Capítulo IV - Wulfgar

Sofia ainda ficou um tempo sentada no canto da cozinha observando os cacos espalhados pelo chão, tentando se recuperar do susto que a reação desesperada do jovem lhe causou. Também, não deveria ser algo fácil, descobrir que estava morto, ainda mais quando parecia estar tão vivo.

Levantou e caminhou até a porta da cozinha, olhou para o corredor. Lá estava ele, sentado no chão da sala, as longas pernas esticadas cobertas por uma calça de couro e botas que vinham até quase os joelhos, as mãos cheias de anéis na testa, revirando os cabelos. Ao seu lado, agachado, estava o ruivo, o olhar de uma profunda raiva em sua direção. Mas se ele pretendia assustá-la, não conseguiu, e ela foi em direção aos dois.

- Desculpem dar essa notícia assim, mas... Quanto tempo vocês pretendiam ficar andando por aí sendo atropelados como se fosse uma coisa comum? Ou congelando as coisas?...

- Nós confiamos em você!... – Interrompeu o ruivo com raiva, sob o olhar de reprovação do loiro.

- Olha, deve haver algum engano aqui... – Disse Sofia, tentando se defender.

- Claro, e foi você quem nos enganou! – Esbravejou o ruivo.

- Por quê?... – Finalmente o loiro disse alguma coisa, a decepção nos olhos dele dando lugar ao susto, ao ouvir o barulho da chave na porta. – O que é isso?

- Milena! - Disse Sofia, mais pelo susto do que respondendo a pergunta do moço loiro. Ainda havia Milena, e podia imaginar com que humor depois do acontecido no hospital e agora, na cozinha.

- A ama? – Perguntou o ruivo.

- Ela pode nos ver? – Perguntou o loiro, recebendo um menear de cabeça como resposta.

- Ah! Então está aí! – Começou Milena assim que colocou os pés em casa e viu Sofia, que a esta altura já se esgueirava pela parede como um gato, tentando fugir da amiga, que avançava na sua direção. – Posso saber por que você não atende o telefone? Eu te procurei a tarde toda... – Dizia Milena, só então se dando conta do que havia visto na cozinha, e voltando para ver, não se conteve. – O que houve aqui?

- Ehr... Um acidente. – Respondeu Sofia, timidamente.

- Como o do hospital? – Perguntou Milena, agora irritada. – Não bastava ter destruído uma sala de exames em um hospital, precisava destruir a nossa cozinha também?

Sofia não sabia o que dizer. Milena continuou.

- Onde está o seu amigo?

- Amigo? Que amigo? – Perguntou Sofia, tentando disfarçar. Sabia que Milena falava do jovem loiro que agora estava agachado entre o corredor e a sala, como preparado para qualquer reação rápida.

- Sim, seu amigo. O que promoveu o quebra-quebra no hospital com você. Ele também fez isso?

- Eu não sei do que você está falando... – Tentou desconversar Sofia.

- Ah, não? Um homem loiro, alto, cabelos e roupas estranhos que estava com você na sala de exames.

- Não tinha ninguém lá.

- A enfermeira e o segurança viram. Por um instante eu cheguei a pensar que esse seu amigo invisível não era tão invisível assim.

- Ótimo! Então acredita na enfermeira e não em mim... – Disse Sofia, mas foi interrompida pela amiga.

- Sofia, quem é esse homem e o que ele estava fazendo lá?

- Eu não sei! – Respondeu Sofia, sem saber o que dizer.

- Por que não a manda logo embora? – Perguntou o jovem loiro, irritado.

- Escuta, Sofia, isso está muito estranho.

- Eu sei... – Foi tudo o que Sofia conseguiu dizer.

- Primeiro você desmaia e quase morre afogada. Depois quase põe fogo na casa e agora destrói uma sala de exames em um hospital! E ainda tem esse homem... O que está acontecendo?

- Acredite Milena, se eu soubesse eu explicaria, mas...

- Mas eu sei! Você está desenvolvendo um quadro raríssimo de epilepsia. Ao menos, foi o que eu falei para justificar o quebra-quebra.

- Epilepsia?... Muito bem, e o homem que a enfermeira viu?

- Algum namorado tão perturbado quanto. – Respondeu Milena.

- Namorado? – Aquilo parecia absurdo para Sofia. Ainda mais se referindo à criatura morta agachada bem atrás dela. – Eu acho que prefiro a epilepsia. Mais real...

- Isso não é para ser motivo de piada, Sofia. Se você tiver de fato esse tipo de distúrbio terá que fazer um tratamento sério. Terei que avisar sua família, você terá que ficar acompanhada até os remédios começarem a surtir efeito, o que implica em uma licença maior do trabalho também.

- O quê?! Que história é essa de remédio? E de licença? Pior! Avisar a minha família...

- O que prefere? Ficar tendo crises, destruindo coisas na rua até parar em um hospital psiquiátrico? Ou chamarem um padre para te exorcizar pensando que é possessão? Encare os fatos, Sofia: você está doente. – Disse Milena, a expressão fria de um médico que dá um diagnóstico daqueles como se fosse a coisa mais vulgar do mundo. E com a mesma expressão, ainda pegou a bolsa e tirou uma caixinha dela. – Isso é para você.

- O que é isso? – Perguntou Sofia, perplexa.

- Deve te ajudar nos primeiros dias. – Explicou Milena.

- Eu não quero tomar isso. – Disse Sofia

- Mas você vai, ou serei obrigada a colocar você no hospital para enfiarem isso na sua veia. Agora seja boazinha, tome isso e vá para o seu quarto, porque eu só quero te ver amanhã. – Disse Milena, a expressão de quem realmente se segurava para não voar no pescoço de Sofia.

- Mas a cozinha...

- Deixa comigo. – Disse Milena enquanto Sofia virava de costas. – Ei! Espere. O remédio primeiro.

Sofia abriu a caixa de má vontade, tirou um comprimido de lá e o levou até a boca. Tudo sob a atenta supervisão do moço loiro.

- O que é isso? Isso não me parece bom... Não coma!... – Dizia o loiro, enquanto Sofia abria a boca e mostrava para Milena, a expressão debochada.

- Me diz que isso não vai acontecer novamente... – Pedia Milena, a expressão agora já de tristeza, mas Sofia não respondeu e foi para o quarto, demonstrando sua revolta o máximo que podia, enquanto o moço loiro ainda tagarelava.

