Capítulo 2

Com você, eu me sinto vivo, como se todas as peças perdidas do meu coração finalmente se unissem.

O dia seguinte amanhece chuvoso, feio, cinza. E é assim que eu me sinto. Não consegui dormir muito, tomei minha dose ontem à noite e tive insônia. Joguei a nova receita fora, mas decidi manter a velha. Não quis ligar para o consultório e dizer que havia perdido, eles certamente duvidariam. Pelo menos, desta vez, não foram os tremores. Acordo cedo, e como não consigo mesmo dormir, decido me levantar logo. Assim que abro a porta do quarto, Joaquim tenta entrar, espremendo-se na fresta entre a porta e a parede. Empurro-o com o pé e tranco o quarto com um baque. O gato me olha feio e sai rebolando, descendo as escadas e saindo da casa. Metido.

Respiro fundo e sigo até o banheiro, onde escovo os dentes, faço o que preciso fazer e então estou de volta ao quarto. Deito de costas na cama, encaro o teto e começo a pensar. Quem era aquele rapaz, David? Por que ele insistiu em falar comigo, em perguntar se eu estava bem, e por que eu aceitei encontrá-lo para que ele me desenhasse? E por que diabos estou pensando nele?

Levanto-me de supetão e fico imóvel quando a tontura me atinge. Deixo-me cair na cama novamente, e fico assim por alguns segundos. Levanto-me devagar desta vez, troco de roupa, calço os tênis e saio para correr. Correr é algo terapêutico, mas não o faço sempre. Alguns dias são melhores que os outros, e, pelo jeito, este será um dia bom... Apesar de ter amanhecido ruim. Ou pelo menos, assim espero. É assim que me sinto. E pelo o que todos falam desde que me lembro, o que eu sinto deveria ter alguma importância para mim.

                                                              ♥

Parando para descansar, tiro o celular do bolso e mando uma mensagem para Magda, avisando onde estou. Não quero que o episódio de ontem se repita. Assim que clico em enviar, meu celular apita com o recebimento de outra mensagem. Acreditando ser dela, abro-a imediatamente, mas é de um número desconhecido. Ainda assim, sei muito bem quem a enviou.

Bom dia, moço. No Plaza Burguer, às 9h? E leve o seu sorriso, por favor J

D.

Sorrindo como um bobo, guardo o aparelho no bolso e volto para casa, correndo o mais rápido que posso, ansioso e animado para encontrar meu novo amigo. Será que já o somos? Amigos, quero dizer. Espero que sim. Não imaginei que David me contataria tão cedo, aliás, cheguei a pensar que isso nem mesmo aconteceria, considerando a maneira como nos conhecemos e quão rápido eu aceitei ser retratado por um estranho. Só um esquisito toparia algo assim, tão de repente. Tento empurrar os pensamentos negativos pro canto mais longínquo da minha mente enquanto sigo para casa.

Assim que passo pela porta, sinto o cheiro de café no ar. Sigo até a cozinha e encontro minha mãe fritando pão, os cabelos presos num coque e os pés batendo no chão no ritmo da música que toca no rádio. Ela para quando me vê, e, sorrindo, pergunta:

- Tudo bem? – tentando não demonstrar o quanto odeio essas duas palavras, confirmo com a cabeça, e ela sorri ainda mais. – Ainda bem. Sabia que a mudança no medicamento ia te fazer melhor, meu filho. A Maria já ligou para confirmar o encontro de hoje? – faço que não, mas, na verdade, não sei se ela ligou. Não me lembro de ter atendido telefonema algum, muito menos de ter recebido mensagem. – Poxa, dá uma ligada lá depois, vai que ela esqueceu de avisar, né?

- É. – respondo, aceitando o prato que ela me estende, e forçando um sorriso.

- O que foi? – ela pergunta. – Você está estranho. Está mais coradinho. – aperta minhas bochechas e eu reclamo, o que a faz sorrir. – Aiaiai, Leo.

- O que, mãe? Eu não fiz nada! – protesto, rindo, mas ela me ignora.

