Capítulo III

Tony saiu pela janela e Sheryl ficou ali deitada. Tentou dormir novamente

mas não conseguiu. Ainda era cedo, mas ela estava apreensiva. Não sabia o

que seria daqui pra frente, sem notícias do Tony. Sabia que os dias

seguintes seriam um tormento. Seriam dias decisivos, dias que mudariam para

sempre a sua vida. Em apenas um mês sua vida daria uma reviravolta em 360

graus. Seria vida nova e isso incluía deixar tudo para trás, inclusive os

seus pais. Ela se sentia triste, mas estava realmente decidida. Não iria

dar pra trás agora. Desistir do Tony seria desistir do sentimento que ela

julgava ser amor de verdade, seria desistir de si mesma, já que ele era o

único que a entendia, que a protegia e que com ela possuía uma cumplicidade

única, um magnetismo diferente. Sheryl sentia calafrios só de pensar em

Tony. Respirava ofegante e seu olhar se perdia só de pensar no seu toque,

nos seus beijos e no imenso amor que os unia. Isso estaria fora de

cogitação, desistir jamais, pensou!

Os dias se passavam rapidamente e Sheryl ficou um pouco

tranquila, pois pensava no que Tony a dissera antes de partir, notícias

ruins chegam rápido e se as mesmas não haviam chegado, era porque nada

havia acontecido. As coisas deviam ter corrido bem, mas por outro lado

vinham os pensamentos negativos; -E se ele se afogou? E se fora assassinado

por alguém no navio? E se fora descoberto? Não! Isso é impossível... Se ele

fosse descoberto estaria preso e a notícia logo se espalharia, mas... E se

ele se perdeu em Novosibirsk? Não! O Tony é muito esperto. Então em um

gesto brusco, assanhou os cabelos e disse para si mesa:

-Chega!! Não vou pensar mais! Vou apenas me programar, pois

meu dia de partir está se aproximando. -Pensou alto.

Em um momento, pensou também em contar para a filha sobre a maravilhosa

"viagem" que fariam, mas se a pequena empolgada contasse a alguém, até

mesmo a uma coleguinha da escola, poderia colocar tudo a perder. Sheryl

tinha certeza mais que absoluta que, assim que ela partisse, mesmo deixando

a carta, seus pais não iriam acreditar e obviamente colocariam a polícia no

meio. Não seria de imediato, primeiro eles iriam esperar por um contato.

Vendo que esse não ocorreria, eles iriam imediatamente à polícia e isso não

seria bom. Porém como o Tony disse, tudo seria um risco e ela não poderia

deixar de aceitá-lo. Para viver com Tony Tramell mudaria tudo radicalmente

isso incluiria a sua "Fuga".

Faltavam apenas 15 dias para Sheryl partir. A tensão e a

ansiedade era parcialmente visível, misturada com a tristeza e a saudade.

Sheryl não conseguia mais ficar longe de Tony e contava as horas para vê-

lo, para abraçá-lo e principalmente, para chegar ao seu destino final e ver

que tudo havia saído bem. Não seria fácil disfarçar, sua mãe já reparava

que estava acontecendo alguma coisa, mas não sabia o que era. Um dia,

assistindo TV a noite lhe perguntou:

-Sheryl, é impressão minha ou você anda triste, nervosa. Está

acontecendo alguma coisa no seu trabalho, filha?

Sheryl pensou bem no que iria responder. Mas se fizesse totalmente

desentendida iria parecer irreal, então ela ensaiou uma mentira:

-Não sei, mãe! Está tudo tão parado, sabe? Sinto vontade de

mudar.

-Mudar de quê? De emprego?

-De vida, mãe. Não sei ao certo. Sair dessa cidade,

recomeçar. Sim, tenho vontade de recomeçar.

-Mas filha, você de certa forma recomeçou.

-Mãe, como você acha que as pessoas daqui me olham sabendo

que tive uma filha com um assassino? Metade me olha com desdém e a outra

metade com pena. Sinto pela minha filha.

