Heitor Newman é um jovem de quinze anos que procura refúgio em São Havier logo após a a invasão do exército turcano em seu próprio país. Precisa conciliar a vida na nova escola com o trabalho na padaria de sua mãe, assim como o medo de uma nova invasão. O partido purianista ameaça a todo instante invadir São Havier, e o clima de guerra paira sobre todo o país, enquanto as manchetes nos jornais lembram diariamente que ele e sua mãe ainda correm risco de vida.
Ler maisO clima gelado era cada vez mais notável. O velho ônibus bufava uma fumaça acinzentada muito densa e, com certeza, qualquer um que viesse atrás não poderia enxergar um palmo à frente do para-brisa. A vegetação era muito diferente de onde os dois estavam saindo. O que antes era verde-vivo, agora beirava o preto e branco da neve e das folhas murchas. Um sol fraco beijava as copas das árvores que pareciam não se incomodar e só faziam acumular mais neve.
Heitor e sua mãe vinham de um país vizinho, um país mais verde e mais quente. Mais aconchegante, talvez. Chamava-se: Brigada e em nada se parecia com o lugar que atravessavam agora. Por mais que fossem vizinhos, os dois países eram totalmente diferentes. Heitor notou que, enquanto saíam de Brigada, a vegetação tornara-se escassa e que o clima desértico perdeu espaço mais à frente para, por mais confuso que pareça, um clima de gélido, coberto por neve e de ar anuviado.
Fazia duas horas que tinham atravessado a fronteira para São Havier e Heitor já não podia sentir suas mãos, que congelavam mesmo mantendo-as nos bolsos do sobretudo preto que sua mãe o emprestara. Uma pequena boina cobria seu cabelo engomado e uma fumaça de vapor pairava sobre seus olhos sempre que respirava, encontrando-se com a janela embaçada do ônibus. Ao seu lado, sua mãe: Antonella cochilava completamente despreocupada, enquanto sua cabeça chacoalhava de acordo com o ônibus. A mulher era morena de olhos azuis-vivos e, ao acordar, esbanjou um sorriso gentil que ofuscou seu cachecol preto e sua boina de tricolina bege-acinzentado.
— Acordado, querido? — Antonella olhou para os lados, tentando entender onde estavam e voltou-se para o menino — Estamos quase em Romana, melhor ir preparando as malas.
As duas malas gigantescas estavam aos pés dos dois, ambas abertas pois, conforme o clima esfriava, os dois puxavam para si novas peças de roupas.
— Ficaremos muito tempo aqui? — Heitor perguntou enquanto tentava fechar a sua mala estufada.
— Vamos morar aqui, querido. — A mulher deu mais um sorriso e seus olhos quase se fecharam. Logo o ônibus começou a desacelerar.
“Podem desembarcar por aqui e por favor deixem os passes comigo!” Gritava o motorista enquanto se virava de seu assento para recolher os passes das pessoas que desembarcavam ao seu lado.
O frio parecia duas vezes pior do lado de fora do ônibus e a brisa gélida parecia travar as pernas de Heitor, que agora atravessava a rua para pegar uma carruagem com sua mãe enquanto carregava com dificuldade sua gigantesca bagagem.
— Vamos, querido! Está muito frio aqui fora... — Antonella dizia, ajudando Heitor a carregar a mala para dentro da carruagem.
O cocheiro não deu um pio o caminho inteiro. Pelo contrário, ignorou qualquer tentativa de diálogo que a mulher tentara e ao fim só fez estender a mão para pegar o dinheiro.
— Aqui estamos. Lar doce lar! — Eles olhavam para a casinha verde-escuro do outro lado da rua enquanto a carruagem sumia ao fim da estrada de paralelepípedos. A porta surgia ao fim de cinco pequenos degraus e ao lado da porta uma janelinha branca dava um ar comportado à faixada.
Por dentro não era nada extravagante. As paredes tinham uma cor verde também, porém mais claras e o teto branco não parecia combinar com nada mais da casa.
Heitor subiu as escadas para o segundo andar, onde ficava seu quarto, e colocou a mala em cima da cama. Pôs-se a frente da pequena janela arredondada e congelou alguns minutinhos, apreciando a vista branca dos telhados cobertos de neve que se misturavam com o céu nublado.
O clima nada se parecia com seu país natal, mas não deixava de ser agradável. O branco para todos os lados lhe dava um ar sereno que Brigada nunca tivera.