- Já estava mais do que na hora.

- Na hora de quê? – Magda aparece, o cenho franzido de curiosidade.

- Do seu irmão acordar para a vida. – minha mãe ergue-se nas pontas dos pés e me dá um beijo no topo da cabeça, levando seu prato para a sala, onde liga a televisão e se senta no sofá.

- Do que ela está falando? – Magda me interroga, preocupada.

- Não sei. Nada. Deixa para lá. – sorrio fracamente para ela e começo a comer, olhando o relógio de tempos em tempos. Nove horas parece tão longe.

                                                         ♥

Assim que ouço o barulho da campainha da porta do estabelecimento, que anuncia quando alguém chega, levanto a cabeça. Não é ele. Bufando, volto a ler meu livro, mas não sem dar uma olhada no relógio. Um minuto desde a última vez em que olhei, e nada de David. Pare de ser paranoico, Leo! Dou uma olhada ao redor, absorvendo a energia do ambiente, e não consigo evitar me sentir elétrico. É o que o cheiro de cafeína faz, e, apesar de também não beber café, por conta dos efeitos dos medicamentos e de ter medo de alguma reação ruim acontecer, ainda não fui proibido de sentir seu aroma.

O edifício é todo de madeira, como as cafeterias vintage que se vê na televisão. O balcão fica ao fundo, e, atrás, a cozinha, separada de tudo por uma porta e uma janelinha onde a atendente passa os pedidos ao cozinheiro. As mesas são redondas e pequenas, suportando, no máximo, quatro pessoas, e as janelas vão do teto ao chão, todas de vidro. É um lugar bonito, reflito. Meus pensamentos me levam a um lugar que eu me proibi de ir, então chacoalho a cabeça e tento pensar em outra coisa.

- Ei, moço. - quando escuto sua voz, meu coração dá um pulo. Levanto o olhar e lá está ele, sorrindo, vindo em minha direção. Em seu ombro esquerdo está pendurada uma pasta marrom, e na mão ele leva um caderno de desenho. – Desculpa a demora, dei uma atrasada. – ele me cumprimenta com um aperto de mão. Engulo a decepção momentânea, irritado comigo mesmo. O que foi, Leo, achou que ia receber o que, um abraço? Vocês se conheceram ontem, num episódio tremendamente esquisito, não ache que já são melhores amigos!

- Sem problemas, não faz muito tempo que estou aqui. – tento mentir, mas nunca fui bom com mentiras, então sei que ele percebeu. – Vai tomar alguma coisa? – mudo de assunto.

- Um café. – ele se levanta abruptamente e se dirige até o balcão, onde faz seu pedido, e, quando aponta para mim, sei que ele está pedindo outro suco, tendo em vista que o meu já acabou. Sinto uma pontada de felicidade por sua observação, mas me ordeno a parar de bobeira. Quando finalmente volta, David toma seu café num gole só, e, respirando fundo, tira o estojo da pasta, organizando todos os instrumentos que vai precisar. Ele olha para mim de tempos em tempos, e eu fico cada vez mais nervoso. Por que está nervoso? Ele só vai te desenhar!

- Não está nervoso, está? – com medo de que David tenha algum poder paranormal e possa ler meus pensamentos, tento parar de pensar. Mas aí penso ainda mais, e tenho certeza de que estou olhando para ele assustado, pois David ri e arruma a postura. – Não estou lendo seus pensamentos, se é isso que está pensando. – ele levanta a sobrancelha, um sorriso malicioso nos lábios.

- Isso foi um pouco assustador. – murmuro, o que o faz sorrir mais abertamente. – Você é o que, um tipo de vidente ou mago que lê pensamentos?

- Que nada. Sou só um artista que gosta de desenhar coisas bonitas e de fazer as pessoas sorrirem. – não contenho o sorriso que me escapa dos lábios, e vendo que conseguiu o que queria, David bate palmas uma vez. – Viu? Eu sou bom nisso. – É. Você com certeza é.