-Isso não é verdade. Você foi vítima de um maníaco. As

pessoas sabem disso.

-Que saibam. Eu não estou feliz!

-Sim, isso é claramente visível. Mas, filha, diga-me sobre o

oficial Jones. Ele me parece um bom rapaz. Esses dias você saiu com ele,

não foi?

-Sem chances, mãe. Sai apenas como amiga e ele me fez

interrogatórios a noite toda, sabe... As pessoas não veem em mim Sheryl

Madison e sim a pupila do Tony Tramell. Isso é péssimo.

-Entendo perfeitamente, filha. Mas já havia falado com seu

pai a possibilidade de mudar daqui, o que você acha?

-Eu acho ótimo. Mas não sei se terei paciência para esperar.

-O que você quer dizer com isso, Sheryl?

-Apenas que não suporto mais conviver nessa cidade. Não se

assuste se eu resolver partir.

-Mas e a Valentina?

-Vai comigo. Ela é minha filha!

-Eu sei, filha. Prometo que vou falar com o seu pai mais uma

vez sobre isso. O problema é que já temos as nossas vidas estruturadas

aqui, sabe? As nossas raízes.

-Mãe, raízes a gente planta por onde passamos. Olha, obrigada

por me ouvir, mas vou dormir. Toda essa conversa me deu sono. Boa noite!

-Boa noite, querida!

Ellen Madison ficara preocupada com a possível decisão da filha. Se ela

fosse embora sozinha e levasse a pequena Valentina ela e o Steven iriam

sofrer muito. Eles haviam se apegado à pequena de uma forma sublime. Quando

Sheryl retornou a Springfield, Ellen e Steven estavam tensos, nervosos,

apreensivos. Quando eles viram a filha reaparecer após quatro anos trazendo

consigo uma criança não sabiam de fato o que significava aquilo e como

iriam lidar com aquela situação, porém a criança era de uma amabilidade que

conquistaria até mesmo o mais frio dos corações. Valentina era astuta como

o pai, porém possuía a doçura da mãe. Era uma criança linda por dentro e

por fora. Branca de cabelos pretos e lisos, olhos verdes escuros como os do

seu pai e o rosto razoavelmente parecido com o dele. Não pelo tamanho, o

rosto da pequena era normal, mas pelos traços. Assim como o pai ela possuía

alguns traços angelicais. O rosado das bochechas contracenando com as

sobrancelhas e cabelos lisos que por vezes lhe caia sobre os olhos verdes.

O jeito de sorrir era idêntico ao do pai. Ellen ficava impressionada com a

semelhança da neta com o mesmo ao ver as fotos dele estampadas nos jornais

e dizia para si mesma:

-Ainda bem que a minha neta é uma criança doce, não é como

esse monstro! -Suspirou.

Ellen não sabia de absolutamente nada, assim como a maioria das pessoas e

nem sequer suspeitava da tórrida história de amor que a sua filha possuía

com o seu suposto algoz. Muito menos suspeitava que ele estivesse vivo, ao

contrário do oficial Jones que não só suspeitava disso como da possível

paixão que Sheryl nutria por ele. Aquela noite fora difícil para Sheryl.

Não sabia se havia falado demais e olhava a filha dormir ao seu lado,

contando os dias para a sua fuga. Não dava mais para ficar ali. Viver sem o

Tony era algo que ela definitivamente não se acostumaria e apenas orava a

Deus para que lhe desse forças no dia da sua fuga e no começo dessa nova

vida que a esperava.

O dia amanhecera e ao retornar do trabalho, Sheryl recebeu um

telefonema, era o oficial Jones, quando ela atendeu, gelou! Pensou que

fosse algo sobre o Tony, mas depois que o oficial começou a conversar ela

viu que não houvera nada. -Graças a Deus!! -Suspirou dizendo a si mesma.