“É, São Havier parece uma boa escolha para recomeçar” Pensou o garoto segundos antes de se virar para a porta onde sua mãe estava parada, apreciando-o.
— Que está pensando, Heitor? — A mulher apoiara a cabeça no batente da porta e cruzara os braços devido ao frio.
— Nada, mãe — O garoto colocava a boina em cima da cômoda, ao lado da janela redonda, e tombava os suspensórios para fora dos ombros. — Só... não via problema algum com Brigada.
O garoto agora sentara na cama de colcha verde, como todo o resto da casa, e sua mãe sentou-se ao seu lado.
— Estava cada vez mais difícil viver lá, querido. Já providenciei tudo aqui. — A mulher se levantou e seus olhos azuis brilharam por um momento. — Agora durma, amanhã é dia seis, ou seja: vamos cedo à padaria. O serviço não pode parar.
E com um sorriso jovial Antonella deixou o quarto de Heitor, que deitou olhando para o teto com uma miríade de pensamentos ricocheteando em sua cabeça; a respeito de sua nova vida em São Havier.
O céu de fevereiro parecia mais branco no dia seguinte. A janela redonda do quarto de Heitor estava coberta de neve. Pelo visto a nevasca aumentara durante a noite e o frio de agora parecia queimar a pele do garoto, que acordara com um susto.
“Heitor! Heitor, querido. Desça aqui!”. A voz de Antonella se espalhou pelo quarto e momentos depois, com ruídos de passos sobre o chão de madeira forrado em carpete, a mulher entrou no quarto de Heitor, que mais parecia um zumbi.
— Ainda deitado?! Vamos, temos visita! — A mulher saiu pelo corredor, deixando a porta do quarto bater.
O menino não teve muita escolha, levantou-se e prendeu novamente os suspensórios sobre os ombros. Pegou sua boina bege e rumou para o corredor, mas parou sob o batente da porta, voltou os olhares para a janela redonda e preferiu pegar um casaco de lã preta que ganhara de natal no ano passado e apoiou um cachecol sobre o ombro; para usá-lo quando fosse para a padaria com a sua mãe.
Caminhou sobre o chão velho que rangia com mais vontade hoje do que ontem. Uma brisa serpenteou a nuca de Heitor que não pôde esconder o calafrio e ao descer a escada no fim do corredor — que dava à sala-cozinha — conseguiu ver uma senhora de óculos, magricela e muito nariguda; de cabelos loiros tão desbotados que lhe delatavam a idade. Um sobretudo amarelo horrível e uma pinta um pouco acima de sua clavícula dava o toque final à convidada.
— Aí está ele! — Entusiasmou-se a senhora, vindo em sua direção e apertando-lhe as bochechas com força desmedida. — Que rapazinho bonito!
— Heitor, querido. Esta é dona Valentina, a mulher de quem comprei a padaria e o imóvel. — Antonella apoiava-se no balcão da cozinha e mantinha um sorriso fraco que contrastava com o olhar penetrante, quase dissimulado.
— Sempre disse. Ah! Sempre mesmo... veja! Os olhos de Erick, não? — O dedão magro e pontudo de Valentina cutucava agora o queixo do garoto, para que levantasse-o. — Não puxou os olhos tão cobiçados da mãe. Certo? — Completou virando-se para Antonella e tombando um pouco a cabeça, para que pudesse olhá-la sobre os óculos marrons.
— Puxou a paciência. — Antonella mordeu os lábios, parecia desconfortável com a inconveniência da velha. — Dona Valentina lhe trouxe alguns doces, querido.
A mãe olhou para a mesa onde os doces descansavam e voltou-se para a xícara de café que estava sobre o balcão. Bebericou e insistiu com um: “Vá em frente”.
Heitor fixou os olhos nos doces e, quando Valentina deu um passo ao lado, o menino decolou em direção à mesa. Antonella observava calmamente o menino se satisfazer enquanto tomava mais um trago do café. Valentina também ficou imóvel, com um sorriso dentuço acentuando mais ainda seu batom vermelho, quase rosa.
Não demorou muito e a velha voltou seu olhar para mãe de Heitor, para perguntar se estavam gostando de São Havier.
— Chegamos ontem à tarde, não tivemos tempo de... sabe. Perambular por aí. — Antonella deu mais um gole do seu café, que expunha mais fumaça que o normal; devido ao frio absurdo.
— Claro, não recomendo que “perambulem” — A mulher fez as aspas com os dedos secos erguidos e um risinho irônico no rosto. — ...neste tempo. Não se preocupem, até as férias de verão o verde de Romana se fará presente!