- Eu disse para não comer aquilo, ela pode estar tentando envenená-la. Por que comeu? – Perguntava ele quando Sofia tirou o comprimido debaixo da língua, fazendo-o rir, aliviado. Mas quando ele fazia menção de falar algo, Sofia o interrompeu.

- Desculpe. – Sussurrou ela, sem saber ao certo por que, para depois se trancar no quarto e se atirar na cama.

***

Enquanto se revirava na cama, Sofia tentava compreender como as coisas haviam chegado naquele ponto.

Na verdade, poderia até dizer que tudo corria bem. Talvez não da forma como ela havia imaginado sua vida aos vinte e três anos de idade, mas tinha um emprego em um bom jornal, pagava suas contas (no sufoco)... Ainda morava com a amiga, era verdade mas considerava Milena mais do que isso, uma irmã, então estava feliz assim, enquanto planejava sua tão sonhada viagem para a Europa, devidamente patrocinada pelo pai que não via desde que era uma menininha de oito anos, e que nunca tinha feito muita falta mesmo... Finalmente poderia dizer que havia superado o inferno astral de sua vida, que coincidiu com o fim do namoro com o Fernandinho, o término da banda, a entrega de monografia de final de curso, a busca por uma vaga no mercado de trabalho, e agora que tudo parecia melhorar e entrar nos eixos novamente, sua amiga lhe dava remédios de tarja preta porque ela era a única pessoa que via dois fantasmas que, pelo visto, julgavam que ela havia sido a responsável por suas mortes...

Bem, talvez não fosse a única a vê-los, afinal, a enfermeira e o segurança viram o moço loiro. Seria alguma espécie de dom, de mediunidade, como as pessoas falam? Mas se ele estava ali o tempo todo, por que a enfermeira só o viu naquela hora, depois da confusão, que ela mal sabia como havia começado? Apenas se lembrava do moço se contorcendo no chão, e daquelas imagens embaralhadas quando tentava tirar os eletrodos de sua cabeça e a tocou. Sim... Ele a havia tocado, mas de uma maneira estranha, diferente do que aconteceu na cozinha e com o pobre motoqueiro que passou por ele sem sequer ter notado...

Aquilo tudo causava revoluções em sua cabeça, ainda mais aliadas às imagens confusas da hora do incidente. O que era aquilo, aquelas memórias de pessoas e lugares?... Estranho que algumas se misturassem com imagens de seus próprios sonhos, ou com algum tipo de lembrança que também era sua. Pelo menos a partir daquele instante. E o pior era saber que aquelas imagens desconexas, de uma estranha maneira, faziam Sofia se recordar daquele primeiro sonho...

Aquilo lhe causou tamanha ansiedade que preferiu andar. Abriu a porta do quarto e se deparou com o apartamento às escuras. A noite já ia alta, Milena já deveria estar dormindo. Dirigia-se para a cozinha para pegar um copo d’água quando percebeu, ou antes, sentiu, como um arrepio, que era observada. Virou-se e então se deparou com o jovem loiro encostado no portal da varanda.

- Ainda está aí? – Disse ela, deixando escapar seu pensamento.

- Para onde mais eu iria? – Respondeu ele, aproximando-se dela. – Está melhor?

- Um pouco... Eu... Estava pensando... Eu preciso entender.

- Eu também.

- Venha comigo. – Disse Sofia, voltando para o quarto.

Ela abriu a porta e esperou que ele entrasse, o que o moço fez, cuidando de observar cada detalhe, da luminária coberta por uma capa de lã cor-de-rosa felpuda até o painel com imagens de desenhos japoneses, que ele não compreendeu muito bem, assim como o mural com fotos, os livros na prateleira, a cadeira giratória, os sapatos entre a cama e o armário e o sino dos ventos com bonequinhas com asas de borboleta, que causaram riso ao jovem, que estendeu a mão e tentou tocá-las, mas não conseguiu. Recuou, só então reparando o que havia atrás de si, mais pela preocupação de Sofia do que por qualquer outro motivo.

- Cuidado! – Ela tentou alertar, mas a ponta do rack e alguns CDs já desapareciam na perna do jovem.

- Desculpe. – Disse ele constrangido, mais pelo estranho fenômeno que causava do que por ter esbarrado em algo.

- Ehr... Você... Quer sentar? Digo, você pode fazer isso, não? – Perguntou Sofia indicando a cadeira para ele, que levantou a sobrancelha, como se pensasse sobre aquilo. Ele se aproximou, encostando o dedo no estofado, e como se sentisse algo estranho, recuou.

- Eu prefiro ficar de pé, se não for ofendê-la. – Disse o moço.

- De forma alguma. – Respondeu Sofia, tomando ar. – Está tudo bem? Quero dizer... Como posso explicar?...

- Eu estou morto.

- Desculpe-me ter dado a notícia assim...

- E você está viva. – Continuou ele, como se não tivesse reparado o que ela falou.

- Pelo que me consta, sim.

- O que aconteceu?

- Eu não sei. Esperava que você me dissesse isso para poder tentar te ajudar.

- Então me ajude! Diga o que aconteceu. O que deu errado?

- Como assim?

- Disse que o encantamento não me deixaria morrer.

- Eu disse?

- Disse! Disse que eu iria até o Valhalla, pediria a benção aos meus antepassados e que voltaria invencível, que o ferimento era apenas uma forma de eu passar pelo portal, mas que quando eu conseguisse a benção, me traria de volta.

Conforme ele descrevia o que havia acontecido, seu sonho voltava à sua mente, e a mensagem das runas de um sacrifício que havia dado errado começava a fazer sentido. Ele continuou:

- E então veio uma dor profunda, e depois o torpor, o sono, e a última coisa de que me lembro é o fogo, os homens na porta e seu rosto em lágrimas como agora. – Disse ele, fazendo com que só então ela reparasse as lágrimas que brotavam em seus olhos. – Só que seus cabelos eram loiros, como o sol em uma tímida manhã de primavera.

- Quem fez isso com você? – Perguntou ela, tentando tocar no peito do jovem, onde ele tinha uma cicatriz no lugar em que antes batera um coração.

