Mundo ficciónIniciar sesión— Venha, loba, daremos um passeio! — Inclinei a cabeça para o doutor, que tirou seus acessos. Peguei-a no colo, ela se remexia nervosa. Notei que suas orelhas se moviam em vários sentidos, junto com o focinho que farejava sem parar. Talvez esse fosse o seu jeito singelo de enxergar através de outros sentidos.
— Você vai me matar? — Ela sussurrou, tremula.
— Se eu fosse, o que faria? — Respondi seco, avaliando suas reações.
— Sorrirei diante do meu destino, mas não antes de lhe implorar para que seja algo rápido, quase indolor... — Pegando-me de surpresa, seu focinho pousou em meu pescoço, descarregando ondas de choque por todo meu corpo.
— Qual é o seu nome, loba?
— Meu nome? — Erguendo a cabeça, seus pelos fizeram meu nariz coçar. Mexi-me, e ela pareceu notar, abaixando a cabeça novamente. — Perdão, eu não quis incomodá-lo...
— Você tem um nome, não tem? Ou devo chamá-la de cega? Tola? Loba? — Rosnei impaciente. — Pare de pedir perdão, é irritante!
— Perdão... — Limpando a garganta, ela se corrigiu. — Claro, me chamo Callie.
— Seu nome é incomum... — Comentei, vendo-a abaixar ainda mais a cabeça, triste. — Mas é um nome bonito!
Ela ergueu-se, surpresa e expressiva. Um sorriso escapou por meus lábios, surpreendendo até a mim mesmo... Quem era esta loba? Por que a Deusa me trouxe até ela?
— Seu sorriso é caloroso... — Comentou Callie.
— Hunf... Tem certeza de que é cega? — Avaliei as reações de seu corpo.
— Enxergo de uma forma diferente... — Ela se remexeu em meus braços, gemendo em seguida. — Onde estamos indo?
— Explique-se, loba! — Rosnei impaciente. — Você precisa se curar para que saiba os motivos de mantê-la viva.
— Entendo... Me curar para depois matar não me parece uma boa ideia. — Suspirando, ela inalou profundamente o ambiente. — As águas divinas...
— Então conhece o lago sagrado escondido pela sua alcateia? — Brandei irritado. O que mais essa loba escondia?
— Quando Hunter se ausentava, minha mãe me trazia aqui para me curar de suas agressões... Antes do meu pai decidir culpar-me por meu estado e matá-la sem piedade! — A voz de Callie ficou embargada, como um nó formado em sua garganta. — Você pediu para explicar como enxergo... Minha mãe me ensinou a sentir o ambiente, a ver além dos olhos.
— E como é isso? — A pousei ao chão, próximo ao som do lago, mordendo levemente o tecido da minha roupa. Callie chamava a minha atenção.
— Feche os olhos, por favor... — Ela soltou, erguendo o queixo para o alto. — Escute a natureza, o misto de sons que ecoam de cada ser vivo. Agora, tente ouvir as vibrações que emanam de seus corpos, um pulsar de coração... A intensidade da respiração, até o rastejar de suas patas.
Ponderei por um momento, intrigado com aquela criatura ferida. Suspirei, negando com a cabeça e fechando os olhos, sendo conduzido por suas palavras.
— Cada criatura emana calor, vibra ao se movimentar, mesmo em gestos sutis. Suas emoções também contêm cores, em que o olfato pode notar, farejando as nuances. — Callie parecia leve ao falar, em um tom doce e tranquilo.
Franzi o cenho, tentando captar sua forma de enxergar sem compreender ao certo. Um grito eclodiu de seu corpo lupino, e nos vi em frente à alcateia Alvorada Selvagem, onde tudo estava em chamas. Corpos de aliados caídos ao chão, destroçados; uma chuva de sangue molhava meus pelos. Eu me via ali, ofegante, extremamente ferido, com diversos cortes sobre as costas. Ergui o focinho, olhando para o topo da pedra, onde vários lobos, que não conseguia reconhecer, me olhavam de cima, rosnando ameaçadores, em deleite com a minha queda. Em um golpe final, senti sendo abocanhado por trás, em cima do pescoço, sucumbindo pesadamente ao chão.
Abri os olhos em choque, ofegante, passei as mãos por meu pescoço, encarando a loba, que estava encolhida no chão da mata, tremendo.
— O que foi isso? — Rosnei, irritado, a erguendo bruscamente do chão. Gemendo alto, me arrependi do movimento, soltando-a devagar, me afastando. — Como você fez aquilo?
— Eu não sei... — Callie gemeu, passando a pata frontal nas orelhas, nervosa. — Por favor, não me machuque...
Suspirei profundamente, socando uma árvore ao caminho, quebrando-a ao meio, repassando tudo que havia visto... O que era tudo aquilo? Esta loba não era comum.
— Vamos te curar primeiro... — A peguei com cuidado nos braços, adentrando mais a mata, onde localizei o lago divino.
Pousando-a suavemente ao chão, na beira do lago, enchi as mãos de água e comecei a lavar seus pelos. O gesto me fez lembrar de meus irmãos, e de quando brincávamos nos rios próximos, despreocupados com a vida.
— Me desculpe, eu não quis te deixar bravo ou triste... — Callie gemeu quando a água tocou seus pelos marrons claros, com as pontas queimadas em um tom de terra avermelhado, mesclado à sujeira de sangue e urina.
— Por que acha que me deixou triste? — Sussurrei próximo a ela, esfregando com cuidado suas feridas. Era estranho, mas não queria fazê-la sentir dores. A cada grunhido que ela dava, meu lobo respondia com ferocidade em meu interior.
— Seu cheiro ficou com aroma de flores murchas, com um toque de umidade e mofo, como se fosse o cheiro de lembranças antigas e perdidas. — Com dificuldades, observei Callie tentando inclinar o corpo ao lado para adentrar. — Se não vai me matar agora, se importa que eu entre um pouco?
Assenti no automático, ela seguia parada no lugar. Puxei seu corpo lupino para dentro do lago, terminando suas higienizações. A água começou a mesclar seus tons, adquirindo um azul intenso com luzes brancas. Suspirando por entre as presas, Callie ergueu o focinho para o céu, como se sentisse um alívio de suas dores; as feridas e patas estavam curadas.
— Obrigada, Deusa Lua... — Murmurou ela.
— Agora que se sente melhor, quero que me conte como fez aquilo... Ou melhor, o que foi aquela cena que vi? — Rosnei quando ela se ergueu, olhando-me nervosa, pronta para fugir correndo. — Aaa Callie, não faça isto... Acabou de se curar de ferimentos dolorosos, não me obrigue a causar piores em sua carne!