O oficial apenas queria vê-la novamente e mesmo sem falar com o Tony ela

achou que não seria uma boa ideia sair com ele novamente. Sabia que o

oficial estava interessado nela e ela definitivamente sentia repulsa do

mesmo. Ele era o pior inimigo do seu amado em todos os sentidos assim se

falando. Desejava mais do que ninguém caça-lo, descobri-lo e prendê-lo para

vê-lo morrer quando fosse a hora da sua condenação. Sheryl não tinha

nenhuma simpatia pelo oficial Jones, ao contrário do mesmo que estava

completamente apaixonado pela garota. No telefone ele continuava

insistindo:

-Ora, Sheryl, vamos ao parque. Será divertido.

-Não oficial, Jones. Estou cansada. Meu dia foi cheio.

-Então tudo bem. Hoje lhe deixarei descansar. Mas amanhã é

sábado e não aceitarei um não como resposta, tudo bem?

-Vou pensar oficial.

-Me chame apenas de Jones. Sem formalidades.

-Tudo bem... Jones! Vou pensar e amanhã nos falamos, ok?

-Ok. Tchau! Boa noite!

-Boa noite!

Jones desligou o telefone, tirou a roupa e foi tomar um banho. Pensou em

Sheryl e no seu sorriso. -Como é linda! Mas também falava para si mesmo:

-Será que ela e o Tony Tramell realmente se envolveram?

Afinal de contas foram quatro anos. Em quatro anos muita coisa acontece

e... Não! Não vou pensar nisso. -Terminou, vestiu-se e ficou em casa a

tomar cerveja e assistir televisão. Aquele dia ficaria em casa e

aproveitaria para relaxar, mas os pensamentos em Sheryl não o deixava

fazer. Jones não tirava aquela garota da cabeça por nenhum minuto e

percebeu que sim, estava completamente apaixonado por ela. Precisaria

pensar em um plano para conquistá-la. Olhava para o enorme sofá da sua sala

e pensava o quanto seria bom se ela estivesse ali com ele assistindo TV,

bebendo cerveja e dando risada. -Esboçou um breve sorriso. Jones, que nunca

havia se envolvido afetivamente com nenhuma mulher, sim, tivera seus

romances, porém todos maçantes e efêmeros, encontrava-se ali, naquele

instante, pensando o tempo inteiro em uma garota deveras problemática. Mas

isso fazia parte da paixão, desse sentimento que nos toma repentinamente e

ninguém consegue entender de onde vem e porque vem. Ele precisava elaborar

um plano para chegar ao coração de Sheryl, mas como? pensava! Para ele,

Sheryl era um enigma quase indesvendável. Era uma pessoa sofrida,

traumatizada que das duas uma, ou se auto punia por não poder expressar um

sentimento reprimido, ou estava definitivamente fechada para todo e

qualquer relação devido ao trauma que passou por todos esses anos,

supostamente pelo sequestro e consequência do mesmo. Acabara dormindo com

esses pensamentos. Era madrugada de sábado, o frio pairava sobre

Springfield. Sheryl deitada na cama, com a sua janela aberta, contemplava a

imensa lua cheia que aparecia no céu estrelado. A pequena Valentina dormia

ao seu lado. Ela olhava para a filha, sorria e depois olhava para a lua e

pensava no Tony. -Meu Deus, como ele está? Será que tudo correu bem? Ficava

séria mas depois esboçava um sorriso lembrando dos momentos perfeitos que

vivera exatamente ali naquele quarto, naquela cama e apreciando a mesma lua

pela mesma janela. Era difícil não pensar nele. E quando isso acontecia,

Sheryl suspirava e sentia calafrios, como de costume. Era como se ambos

tivessem uma conexão. Ela não havia mais falado com ele e tão pouco sabia

do seu paradeiro, mas naquele exato momento tinha certeza que ele estava

bem e também estava pensando nela. Assim acabou adormecendo.

O dia amanheceu e Sheryl acordou tarde. Já passava das onze

quando sua mãe a chamara. Valentina já havia acordado desde cedo para

juntar-se aos avós e a sua mãe preocupada resolveu chama-la:

-Sheryl querida, o que houve? Passou a noite em claro?