- Pensei que poderia ter sido você, mas a verdade é que... Eu não me lembro. – Disse ele, a expressão da incerteza. – Só me lembro do sono e de como tudo parecia sumir... Primeiro o calor, depois visão, o som, o ar, o chão debaixo de mim, e então só havia as lembranças, até que elas também foram sumindo. – Dizia ele, enquanto Sofia chorava de soluçar. – Mas então, em algum momento eu ouvi sua voz, como se me chamasse, no meio de um oceano de neblina. Parecia que chorava e seu coração sofria pela dor... E foi então como se eu despertasse de um sono, tudo ainda um tanto confuso enquanto eu procurava pela senhora. Foi terrível, porque não estava do meu lado. Eu a procurava naquele mar de nuvens sem fim, seguindo a sua voz, mas não a encontrava. Cheguei a pensar que havia me perdido no Niflheim, mas então, de alguma maneira, depois de vagar por toda aquela neblina úmida, eu finalmente a encontrei. Mas não me via. Ninguém parecia me ver ou me ouvir, e eu pensei que ainda estivéssemos presos em Niflheim...

- Niflheim? – Interrompeu Sofia, tentando se lembrar de onde conhecia aquele nome.

- Onde mais poderia sofrer de tal forma? Ter fome e não poder comer, ter voz e não ser ouvido, ter mãos e não poder tocar... – Disse ele esticando a mão e levando em direção ao rosto de Sofia, mas logo recuou. – Sequer ser lembrado! Isto é pior do que a morte. – Completou nervoso.

- Por favor, acalme-se! – Pediu Sofia, temendo cenas como a do hospital e a da cozinha.

- Mas então, apesar de tudo, a senhora me viu. E viu o que aconteceu nas runas, e me ouviu, e então eu tive esperanças de que enfim pudesse me libertar.

- Eu? Libertar você? Como?

- Terminando o ritual, talvez.

- Como? – Perguntou ela, assustada.

- Minha senhora... Edelweiss, foi quem iniciou, é a única pessoa que pode...

- Não! Deve haver algum engano. Essa Edelweiss não sou eu.

- Como não! Só a senhora poderia ter me chamado.

- Não! Deve haver alguma exceção à regra, porque eu não te chamei aqui.

- Como não? Eu ouvi. Foi sua voz que me guiou.

- Mas eu não conheço você, por que te chamaria? Quanto mais, ser capaz de fazer um ritual...

- Mas as runas...

- Ok, eu sei, eu jogo runas.

- Joga? – Estranhou o moço.

- Eu consulto as runas. – Corrigiu Sofia. – E eu não sei exatamente porque costuma dar certo, mas daí a ser uma feiticeira que brinca com a vida das pessoas, jogando espíritos da Terra para o Valhalla, para o Niflheim, e para onde mais que seja não é a minha.

- O que está dizendo?

- Que eu não sou essa Edelweiss. Eu posso até ser parecida com ela, uma parente distante, quem sabe... Talvez... Talvez devesse procurá-la. Se quiser eu ajudo.

- Mas eu já encontrei. É você.

- Não! – Disse ela, irritada. Depois continuou, mais calma. - Eu me chamo Sofia.

- Não! Por que acredita ter esse nome?

- Por que minha avó escolheu?

- Sua avó era uma feiticeira juta, nunca escolheria esse nome de grego para você. O que aconteceu? Por que acredita ser outra pessoa? Por quê... Usa esses trajes estranhos?

- O que tem os meus trajes?

- Não sente frio?

- Frio? – Espantou-se Sofia. – Deve estar brincando! Está no Rio de Janeiro, aqui nunca faz frio!

- Rio de Janeiro? – Estranhou ele.

- Rio de Janeiro, Brasil. Cristo Redentor, samba, futebol...

- Do que está falando? Que reino é esse, Rio de Janeiro? É alguma terra de sua família na Jutlândia?

- Ju... O quê? – Perguntou Sofia rindo.

- Jutlândia. Não se lembra? Praias de areia escura... Onde me viu pela primeira vez.

- Não. – Disse Sofia, agora assustada.

- Qual é o meu nome? – Perguntou ele, agora novamente alterado, aproximando-se dela. – Diga-me qual é o meu nome!

- Eu não sei! – Dizia ela, encolhendo-se perto da cabeceira da cama.

- Isso! – Dizia ele apontando para a cicatriz no canto direito do queixo, tão próximo de Sofia que a assustava – Lembra disso?

- Não! – Respondeu ela, trêmula.

- Por favor, diga que se lembra de alguma coisa. – Pedia ele, com certo desespero no olhar, antes de esbravejar. – Diga!

- Raewald! – A palavra praticamente jorrou da boca de Sofia, sem que ela soubesse ao certo como aquilo lhe veio à cabeça, ou se simplesmente havia passado por ela antes de falar, apenas se lembrando da estranha sensação que sentiu ao ler aquele nome na pesquisa de Gabriel.

Naquela hora o jovem se afastou, perplexo.

- Raewald... É você? – Perguntou Sofia. Ele riu ironicamente.

- Raewald... Até nessa hora, ele primeiro!

- Você não é Raewald?

- Não... Antes tivesse sido. Mas o destino tocou a hora que nasci com a mão esquerda, e quis que ele fosse Raewald, aquele que haveria de ser rei, e eu, Wulfgar.

- Wulfgar... É um nome bonito.

- A senhora já me disse isso antes. – Disse ele, agora melancólico.

- Eu creio que não, mas de qualquer forma, nunca é demais... Repetir.

- Não se lembra de nada?

- Já disse que não.

- Estou perdido! – Disse ele, jogando o corpo para trás e quase entrando no armário, mas então se equilibrou.

- Acalme-se... – Disse Sofia, tocada pelo sofrimento de Wulfgar. – Talvez haja algo que possamos fazer.

- Como tentar enganar o próprio Wotan, pedir o poder dos meus antepassados para destronar meu irmão e acordar em um reino amaldiçoado como um fantasma sem coração! – Disse ele tentando socar o chão ao seu lado, mas sem sucesso.

As palavras do jovem causavam um sentimento tão estranho em Sofia. Ela tremia e chorava, enquanto uma dor profunda lhe cortava o íntimo, tão profundamente que sequer reparou que a esta altura já havia descido da cama e ajoelhado no chão, diante dele, o olhar fixo naquele par de olhos azuis transparentes, e depois, nas fivelas da espécie de colete que ele usava, como se as pudesse abrir, mas como seus dedos apenas penetrassem uma espécie de nuvem eletromagnética e nela sumissem, ordenou:

- Deixe-me ver o que fizeram com você.