                                                                ♥

David disse que precisaria de mais uma sessão (foi como ele chamou) para finalizar meu retrato. Precisamos parar porque ele tinha aula, e eu, reunião no DA (Depressivos Anônimos, como gosto de chamar). Mas é claro que eu não contei isso à ele. Talvez porque não somos íntimos e eu insisto em pensar nesse tipo de coisa. Simplesmente não parecia certo. Sendo assim, ele guardou suas coisas sem deixar que eu espiasse como o desenho estava ficando, disse até mais e foi embora. Nada de aperto de mãos desta vez.

Horas mais tarde, encontro-me no mesmo salão em que estive na semana passada. Branco, sem graça, e com pessoas como eu. Não exatamente como eu, mas pessoas diferentes, por assim dizer. Pessoas que também precisam de remédios e de ajuda para melhorar. Pessoas quebradas, como costumo me dirigir a elas, mas só em pensamento. Não acho que seria uma coisa gentil de se dizer em voz alta.

- E então, quem quer ser o primeiro? Bob, pode ser você? – a terapeuta pergunta gentilmente ao homem barbudo e alto do outro lado do círculo. Ela sabe que ele não vai falar nada, Bob nunca fala, mas ela sempre pergunta, na esperança de que ele diga como foi a sua semana, como está se sentindo e etc.

- E que tal você, Olhos? – Olhos é o apelido de uma garota de óculos que não aceita ser chamada de outra coisa. Ela sofre de transtorno obsessivo-compulsivo, e, pelo o que eu sei e ouvi dizer, está aqui há mais tempo do que todos os outros.

- Não, obrigada. – ela recusa, falando alto, como sempre faz. A terapeuta suspira, olhando ao redor, em busca de sua próxima vítima. Ela me vê.

- Leo! – exclama, olhando-me esperançosa. Assim como Bob, eu nunca abri a boca, nunca quis falar o que sentia, o que se passava em minha vida ou o que havia feito desde o acidente, há dois meses. Cheguei a me apresentar e falar um básico oi algumas vezes, mas nunca nada tão profundo. Nunca nada que deixasse outra pessoa ver quem eu sou de verdade, e estou muito bem assim, obrigado. Falar sobre não vai trazer ninguém de volta, não vai me permitir voltar no tempo e consertar todas as borradas que eu fiz, e poupar o sofrimento que causei. Ainda assim, vendo a forma como Maria, a terapeuta, me olha, esperançosa, como se torcesse muito para que eu melhorasse logo e me abrisse, e lembrando de todas as vezes que mamãe ou Magda, ou até mesmo os médicos que visitei me olharam da mesma forma, sinto vontade de falar. Meu cérebro manda comando para minha boca, mas ela não obedece. Quero falar, mas, ao mesmo tempo, não quero. Não sei se consigo. Não sei se conseguirei lidar com todos os sentimentos que virão depois, toda a insegurança, o medo, a vergonha, a culpa. Mas ao mesmo tempo, quero me livrar de tudo isso!

- Leve o tempo que precisar, Leo. – a voz suave de Maria me tira de meu torpor, e eu solto um suspiro estrangulado, tremido. Quero melhorar, quero ficar bom e quero que tudo volte a ser como era antes. Só assim poderei me livrar dos olhares de pena que recebo quando estou saindo ou voltando para casa, e somente assim voltarei a me sentir normal. Nunca me livrarei dos medicamentos, é fato. Se eu ficar bom, há uma grande chance de Magda voltar a ser aquela garota alegre e brilhante de antes, e de mamãe voltar a ter alguma felicidade em sua vida. Sei que tirei mais do que jamais poderei lhes dar, mas devo pelo menos tentar. E eu realmente queria, mas a culpa é tão forte que às vezes eu me sinto sufocado. E, dependendo do tipo de dia que estou tendo, posso crer que realmente mereço me sentir assim. Mal ouço as palavras que saem de minha boca, mas sei que elas estavam lá quando alguns me olham surpresos.

- Olá, meu nome é Leo.

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