-De certa forma sim, mãe. -Bocejou. -Não dormi muito bem.

-Mas, por quê?

-Não sei. Insônia talvez.

-Tudo bem, vista-se e desça. Lave o rosto e tome um café.

Ao descer Sheryl escutou o telefone tocar e de pronto atendeu, era o

oficial Jones:

-Bom dia, Sheryl!

-Bom dia Oficial Jones! -Disse revirando os olhos.

-Jones, lembra?

-Ok, Jones. O que você quer?

-Gostaria de saber se podemos ir ao parque essa tarde.

-Não sei, eu...

-Ora, vamos! -Interrompeu. -A pequena Valentina vai amar.

Sheryl não queria ir, mas pensou bastante. Se o Tony estivesse lá a teria

incentivado, mas também, depois do que ocorrera na noite às vésperas da sua

viagem, ela nem mais sabia o que pensar. Pensou e resolveu ir. Sair com o

oficial Jones era sondar o seu grau de sabedoria, era saber se ele tinha

alguma pista ou desconfiança do paradeiro do Tony, então ela resolveu

seguir os seus instintos:

-Tudo bem, Jones. Me pegue as quatro.

-As quatro então. Combinado!

O oficial quase deu um pulo de felicidade. Desligou o telefone e vibrou.

Quem sabe, aos poucos, não domaria o coração daquela fera arisca, que mais

parecia uma tigresa selvagem. Não em questão de temperamento. Sheryl era

doce e amável, porém arredia e desconfiada, o que dificultava a conquista

tanto dele como a de qualquer outro homem. Mesmo antes de ocorrer o

sequestro, Sheryl não tinha namorado. O oficial Jones muitas vezes a teria

encontrado nas baladas, porém sempre sozinha, acompanhada apenas por amigas

e mesmo assim poucas amigas. Após o sequestro ela teria se tornado mais

recatada ainda, já que não ia mais à baladas e tampouco tinha amigas.

Sheryl vivia isolada, apenas com a sua filha e os seus pais, era de certa

forma estranha, assim ele pensava, mas isso o intrigava cada dia mais.

Amava mulheres misteriosas, com segredos a serem desvendados e o magnetismo

que ela exercia sobre ele era realmente perturbador. Jones não conseguia

parar de pensar em Sheryl, mal sabendo ele que a mesma só tinha olhos para

Tony Tramell.

As horas passaram rapidamente e Jones chegou à casa de Sheryl

às quatro como haviam combinado. Sheryl despediu-se dos pais e seguiu com

Valentina. Ellen vibrava, ao ver a filha saindo com o oficial, mal sabendo

ela que aquilo era puramente um disfarce, uma coleta de informações e nada

mais que isso. O coração de Sheryl pertencia a outro homem e isso estava

longe de mudar, nem pelo Jones nem por ninguém. Quando Sheryl entrou com

Valentina no carro, Jones cumprimentou a mãe e ficou olhando para a criança

como que hipnotizado. Fora a primeira vez que a olhara cara a cara, já que

no dia do resgate ele nem tivera cabeça para reparar em tais detalhes. A

menina parecia muito com o pai. Ele ficou olhando fixamente, reparando os

mínimos detalhes. Era impressionante a semelhança. O sorriso da garota, o

jeito de olhar, a face corada... Sim. Ele não era o primeiro que achava

isso. Todo mundo que conhecia o Tony Tramell saberia que nem precisava

fazer exame de D.N.A para comprovar a paternidade, até porque o Tony

Tramell não possuía traços comuns. Se existia uma coisa que ele passava

longe de ser era comum. Seu rosto era notado em qualquer lugar que

passasse. Não chegava a ser uma bizarrice, mas era sim, muito diferente.

Valentina não tinha o rosto tão grande mas possuía características

marcantes e idênticas as do pai. Sheryl percebeu que ele olhava para a

menina reparando tais detalhes e não se conteve em perguntar:

-O que foi?