Wulfgar meneou a cabeça, negativamente, mas como Sofia o olhasse de maneira suplicante, terminou abrindo as fivelas e desfazendo o laço da camisa, deixando entrever um peito extremamente branco com uma grande cicatriz na altura do diafragma. Parecia uma cicatriz de cirurgia cardíaca mal costurada, queimada, não sabia bem ao certo. Porém pior do que ver aquilo era perceber que não havia nada ali dentro, apenas o frio, congelante, chocante, cada vez mais intenso enquanto ela tocava aquela espécie de nuvem. Um vazio que lhe assustou, doeu, enfureceu, não sabia bem ao certo como definir aquilo. Suas mãos tremiam assim como o restante de seu corpo de uma forma como nunca havia sentido antes, e então, desmaiou.

***

Primeiro havia uma praia de areia escura e de ondas fortes. Havia muitos homens estendidos na areia, a maioria, mortos. Dois, porém, estavam vivos – eram Wulfgar e seu amigo. Estavam molhados, pareciam ter se afogado. Precisavam de ajuda, mas não houve tempo. Logo estava em uma gruta escura, úmida, alguns raios de sol entrando por uma pequena abertura enquanto ouvia o som de um coração pulsando, forte sob sua cabeça... Essa imagem e esse som se desfizeram em flores brancas e gramados verdes, e então em fogo, por todos os lados, um telhado que já começava a desabar, e Wulfgar em seus braços, já sem vida, quando um homem de cabelos longos e castanhos entrou na sala, cercado de outros homens armados até os dentes que avançavam em sua direção, até que ela pegou o punhal que tinha nas mãos e o ergueu.

E então foi como cair em um abismo sem fim, até que despertou, exausta. A respiração ainda ofegante enquanto corria seus olhos por cada centímetro do teto. Era o seu lustre sobre a sua cabeça. Eram seus lençóis macios cheirando a lavanda na sua cama... Mas já era dia. E ao contrário do que geralmente acontecia, ela não estava sozinha. Bastava olhar para o lado e, espremido entre a cama e o guarda-roupa, as pernas longas esticadas sobre o tapete, lá estava Wulfgar, os penetrantes olhos azuis a lhe observar como se fosse um cão de guarda.

- O que aconteceu? – Perguntou Sofia.

- Você dormiu.

- Sim... E até sonhei. Mas eu não me lembro de ter deitado e dormido, só... Só me lembro do frio... – Dizia ela, já esticando a mão novamente em direção a Wulfgar.

- É melhor não. – Disse ele, tentando recuar.

- Por quê?

- A senhora desmaia.

- Você é bem frio... – Disse Sofia, constrangida por dizer o óbvio.

- Eu estou morto. – Disse Wulfgar, o tom tedioso de quem explica algo que é obvio, para depois deixar um silêncio constrangedor no ar.

- Sabe... – Começou Sofia, incomodada com o silêncio e com aqueles olhos a lhe encarar. – Eu devo estar ficando louca, mas... Essa sua história me impressionou... Tanto que eu cheguei a sonhar com isso.

- E o que viu? – Perguntou ele, demonstrando ansiedade.

- Mais ou menos o que me disse... Você e o grandão numa praia de areia escura... Depois havia uma espécie de gruta e eu escutava um coração bater forte, como... Como se o espírito daquela pessoa fosse tão bravio que mal coubesse dentro de seu próprio corpo... – Dizia ela, buscando palavras para se expressar, enquanto ele ria. – O que foi?

- Foi exatamente o que disse.

- Não entendi...

- Está começando a se lembrar. – Disse Wulfgar, sorridente.

- Não! Como posso me lembrar de coisas que nunca vi, ou fiz, ou disse antes, a não ser em meus sonhos, como isso, as florezinhas, o fogo?... A não ser que...

- A não ser o quê?

- Eu consigo ver suas memórias! Sim! Aconteceu durante o exame, enquanto tentava puxar os fios de minha cabeça, eu vi essas imagens! Isso explica todos esses sonhos... – Dizia ela olhando curiosa para ele. – Desde quando faz isso?

- O quê?

- Desde quando você me segue?

- Desde que caiu na água... – Disse ele, sem graça. – Eu não queria que isso acontecesse...

- Espere... Está dizendo que foi você que me fez entrar na água?

- Foi um acidente... A senhora...

- Você podia ter me matado! – Esbravejou Sofia, num tom histérico. – Por acaso queria se vingar em mim do que fizeram com você? Eu tenho culpa de que uma louca muito parecida comigo lhe enganou, e se enganou também!? Quem sobreviveria a um ferimento desses? Não teria Wotan nem antepassado que salvasse você, muito menos ela daquele homem que...

- Espera, do que está falando? – Perguntou Wulfgar. – Que homem é esse?

- Que homem? Do que estava lá.

- Não havia homem algum além de mim e de Grindan lá.

- É claro que havia... Eu vejo suas lembranças, se esqueceu? Deveria estar já agonizante, confuso... Eu espero... – Deixou escapar Sofia.

- E se não? E se a essa altura eu já estivesse de fato morto? – Perguntou ele, perspicaz.

- Então isso é loucura! Na verdade, já é, não há outro nome para isso... – Dizia Sofia quando foi interrompida por batidinhas na porta. – É a Milena! É melhor se esconder.

- Por quê? Só você pode me ver...

- Mas é muito mais difícil dizer para ela que eu não vejo ninguém com você na minha frente. – Esbravejou Sofia, tentando manter o tom de voz baixo, o timbre histérico ainda mais evidente.

- Para onde eu vou, então?

- Sofia, eu sei que está aí, eu já estou atrasada, então seja boazinha e abra a porta logo. – Falava Milena do lado de fora do quarto, enquanto Sofia respondia a Wulfgar.

- Banheiro. – Disse Sofia, mas como se ele parecesse perdido, explicou. – Onde as pessoas tomam banho.

- A pequena cascata onde se banhava ontem.

- Que seja, vai logo. – Dizia ela, enquanto Milena insistia.

- Sofia, o que está acontecendo?

- Já vou. – Respondeu Sofia para Milena, colocando um robe e indo em direção à porta, quando Wulfgar a chamou.

- Edelweiss! – Chamou Wulfgar.

- Eu já disse que não sou Edelweiss! – Esbravejou Sofia.

- A porta, eu não consigo abrir. – Explicou ele, tentando segurar a maçaneta.

- Eu não posso acreditar que isso esteja acontecendo comigo! – Disse Sofia, correndo para abrir a porta do banheiro. – Entra e fica quieto. – Ordenou Sofia a Wulfgar, correndo, logo depois, para abrir a porta do quarto.

