, vai na boate que eu vou trabalhar, são pessoas cheia da grana, só um sapato que dei uma olhada ontem valia vinte mil.

— Para de prestar atenção nisso, eu quero que você estude e seja um ótimo profissional da saúde. Íntegro, confiável...

— Pode deixar Drezza, eu serei essa cara, esse doutor!

— Certo!

— Vão levantando, vou fazer o café e quero, por obséquio, que não deixe esse ar condicionado ligado a noite toda!

— Eu esqueci de desligar de madrugada, foi mal!

Mais uma vez chamei minha linda irmã para não perder a van da escola. Sua adolescência tenta me passar para trás, já que um crush dela vai de ônibus e ela acha que tem que ir também. Eu sempre antenada nas coisas que os meus irmão aprontam, eu não quero que eles se percam, minha mãe criou um mundo particular para ela, mas esquece que no mundo real existe pessoas que precisam se desdobrar para fazer o que ela não faz. Tomando meu café, comecei a dar uma olhada em apartamentos e casas em Moema, Ibirapuera, Perdizes... Mas ao mesmo tempo dava uma gastura ter que aceitar uma realidade mais que distante da que eu fui criada. Batia um desespero e tanta coisa passava na minha cabeça, consigo disfarçar muito bem diante de Marjorie tomando seu café na minha frente.

— Sua van já chegou, vai descendo com o pão.

— Tchau, Drezza! Fala com a mamãe, sobre a mensalidade da escola e do inglês.

— Eu darei um jeito, pode deixar!

Eu sempre dou um jeito em tudo. Minha mãe não aceitará sair daqui e ir para um local um pouco mais humilde, ela pode simplesmente morar com o irmão dela, ou voltar para Itália ou Armênia onde tem parentes também. Eles já fizeram essa proposta, mas o orgulho fala mais alto, talvez ela não leve isso em conta. Eu fui trabalhar, consegui pegar o enxoval do meu afilhado Lorenzo; fui eu que escolhi o nome dele. Eu não sei se uma dia terei filhos, mas infelizmente, eu não sei o que poderia proporcionar a ele, ou a ela. Anselmo veio pegar meu carro emprestado, pois o dele está com o imposto atrasado,  ele e Letícia iriam para um casamento na serra e disse que emprestaria.

— Eu falei com Letícia, bem, ela verá o que pode fazer referente a essa notificação com o patrão dela e talvez, a saída é voltarmos a morar com vocês, pelo menos é a primeira atitude, mesmo assim, o que eu pago de aluguel e condomínio não chega nem o que esse aqui vale por semana.

— Você sabe que aquele apartamento é seu também e Marjorie voltará a dormir comigo.

— Até quando iremos sempre estar nessa agonia? — Diz meu irmã cabisbaixo. E muda de assunto. — É estranho com as pessoas nos ignoram. Ontem eu encontrei Sarah e ela atravessou a rua, como se eu fosse um...

— Não liga para isso, eu me dou sempre com as ex amigas da minha mãe e antigos amigos e conhecido do nosso pai e poucos me cumprimentam. Lembram da gente...

— O Carlos, agora meu chefe ele começou a moderar as piadinhas. Sabe, eu não ganharia o que ele me paga se fosse arrumar outro emprego, mas é uma coisa que eu gostaria muito de fazer.

— Quem sabe outro estado? A gente nunca tentou recomeçar uma vida em outro lugar.

— Se levar a mamãe daqui, ela não vai aguentar. Eu sei o quanto ele tentou se equilibrar, mas nosso pai era um sonhador e a empurrou nessa alucinação que foi a vida deles nos últimos anos de casados. Não dá para tirar o único lugar que ainda ela se sente confortável.

— E eu? E você? Nós temos dois irmãos que estão órfãos de pai e de mãe!

— Eu sei que está sendo puxado para você. Hoje vou pegar Marjorie, eu falei com ela e vamos levá-la no casamento. Ela vai gostar. Thor e Ana Elis são pessoas maravilhosas e terá adolescentes, outras pessoas para ela ver o mundo.

— Está bem, mas não me avisou, eu poderia comprar uma roupa...

— É por isso que eu não avisei. Não precisa! Letícia tem vestidos que dá nela ela escolhe um, ajustamos e ela vai.

— Lembra do dia dos meus quinze anos? Foi um acontecimento.

— O dela também será, pessoas que realmente a ama, tio Genaro vai ajudar. Ele mesmo tocou no assunto outro dia, ainda temos dois anos para planejar. Eu quero que você saia mais, para de assumir o papel de Leona o tempo todo!

— Eu tento, mas se eu não ficar em cima, Bernard esquece que tem um compromisso com ele mesmo, Marjorie não tem mãe praticamente, faz o que ela quer o tempo todo se deixar...

— Aproveita que Marjorie vai comigo. Eu só não vou levar a mamãe por que eles serem pessoas humildes, detesta pessoas simples e Letícia.

Se tem uma coisa que sei sobre o meu irmão Anselmo, é que ele ama Letícia e isso desde criança, quando ele implicava com a gente e sequestrava as nossas bonecas dizendo que as jogaria no lixo. Meu irmão namorou muito até voltar nela. Selma, uma das minhas babás, depois empregada e chegou a ser governanta da mansão dos Casadavell com ainda meu avô vivo. Letícia brincava comigo, depois foi para a escola e mais tarde se tornou mulher como eu e isso fez Leona nos afastar, mostrando sua insatisfação quando aquele corpo escultural dela chamava atenção de todos inclusive de velhos que não disfarçavam o encantamento, mas Anselmo jamais a esqueceu. A cor dela, sempre foi um problema velado entre todos que viam os olhares, os sorrisos que os dois davam ao se encontrarem. É tão estranho imaginar que se caso, Letícia fosse branca, ou mais clara, a reação da minha mãe e de uma boa parte da família e amigos, não excluiria  Anselmo de certos privilégios em pleno século XXI. Sim, havia empregos melhores, mas acho que se criou uma narrativa escravagista e esqueceram que os dois eram livres, e são livres e se amam muito.

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