-Nada. -Riu-se

-Nem precisa dizer, eu já sei o que foi.

-Se é o mesmo que estou pensando... Sim! Estou impressionado

com a semelhança. Essa criança é idêntica ao Tony Tramell.

-Sim, é. Ela não se parece comigo.

-Não. Desculpa lhe dizer, mas ela realmente é cópia fiel do

seu pai.

-Todo mundo diz isso, inclusive os meus pais que nunca o

viram pessoalmente, apenas pelos jornais e noticiário.

-São coisas da vida. -Esboçou um sorriso.

Ao chegar no parque, Valentina ficou extasiada. Brincou, correu, tomou

sorvete, ganhou balões e urso de pelúcia. Jones sabia que ali não era o

lugar e nem a hora de tentar avançar o sinal com a Sheryl, mas em sua

cabeça esses passeios abririam o caminho. Ele vira Sheryl rindo,

divertindo-se com a filha e nem pensou em abrir a boca para falar do

Tramell. Isso certamente colocaria todos os seus planos a perder. Jones não

tinha certeza, mas no fundo sabia que Sheryl nutria um sentimento pelo

mesmo. Ele reparou que os olhos da garota brilhavam ao concordar que a

filha se parecia com o pai. Podia ser até que estivesse enganado, mas tinha

sim uma sombra de dúvidas que nem mesmo a morte do Tramell havia feito

Sheryl o esquecer, se é que houve algum tipo de sentimento entre os dois.

Ele ficava cada hora mais intrigado, mas sabia que através dela não saberia

nada e então resolveu calar-se a fim de não estragar o que ele demorara

para construir. O passeio estava bom mas já caia a noite e a pequena

Valentina estava cansada e sonolenta, era chegada a hora de partir. Jones a

deixou em casa, despediu-se e seguiu. Enquanto Jones seguia esperançoso,

Sheryl entrou, deu banho na pequena, colocou-a na cama e após sair do

banho, foi para a cozinha. Preparou um café e ficou em pé, diante da grande

janela da mesma, usando um roupão e admirando a lua. Pensava no Tony.

Faltava muito pouco para encontrá-lo. Sheryl não se comunicava com Tony a

um mês e isso a perturbava. Ela pensava em milhões de coisas. Se por acaso

ele não estivesse lá o que seria? Na pior das hipóteses ela teria que

voltar e fingir que apenas pensou em fazer uma viagem, mas isso não era

possível. Tudo devia ter dado certo. O Tony não se comunicou porque não

havia como. Ligar para ela seria um risco imenso. Quem garantia que a

polícia poderia ter grampeado o telefone da mesma? Ninguém! Pela dúvida,

preferiram não arriscar. Se ela tivesse alguém de confiança, poderia ter

pedido para que ele entrasse em contato com essa pessoa, mas quem? Ninguém

em sã consciência ajudaria um assassino. Seria muito difícil. Mesmo que

fosse para cooperar com uma grande história de amor e uma criança

envolvida, não! Seria muito arriscado, principalmente por telefone.

Aretha era colega de Sheryl, no trabalho. Era muito solidária e

comunicativa. Sabia do sequestro e nunca olhou para Sheryl com desdém, pelo

contrário, era muito prestativa e solícita. Porém a verdadeira história

ninguém sabia. Exceto a advogada de Sheryl, doutora Kate. Sheryl sabia que

o seu segredo estaria seguro com ela, até porque na época em que ela contou

tudo isso, nem mesmo sabia que o Tramell estaria vivo. Fazer uma confissão

a um advogado era como fazer a mesma coisa para um padre. Pela ética, o

segredo deveria morrer com os mesmos e com a doutora Kate, Sheryl não se

preocupava. Aretha às vezes perguntava a Sheryl se ela não tinha namorado,

coisas do tipo, porém ela nunca se abriu. Quanto menos gente soubesse,

melhor. Até porque se muita gente soubesse, na hora que houvesse qualquer

rumor ficaria difícil descobrir quem havia falado. Sheryl se tornara

bastante reservada, até porque ela sabia que se não fosse, diante da

situação que estava vivendo, colocaria em risco a liberdade e a vida do seu

amado e que jamais poderiam cogitar a possibilidade de uma vida a dois, nem

mesmo às escondidas. Ela estava ali com seus pensamentos e nem percebeu

quando sua mãe chegou por trás e a tocou nas costas. Sheryl assustou-se e

quase derrubou o café. Por um momento pensou ser o Tony, então virou

rapidamente e viu a sua mãe sorrindo:

-O que foi, filha, Está assustada?