- O que aconteceu? Com quem estava falando? – Perguntou Milena assim que entrou no quarto, o olhar de uma mãe terrível vasculhando cada canto do quarto, sabia-se lá em busca do quê.

- Celular... Redação. – Respondeu Sofia, tão logo viu o celular sobre a mesa.

- Uhum... – Disse Milena, a expressão de desconfiada. – Por acaso ligou o ar no máximo? Esse quarto está um gelo...

- Tem feito muito calor. – Respondeu Sofia.

- É... Tem sim... – Comentou a amiga. – Escute... Sabe aquele creme de cabelo que te emprestei outro dia?

- Ah, Sim! Sei sim... – Dizia Sofia observando, com o canto do olho, Wulfgar inspecionar o banheiro, cheio de curiosidade.

- Eu vou precisar dele.

- Claro. Espera um instante que eu pego. – Disse Sofia, entrando no banheiro quase em um pulo, onde se deparou com Wulfgar, encarando a pia de louça branca e a torneira dourada como se fossem um tesouro.

- Isto é ouro? – Perguntou ele. – E isto... É um espelho? Sabe quanto os reis dariam para ter este espelho? – Ele foi interrompido por um gesto de Sofia pedindo silêncio, ao que ele ergueu as duas mãos, como sinalizasse que estava tudo bem.

Foi quando os dois foram surpreendidos por Milena.

- O que foi? Por que o susto? – Perguntou Milena entrando no banheiro.

- Porque eu não te esperava aqui dentro. – Respondeu Sofia, entregando o pote à amiga. – Tome. Aqui está.

- Na verdade... Será que poderia me emprestar aquele seu secador pequenininho de viagem também? – Perguntou Milena, olhando todos os cantos.

- Claro. – Respondeu Sofia, abrindo uma gaveta, pegando o secador o mais rápido que podia. – Pronto. É só isso?

- Sofia, minha amiga, se eu não a conhecesse tão bem, eu diria que está sendo hostil pelo nosso desentendimento de ontem à noite.

- Não diga! – Comentou Sofia, ironicamente. – E fazendo uso do mesmo argumento, eu diria que está procurando alguma coisa.

- Que você está tentando esconder de mim. – Respondeu Milena rapidamente.

- Você já invadiu o meu quarto e vistoriou o meu banheiro. O que poderia ser?

- Eu não sei... Eu ouvi você conversando com alguém... Ainda estava se arrumando quando abriu a porta, e ainda está vermelha...

- Eu não estou vermelha! – Negou Sofia rapidamente.

- Está sim. – Disse Wulfgar no ouvido de Sofia, o torpor daquela proximidade quase se apoderando dela novamente.

- Ah, está sim. – Respondeu Milena, quase em uníssono com Wulfgar. – E considerando o cheiro que está nesse quarto...

- Cheiro? – Entranhou Sofia.

- Que cheiro? – Perguntou Wulfgar, também sem compreender.

- Algo como um odor de couro, de suor... Tão peculiar.

- Ei, não está tão ruim assim não. – Resmungou Wulfgar.

- Estranho que se combina com um quê verde... – Continuou Milena.

- Alguma nova fragrância, senhora perfumista? – Perguntou Sofia, ironicamente.

- Cheiro de homem.

- Ótimo. E posso saber de que homem por acaso teria vindo esse cheiro? Porque eu não vejo nenhum homem aqui. – Disse Sofia, tentando não pensar em Wulfgar, bem na sua frente.

- Ei! E eu? Estou morto, mas ainda conto como homem, não? – Perguntou ele.

- Talvez ele tenha saído antes de eu entrar... – Disse Milena.

- Ah, sim, e ele está no parapeito da minha janela esperando você sair. – Disse Sofia.

- Não, eu estou aqui. – Respondeu Wulfgar, aproximando-se de Sofia.

- Como você é engraçada. – Comentou Milena ironicamente. – Talvez tenha recebido o seu namorado misterioso enquanto eu dormia.

- Ela está falando de mim? – Perguntou Wulfgar a Sofia.

- Já chega! – Gritou Sofia, já irritada com Wulfgar e Milena falando quase ao mesmo tempo. – Eu não quero ouvir mais nenhuma palavra!

Um minuto de silêncio passou. Sofia irritada, Milena perplexa e Wulfgar, de braços cruzados e com a expressão carrancuda.

- Sofia... Eu... – Começou Milena.

- Desculpe, Milena... – Disse Sofia. Sabia que por mais irritante que Milena fosse, ela estava certa...

- Humpf! Ela ainda fala mal do meu cheiro e pede desculpas a essa serviçal? – Comentou Wulfgar, indignado.

- Está tudo bem... – Continuou Milena. – Eu fiquei impressionada com o que a enfermeira disse e os ruídos à noite.

- Ruídos? – Estranhou Sofia, dirigindo o olhar para Wulfgar, que a princípio não compreendeu nada.

- E a bagunça na mesa da cozinha. – Acrescentou Milena, Wulfgar, acenando negativamente com a cabeça, mas logo depois, levantando as sobrancelhas, exclamou:

- Grindan! – Disse ele, saindo rapidamente do quarto, seguido de Sofia, que foi verificar o que havia acontecido.

Chegando na cozinha, havia fatias de pão de forma e biscoitos no chão, assim como água. A toalha da mesa estava revirada. E no canto, entre a mesa e a geladeira estava Grindan, escondendo-se de Wulfgar que a essa altura já o havia encontrado e o levantava pelo braço.

- Era mais fácil imaginar que se tratava de cão do que de um homem! – Ralhava Wulfgar com Grindan.

- Você pensa que eu seria capaz de fazer isso? – Perguntou Sofia a Milena, tentando não olhar para a cena que acontecia perto da geladeira.

- É claro que não! Mas você tem de convir que coisas estranhas estão acontecendo nos últimos dias, especialmente com você e... – Dizia Milena quando o celular que estava sobre a mesa tocou, vibrou, acendeu, chamando a atenção dos dois homens que até então discutiam, mas que a partir daquele momento voltaram-se para o aparelho como se fosse um animal a ser caçado. E como Milena não fizesse menção de atender, Sofia interveio.

- Seu celular. – Dizia Sofia para a amiga

- Isso é bruxaria... – Comentava Grindan, bastante assustado, enquanto Milena respondia à amiga.

- Estou dizendo que coisas estranhas têm acontecido nessa casa, e espero que me dê alguma explicação para isso. O celular pode esperar. – Dizia Milena.

Mas a curiosidade dos dois fantasmas não. E não demorou para que Wulfgar colocasse a mão no objeto e soltasse um grito.