-Oh, mãe! Estava tão distraída aqui que nem a vi chegar.

-Sim, eu vi. Seria o oficial Jones tomando conta desses

pensamentos?

-O Jones? -Riu-se. -De jeito nenhum! Eu e o Jones somos

apenas amigos, mãe. E por favor, não crie esperanças em relação a ele. Não

aconteceu e nem vai acontecer nada.

-Mas filha, o oficial Jones é um rapaz muito distinto e

lembre-se que...

-Mãe, por favor! -Interrompeu. -Eu não quero ouvir. Nós já

falamos sobre isso.

-Sheryl, você precisa superar esse trauma. Eu sei filha, deve

ter sido difícil para você viver todos esses anos em cárcere privado, com

um maníaco, sendo estuprada e...

-Mãe, pare! Por favor. Eu não quero falar sobre isso. Pelo

amor de Deus! -Colocou a xícara em cima da mesa, pediu licença e subiu.

Ellen ficara intrigada. Nunca sabia o que se passava ao certo na cabeça da

filha. Por quê Sheryl se tornara tão arredia? Sim, ela ainda era amável,

mas misteriosa e impenetrável. Não sabia que aquele sequestro havia lhe

causado tantos traumas. Por outro lado ela pensava que havia algo de errado

nessa história. Como a Sheryl conviveu tantos anos com um maníaco e chegara

em casa intacta? Geralmente as vítimas de sequestro quando são encontradas

retornam sujas, descabeladas e com muitos hematomas pelo corpo, devido às

lutas e algumas tentativas de fuga, porém nem todos os casos eram iguais e

Ellen começara a achar que a sua filha precisava de ajuda psicológica, pelo

menos para tentar superar o trauma que havia passado.

Os dias pareciam não passar para Sheryl. Mesmo estando tão

perto, cada dia era mais difícil que o outro. Tudo lembrava Tony. O sótão,

a cama, a janela por onde ele entrava, a mesa da cozinha, onde eles

sentavam e faziam lanches como um casal normal, até mesmo a insistência do

oficial Jones. Sheryl lembrava da primeira noite que saíra com ele apenas

para um jantar e o Tony ficou corado de ciúmes, com isso esboçava um imenso

sorriso e nem se deu conta de que sua mãe a observava:

-Querida, está acontecendo alguma coisa?

-Não, Por que perguntas, mãe?

-De repente você sorrindo, tão feliz.

-Sinceramente, não dá para entender. Se eu fico triste me

críticas, se eu fico alegre achas estranho. O que realmente você está

querendo dizer, mãe?

-Não filha, nada! Apenas fiquei feliz em lhe ver sorrir.

Pensei que poderia ser um novo amor.

-Mas será possível? -Riu-se. -Quer dizer agora que felicidade

só se caracteriza por amor a um homem?

-Não foi isso que eu quis dizer.

-Mas disse. Olha mãe, eu estou muito bem sozinha.

-Sheryl, filha. Me diga. Eu sei que você odeia falar sobre

esse assunto mas eu realmente preciso saber. O que aconteceu nesses quatro

anos em que você conviveu com o Tony Tramell?

Sheryl respirou fundo. Pensou bastante, franziu o cenho e

disse:

-Mãe, será que você não percebe que esse assunto me deixa

incomodada?

-Sim, querida, eu sei. Mas depois de tudo isso você voltou

completamente mudada.

-E não era para estar? Você sabe o que eu passei durante

esses quatro anos, mãe?