O celular foi ao chão.

E Milena gritou, assustada.

- O que houve? – Perguntava Sofia apreensiva, um tanto por Wulfgar, caído parecendo zonzo, outro tanto por Milena, que à sua maneira racional, científica, parecia ter percebido alguma coisa, e agora, tremia.

- Você viu?... – Balbuciava Milena. – O telefone.

- Ele caiu. – Dizia Sofia, o incômodo de mascarar com o óbvio a verdade.

- Não! Ele simplesmente voou. – Consertou Milena.

- Ele estava no vibra call! Simplesmente foi tremendo até cair no chão. – Argumentava Sofia, afinal, aquela parecia uma alternativa óbvia.

- Não! Eu vi! Ele voou. Ou melhor, foi empurrado. Eu vi o borrão. – Disse Milena, ainda perplexa.

- E o que acha? Que estamos sendo assombradas? Cuidado, Milena! Ver coisas nunca é um bom sinal. – Disse Sofia, ironicamente.

- É, talvez eu já esteja embarcando na sua loucura, acreditando nos seus truquezinhos baratos...

- Está me chamando de charlatã? – Perguntou Sofia, agora ofendida.

- Sinceramente, eu já não sei do que lhe chamar... – Disse Milena, a voz e a expressão tristes.

- Antigamente amiga bastaria.

- Eu sei... Mas está tão diferente que sequer parece minha amiga. – Disse Milena, pegando o celular do chão, colocando-o dentro da bolsa. – Eu vou sair depois do trabalho hoje, a casa é toda sua. Só, por favor, não ponha fogo nela, quebre o que temos, assuste o vizinho ou muito menos ponha tipos estranhos aqui dentro. Falando nisso, o Gabriel ligou.

- Gabriel?... – Murmurou Wulfgar, finalmente falando alguma coisa após o incidente com o celular que o deixou desorientado caído no chão. Milena, como se não visse ou ouvisse qualquer coisa, continuou.

- Eu não sei qual é a participação dele nisso tudo, mas caso não seja o Gabriel o responsável, veja se não o assusta com isso também, ok? – Até mais. Se precisar de ajuda, ligue. – Dizia Milena já com as chaves na porta, deixando Sofia decepcionada e confusa.

Tão logo a amiga saiu de casa, Sofia deixou o peso de seu corpo leva-la até o sofá, onde sentou, perto de onde Wulfgar estava.

- Gabriel... É como chamam o garoto, não? Ele lhe procurou? – Perguntava Wulfgar, mas como se não obtivesse resposta, insistiu, incisivamente. – Responda-me!

Grindan então, percebendo o que acontecia, aproximou-se do amigo e sinalizou para que ele se afastasse da moça, o que Wulfgar fez, muito a contragosto, levantando-se e indo para outro canto da sala, apenas para observar Sofia, as mãos sobre a face, os cabelos vermelhos caídos sobre o rosto, ocultando-o ainda mais.

Mas Wulfgar não precisava ver o rosto de Sofia para saber o que acontecia. Ele sentia. E então, mesmo sob os protestos de Grindan, aproximou-se dela, quando Sofia finalmente falou:

- Diabos, o que está acontecendo comigo!? Eu tinha uma vida! Poderia não ser dar melhores, mas era a minha vida e de repente... – Dizia, quando foi surpreendida pela estranha sensação de tocarem seus cabelos. Então ela tirou as mãos de sobre os olhos e se deparou com Wulfgar, aqueles olhos azuis que não sabia por que sempre lhe traziam tanta paz, mas que agora pareciam maculados por uma sombra de tristeza, quando ele viu as lágrimas que rolavam pelo rosto da jovem. – Droga! Por que eu não consigo odiar você? A culpa de eu estar sendo tida como louca é sua! Eu quase morri por sua causa! Estou de licença e posso perder o meu emprego, minha amiga, minha casa porque me confundiu com uma fulana qualquer, e eu não consigo sentir raiva de você! E por que me olha assim?

- Está chorando. – Respondeu ele.

- Sim! De raiva! E a culpa é sua! Olhe para mim agora, chorando porque eu falo com fantasmas que ninguém mais vê, e que me acusam de ser uma espécie de despachante astral! – Resmungava Sofia.

- O que está falando? – Pergunta Wulfgar, sem compreender nada.

- Por acaso pensa que falar com alguém que só você vê é normal? – Pergunta Sofia, o tom histérico.

- Para você, sim. – Respondeu ele, ao que ela sorriu ironicamente.

- No seu mundo, em que alguém muito parecido comigo manda você de um lado para o outro da vida como se isso fosse algo normal, e ainda arranca o seu coração sem que você perceba, pode ser muito normal. Mas eu tenho uma novidade para você, esse não é o seu mundo e tudo isso é um absurdo! – Resmungava Sofia.

- E que mundo é o seu? Um mundo cheio de caixas que andam, sobem, descem, com pessoas pequeninas aprisionadas dentro delas, e todas aqueles fios mágicos que colocaram em sua cabeça, e agora essa... Pedra que acende e treme e causa dor, como os fios mágicos... – Reclamava Wulfgar.

- Aquilo eram eletrodos! Eu ia fazer um exame, muito simples. E a pedra mágica é um celular, só isso! – Explicou Sofia, já irritada.

- Ce... O que isso significa? – Perguntou ele, curioso.

- Significa que aquilo não é uma pedra, muito menos mágica, é apenas um aparelho. – Disse ela.

- Aparelho? – Estranhou Wulfgar.

- Máquina?... – Disse Sofia, esperando alguma resposta, mas como se aquilo não parecesse fazer sentido algum para ele, continuou. – Nós usamos para falar com os outros.

- Por que simplesmente não falam? – Perguntou Grindan, intrometendo-se.

- Usamos para falar com pessoas que estão longe. – Explicou Sofia, o mais paciente possível.

- Então, como pode dizer que não fala com pessoas que os outros não vêem? – Perguntou Wulfgar, o que causou risos em Sofia.

- Sabe... Para um homem morto, até que você é inteligente... – Disse Sofia a Wulfgar, e depois, dirigindo-se para Grindan, disse. – E você é um porco.

- Desculpe, senhora, eu tentava comer. – Disse Grindan, fazendo uma mesura.

- E onde já se viu morto comer? Vocês são alguma espécie de zumbi, por acaso? – Perguntou Sofia.

- Zum... O quê? – Perguntou Grindan, mas logo foi repreendido por Wulfgar.

- Esqueçam... – Disse Sofia, olhando para os dois. – O que eu faço com vocês?

- Ajude-nos! – Disse esbaforido o ruivo.

- Grindan! – Ralhou Wulfgar, e depois se dirigiu a Sofia. – Desculpe as maneiras de meu amigo...

- Wulfgar, ele está certo. – Interrompeu Sofia. – Por alguma razão estranha, estão presos aqui, e se só eu os vejo, então eu acho que sou eu a pessoa que deve ajudá-los a ir para a luz.

- Ir para onde? – Perguntou Wulfgar, sem compreender.

- Ir para a luz, para o Céu, o Nirvana... Ah, esqueci, para vocês é Valhalla.

- Ela queria evitar que fôssemos para lá e agora quer que a gente vá? – Perguntou Grindan a Wulfgar.

- Eu já disse que não fiz isso com vocês. Se tivesse feito, saberia provavelmente o que deu errado e trataria de consertar... Como se isso fosse algo natural! – Resmungou Sofia, mas então, voltou a si. – O pior é que eu nem sei por onde começar! Talvez... Talvez Gabriel saiba de algo, mas como eu vou chegar para ele e perguntar se tem algum livro com rituais pagãos para fazer um espírito europeu de clã indefinido “cantar para subir”?... – Pensava Sofia em voz alta enquanto andava de um lado para o outro da sala.

- Compreende o que ela diz? – Perguntava Grindan a Wulfgar, que meneava a cabeça e sinalizava para que o amigo fizesse silêncio e seguisse com ele e a moça, que agora se dirigia par ao quarto.

- Pior é que eu duvido que alguém tenha se prestado a escrever algo sobre isso... Talvez livros de magia, mas eles não são sérios...

- Do que está falando? – Perguntou Wulfgar.

- Exatamente... O que vocês são? – Perguntou Sofia, abrindo o laptop.

- Como, o que nós somos? Somos isto. – Respondeu Wulfgar, apontando para si mesmo.

- De onde vieram? Qual era o lugar de que se lembram de estar pela última vez?

- Jutlândia. – Disse Grindan.

- Mas não somos jutos. – Disse Wulfgar. – Somos...

- Saxões! – Interrompeu Sofia, o ar de tédio.

- Não! – Responderam os dois, fazendo uma careta.

- São o que, então?

- Nascemos na Ânglia.- Respondeu Wulfgar.

- Ela sabe disso... – Resmungou Grindan, recebendo um olhar de reprovação do amigo.

- Ânglia... Do tipo anglos?

- Isso! – Responderam os dois ao mesmo tempo, muito felizes.

- Espertos o suficiente para deixar os saxões fazerem o trabalho sujo e deixar os jutos para trás. – Disse Grindan, orgulhoso.

- Você se lembra dos anglos. – Disse Wulfgar, feliz.

- Eu e todo mundo. São famosos, invadiram a Bretanha com os saxões.

- Sim! Nossa terras, ao norte do rio Umber.

- Então são anglos invasores da Bretanha que visitavam a Jutlândia, o que nos dá... – Disse ela, digitando no computador e esperando um pouco, falou – três países de busca.

- Como? – Estranhou Wulfgar, se aproximando de Sofia, olhando com curiosidade para mais uma de suas caixas.

- Sua querida terra na Bretanha, Northumbria, agora pertence a um país chamado Inglaterra, que recebeu esse nome justamente em homenagem a vocês, os anglos, que por sua vez vieram de uma região na península da Jutlândia, entre a atual Alemanha e a Dinamarca, onde viviam os jutos. – Disse ela, orgulhosa, apontando para a tela.

- Está dizendo que os grandes campos da Bretanha são essa pequena mancha verde? – Perguntou Wulfgar rindo. – Mas teríamos que ser menores que os anões para poder viver lá.

- Isso é apenas um desenho. Estou pensando em onde posso encontrar pistas sobre vocês. Que língua vocês falam? Inglês, alemão... Bem, acho que não devem falar dinamarquês, porque se não eu não entenderia uma só palavra e... Espera um pouco! Mesmo que falem inglês ou alemão seria alguma coisa bem arcaica e eu não entenderia uma só palavra, e não me lembro de estar traduzindo.

- É claro que não está traduzindo. Está falando a mesma língua que nós! – Disse Wulfgar.

- Não! Eu falo português. – Afirmou Sofia. Este era um ponto sobre o qual não havia dúvida.

- Português? Que língua é essa? – Quis saber Grindan.

- Algum tipo de grego? Ou latim? – Perguntou Wulfgar.

- Isso. É uma língua latina! – Assentiu Sofia.

- De onde? – Perguntou Wulfgar, curioso.

- De... Portugal?... – Sofia já estranhava aquilo.

- Portugal?... Ah! Portus Calle? – Perguntou Wulfgar, e depois, virando para Grindan acrescentou. – Lusitânia.

- Lusitânia? – Sofia estranhou o termo antigo, assim como Ânglia e Jutlândia para países conhecidos. – Espera um pouco... Disseram que conquistaram terras na Northumbria?

- Isso! Nós dois. – Respondeu Wulfgar, orgulhoso.

- E Portugal ainda era parte do Império Romano? – Perguntou ela, os dois riram.

- Roma caiu. Resolveram aceitar o deus dos cristãos... Agora aquilo está cheio de suevos e godos. – Disse Wulfgar com a complacência de um analista político.

- Agora? – Estranhou Sofia. – Quantos anos você tem?

- Anos? – Estranhou Wulfgar.

- Sim! Anos. Qual é a sua idade?

- Bem, os padres é que gostam dessa história de anos... Eu tenho vinte e quatro invernos. – Disse Wulfgar.

- Ótimo. Mas... Lembra do ano dos padres? O Ano Domini?

- Eu não gosto de padres. Passam o tempo todo rezando e dizendo que devemos acreditar no deus deles... – Resmungou Wulfgar.

- Ok, mas...

- Ok? – Estranhou Wulfgar.

- Está bem... – Traduziu Sofia, e respirando profundamente, como se fosse conseguir paciência com aquilo, continuou. – Mas eu preciso saber o ano dos padres.

- Bem... Eles falavam no ano Quinhentos e Setenta e Dois da Graça.

- Quinhentos?! – Exclamou Sofia, levando a mão à boca e dando um salto da cadeira, os olhos arregalados de susto.