-Não. Gostaria muito saber.

-Eu não estou ouvindo isso. -Levantou-se do sofá e quando ia

caminhando para o seu quarto sua mãe lhe disse:

-Querida! Você não acha melhor procurar ajuda psicológica?

-Ajuda psicológica? -Gargalhou. -Faz-me rir. Eu não estou com

problema algum. Sou uma pessoa absolutamente normal e não tenho desvio de

comportamento. O que vais alegar a um psicólogo, que eu não quero falar

sobre o que passei? Ele vai achar absolutamente normal.

-Não. Apenas o fato de você não sair e de não querer se

relacionar com nenhum rapaz, após o ocorrido.

-Ótimo! Sabe o que o psicólogo dirá? Isso é absolutamente

normal. Nem todos os grandes traumas são superados momentaneamente, cada um

a seu tempo. Mãe, faça-me o favor! Eu estudei psicologia e era uma das

melhores alunas da minha turma. Você vai querer agora ensinar um padre a

rezar uma missa?

-Sheryl, não seja grossa.

-Não estou sendo grossa. Simplesmente me irrita quando me

falas assim. Olha mãe, quem sabe um dia eu lhe conte. Prometo que pensarei

a respeito, mas... hoje não! Agora se me dá licença, preciso dormir. Amanhã

trabalho cedo. Boa noite! Disse beijando-lhe a face.

-Boa noite, Querida! -Respondeu tristemente.

Ellen não estava satisfeita. Sabia que a sua filha não estava feliz mas

também sabia que havia um motivo. Porém vê-la sorrindo, de certa forma

poderia ser um sinal de que teria encontrado alguém, ou que estaria

conhecendo melhor o oficial Jones, mal sabendo ela que a sua filha

suspirava relembrando os tórridos momentos de amor que vivera com o Tony

Tramell.

Era uma manhã de terça-feira e Sheryl encontrava-se no estado

máximo de ansiedade. Ela partiria dois dias depois, na madrugada de quinta-

feira. Estava tudo pronto. Bagagem arrumada e guardada no sótão, juntamente

com as passagens e toda a documentação necessária para a sua viagem.

Precisava fazer uma carta para despedir-se dos seus pais sem deixar pistas.

Era doloroso. Talvez por esse motivo estivesse tão arredia, mais do que de

costume, com os pais. Nervosismo misturado com ansiedade. Sheryl era

extremamente ansiosa. Costumava andar de um lado para o outro, ou subir e

descer as escadas do seu quarto quando estava com algum problema ou quando

tinha algo de importante para resolver. Porém fazer isso, só daria margem

às desconfianças contínuas de sua mãe. Ela precisava se controlar. Já havia

pedido demissão do trabalho alegando estresse mental e o seu chefe

concordara de imediato, pois a cidade quase toda sabia do fato que lhe

ocorrera. Ela teria motivos de sobra pra isso. Em casa ela fingiu que

estava indisposta e que tirara uma licença para se recuperar, fato esse que

seus pais acreditaram prontamente sem levantar nenhuma suspeita. Estava

tudo esquematizado e sem sombras de desconfianças de parte alguma. Nem de

seus pais, nem de seus colegas de trabalho e nem mesmo do oficial Jones.