- E Setenta e Dois – Concluiu Wulfgar, estranhando a reação de Sofia, mas mesmo assim continuou. – Na verdade, não sei por que contar a data por eles, porque sequer tem o mesmo número de meses que o nosso...

- Quinhentos e setenta e dois! – Interrompeu Sofia. – Isso dá... Quase mil e quinhentos anos! Ou invernos, se preferir.

- O que quer dizer com isso? – Perguntou Wulfgar, assustado.

- Que eu não sei o que ficaram fazendo por quase mil e quinhentos anos...

- Isso é muito tempo? – Perguntou Wulfgar.

- Como? Você não sabe? – Estranhou Sofia.

- E eu deveria saber?... – Perguntou Wulfgar, displicente.

- Meu Deus, o que você sabe? – Perguntou Sofia, perplexa.

- Pois saiba que eu fui educado nas artes da baronia. Sei caçar, lutar com várias armas, conheço a língua de vários povos, tocar harpa e... Ler. – Disse ele, quase sussurrando.

- O pai obrigou-o a ouvir os padres para aprender isso. – Disse Grindan, rindo.

- Mas eles não lhe ensinaram matemática. – Disse Sofia.

- O que é isso? – Quis saber Wulfgar, curioso.

- Esqueça. Para a sua época, você deveria ser praticamente um intelectual... – Admitiu Sofia.

- Eu não sei o que é isso, mas eu sei o que sou. Posso não ter sido criado para ser rei, mas fui criado para ser seu representante, e seu campeão. Tudo o que deveria ser resolvido que pudesse ser feito pela palavra ou pela força era feito por mim. – Disse Wulfgar, orgulhoso.

- E acredite, a maior parte era sempre pela força. – Comentou Grindan.

- Eu imagino... – O ar displicente enquanto encarava Wulfgar, de braços cruzados, a pose de conquistador orgulhoso de si mesmo. – Pois muito bem, senhor campeão, o fato é que agora tudo o que restou do mundo em quem vivia são achados arqueológicos e lendas, e eu não faço a menor noção de onde eu posso achar alguma informação sobre como mandá-los de volta... – Dizia Sofia quando uma musiquinha veio do outro lado do quarto.

- O que é isso? – Perguntou Wulfgar, ressabiado.

Mas Sofia não respondeu. Ao invés disso, correu para atender o celular antes que a cena anterior se repetisse, e seu celular novinho e caríssimo (ainda sendo pago!) se espatifasse no chão. E sinalizando para que os dois fantasmas parassem e fizessem silêncio, respirou e atendeu o telefone.

- Alô? Gabriel? Que bom falar com você!

- Nossa, com essa recepção, fico até feliz. – Respondeu Gabriel, do outro lado da linha.

- Eu preciso falar com você. – Disse a moça, praticamente atropelando o amigo.

- Tudo bem... – Disse ele, recitativo. – Apesar de preferir ouvir que queria sair comigo. Eu não esqueci que hoje é seu último dia de folga, mas infelizmente, somente agora que os professores me libertaram...

- Sem problemas. Onde posso encontrar você? – Perguntou Sofia, tendo que começar a andar pelo quarto, na tentativa de fugir de Wulfgar, que a seguia como um cão farejador.

- Uhm... Talvez possamos fazer um programa mais leve hoje... Que tal um cinema?

- É o garoto, não? Por que eu só ouço a sua voz? – Perguntava ele, quase lamentando o fato de não poder ouvir a conversa, enquanto Gabriel respondia a Sofia.

- Cala a boca! - Disse Sofia entre os dentes para Wulfgar.

- O que foi que disse? – Perguntou Gabriel, estranhando o que parecia ter ouvido.

- Ah... Desculpa... Eu estava falando com... A Milena. – Disse Sofia, o olhar de reprovação para Wulfgar.

- Mande um beijo para ela. – Disse Gabriel, simpaticamente.

- Pode deixar, ela vai adorar saber que mandou um beijo para ela. – Disse Sofia já deixando transparecer na voz novamente toda a sua irritação enquanto olhava para Wulfgar, que sem compreender a ironia, tentava encostar no telefone, ao que ela era obrigada a recuar.

- Então... Tem uns filmes legais passando, para todos os gostos: comédia, aventura, romance, guerra, épico e até animação. Algum que queira ver?

- Qualquer um, o importante é a companhia mesmo... – Respondeu Sofia, tentando encerrar a conversa o mais rápido possível enquanto subia na cama e andava sobre ela para se dirigir ao outro lado do quarto, ao que era seguida por Wulfgar, e suas pernas que desapareciam no edredon, como se vadeasse um rio, o que lhe causava pavor.

- Gostei da resposta. Então, deixe por minha conta, que eu escolho um filme bem interessante para aproveitarmos a companhia. – Dizia ele quando Sofia virou para trás e se deparou com Wulfgar extremamente próximo, a ponto dela tentar afastá-lo com a mão, em um reflexo rápido e inofensivo. Ao menos seria, caso ele não fosse um fantasma, e o seu simples toque quase fizesse seu sangue congelar, a cabeça girar enquanto um choque, como um leve formigamento, corria por seus nervos.

Sofia gemeu ao sentir aquilo. Wulfgar se afastou tão rapidamente como um gato, assustado ao ver Sofia cambalear até cair na cama.

- Esse gemidinho foi de felicidade? – Perguntou Gabriel, do outro lado da linha.

- Gabriel, eu estou um pouco ocupada agora, então... Onde e que horas? – Disse Sofia, com o pouco de consciência que lhe restava.

- Eu passo aí. Umas seis horas, está bom?

- Ótimo. Até mais.

- Até mais. – Disse Gabriel, desligando o telefone.

Sofia desligou o telefone, ainda zonza, quando Wulfgar se aproximou.

- Desculpe... – Disse ele.

- Nunca mais faça isso! - Interrompeu Sofia, ainda zonza.

- Essa pedra é estranha... Disse que pensam que é louca por falar comigo, mas fala sozinha com essa coisa na orelha. – Resmungou Wulfgar.

- Eu não estava falando sozinha.

- Era o garoto, não? – Perguntou Grindan.

- Também acha que ele é um garoto? – Perguntou Sofia, ironicamente. – Sabe, pode ser um porco, mas eu gosto de você.

- Costumo fazer isso com as mulheres. – Disse Grindan, convencido.

- E então? – Perguntou Wulfgar, entediado.

- Conseguimos ajuda da cavalaria. – Disse Sofia, finalmente se apoiando sobre os cotovelos e encarando Wulfgar.

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