Esse sim lhe causaria problemas inúmeros se soubesse, mas pelas conversas

que tinha com o mesmo isso nem lhe passara pela cabeça. Sheryl sabia que a

sua partida não tinha como dar errado, afinal ela não comentara com ninguém

e sempre tratou de esconder tudo às sete chaves para não haver surpresas

desagradáveis. Sempre trancava a porta do seu quarto ao sair e colocava o

cadeado no sótão. Aquele sótão, no seu quarto, não era usado há anos e ela

sabia que as chances de seus pais pedirem para abrir seriam mínimas, por

isso tudo estava escondido lá, como um tesouro de valor inestimável dentro

de um baú. Nessa hora não havia ninguém em casa. Valentina estava na escola

e seus pais trabalhavam. Sheryl aproveitou para escrever a carta de

despedida para seus pais. Teria que ser uma carta inteligente e que não

levantasse suspeitas, pelo menos por algum tempo. Tempo suficiente para que

ela vivesse em paz com o seu amor. Sheryl amava Tony, mas sabia que mais

cedo ou mais tarde essa história daria errado de alguma forma. Não por

falta de amor, isso não. Se dependessem apenas do amor que nutriam um pelo

outro, essa história certamente seria infinita, mas sim pela situação. Não

existia bem que durasse, ainda mais quando o bem tinha uma ponta de mal,

como o exemplo do yin-Yang. Como seria bom se ela pudesse viver esse amor

como todos vivem. Sem barreiras, sem fugas, sem subterfúgios... Mas será

que assim eles seriam realmente felizes? Sheryl não gostava do

convencionalismo e mesmo sabendo dos perigos que corria resolveu arriscar.

Sabia que um dia seria descoberta, ou pior, "caçada" pela polícia como um

animal selvagem encurralado na mata, mas estava disposta a isso. Se fosse

descoberta, poderia ser presa por cúmplice de um assassino. A sua história

até então ficara no anonimato ou na dúvida, mas se fosse configurada a sua

fuga para encontrar-se com o Tony seria a prova cabal de que Sheryl mentira

todo esse tempo. Inclusive ela poderia ser presa por falso testemunho. Ela

não queria mais pensar. Sentou-se em frente a escrivaninha, olhou-se no

espelho, pegou um caderno e começou a escrever. Olhando para a folha em

branco deixou a sua imaginação fluir:

Pai, mãe... Sei que não deveria sair assim sem me despedir, mas

foi necessário. Já estava cansada dessa cidade, dessas pessoas e das mesmas

perguntas de sempre. Me senti oprimida, acuada. Para onde quer que eu fosse e

seja lá o que eu fizesse era sempre observada com desdém ou pena. Não queria

ser vista em uma cidade toda como a única sobrevivente de um assassino, de

vítima, de coitada, não! Preciso ir para um lugar que as pessoas não me

reconheçam e se reconhecer que não achem necessário me perguntar o que

realmente houve naquele sequestro, como milhares de pessoas já me perguntaram

inclusive vocês. O tempo inteiro. Quando coisas ruins acontecem em nossa

vida, o ideal não é ficar falando o tempo todo e sim, tentar esquecer para

recomeçar uma nova fase da mesma. Infelizmente, convivendo aqui em

Springfield eu jamais conseguiria fazer isso. Jamais conseguiria vencer o meu

trauma e muito menos me relacionar com alguém. Todos os homens daqui sempre

me terão como a pobre Sheryl, estuprada e massacrada por um maníaco e eu não

suporto mais isso, por esse motivo resolvi partir. Preciso me encontrar,

preciso retomar não só a minha vida, mas a minha liberdade. Preciso de um

tempo sozinha, apenas com a minha filha que por ser muito pequena, necessita

imensamente da mãe. Sei que com isso farei vocês sofrerem. Não queria afastar

a Valentina de vocês, pois sei que vocês a amam imensamente. Um dia vocês

irão me compreender. Por enquanto não vou manter contato e nem direi aonde

estou, mas prometo que, assim que eu me encontrar, que resolver meus

problemas internos, sem a ajuda da família, de amigos e muito menos de

psicólogos eu retornarei. Não para ficar, mas para estar com vocês. Sei que

poderia ter contado antes, mas certamente vocês iriam tentar me convencer de

fazer o contrário e eu já estava totalmente decidida. Fico por aqui dizendo

que estarei bem e feliz. Não se preocupem comigo e nem com a Valentina. Eu

amo vocês e a Valentina também. Obrigada por tudo que sempre fizeram por mim,

mas agora é chegado o momento da minha partida. Assim que puder mando

notícias. Um abraço bem apertado e que Deus os proteja sempre. De vossa amada

filha, Sheryl Madison.

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