A velha voltou a olhar para Heitor que, de boca cheia, notou-a.
— Muito obrigado, a senhora é formidável! — Algumas gomas saltaram de sua boca que parecia querer explodir.
— Oh! Que venham os dias em que mais cavalheiros, assim como você, surjam!
— Heitor, ponha o cachecol, nós temos que ir para a padaria, preciso de sua ajuda com algo. — Antonella mantinha os lábios rígidos, os olhos fixados na velha.
— Eu... bem, já vou indo. Espero que gostem da experiência aqui. Heitor, continue este cavalheirinho. — E, passando as mãos nos cabelos engomados do garoto, a velha se foi.
— Ela é muito legal, não?! — Mesmo com as bochechas esticadas era possível ver seu enorme sorriso.
— Hum... Vamos.
O clima pairava assustadoramente frio, mas o que mais espantava era o fato dos cidadãos parecerem indiferentes à densa nevasca que atordoava as calçadas e ruas. Heitor, mais de uma vez, sentiu o pé afundar uns quinze centímetros na neve e seus pés já doíam de frio quando finalmente chegaram a faixada da humilde padaria. A mulher atravessou a rua, dando algumas escorregadas no gelo e finalmente chegou a porta de vidro com uma plaquinha do lado de dentro escrita: “Fechado”.
Sacudiu a pequena bolsa de couro até encontrar as chaves e finalmente abriu a porta, ouvindo um chacoalhar de pingentes. Lá dentro havia um clima confortável. O ar tão quente que aqueciam os pulmões e aliviavam a quase hipotermia que o corpo de Heitor parecia querer ter.
— Os fornos. — Apontou Antonella, retirando seu sobretudo preto e sua boina bege-acinzentado e colocando-as em cima do balcão. Deu alguns passos em direção à vitrine e virou a placa para: “Aberto”.
— A senhora veio aqui mais cedo? — Questionou o menino ao observar que o calor no interior do estabelecimento se dava pelo forno a lenha acesso em brasas rasas.
— Pedi para um velho amigo adiantar as coisas.
A padaria era humilde, a faixada feita em vidro para que pudessem expor os belos pães que Antonella não tardou em assar. Duas fileiras cheias de pães e bolos se estendiam até o balcão onde ficava o caixa. Atrás do balcão havia uma porta marrom que levava ao estoque, uma sala escura que ficava aos fundos. Nada além de prateleiras. Uma outra porta estreita mais ao fundo levava à cozinha, também estreita e revestida de cerâmica azul-claro. Dois fornos se estendiam por uma das paredes, mas somente um estava funcionando.
O garoto esperou Antonella retirar a primeira fornada do dia para levar como encomenda para uma casinha que ficava duas quadras à frente. Uma velhinha muito gentil o atendeu, chamava-se Janeth Joel e não parou de falar um único momento. Coisas do tipo:
“Você tem a idade da minha neta, tem mesmo. Veja aqui uma foto, linda não é? Angelina, o nome dela. Um docinho!”
Quando e menino finalmente conseguiu sair havia mais duas entregas para serem feitas; a primeira um pouco mais longe. Próximo a um parque, um rapaz magricela atendera. Agradeceu e não falou muito mais. A última entrega não foi muito bem uma entrega. Heitor caminhava quando encontrou uma menininha muito pequena, ruivinha e de sardas que partiam do queixo à testa, cobrindo-a feito um morango. Esta disse que estava mesmo indo buscar a encomenda.
O garoto logo voltou para a padaria, apreciando cada centímetro da bela paisagem. As lojas eram todas diferentes. Na mesma esquina Heitor notou uma livraria, um boteco e uma floricultura com faixadas verde, azul e rosa.
“Que Deus, em sua infinita misericórdia, dê o rumo para os que foram, e conforte o peito dos que permaneceram. De um livro retirei a frase: “A fé dá-nos respostas quando a razão falha”, que a palavra e as lembranças confortem o peito de cada um presente...” — Ei, rapaz! — Chamou alguém próximo. — Heitor Newman, certo? Poderia dar uma palavrinha para o jornal “NovaEncomenda”? — Desculpe, tenho um compromisso agora. — Disse entrando no carro e, virando-se para o motorista: — Para a comissão dos direitos e deveres, por favor. Chegou cedo, atravessou a multidão que se sentava ao longo do anfiteatro e apontavam para o centro do palco e sentou-se logo à frente
As pernas do garoto doíam como nunca antes, mas não o impedia de estar ali, sobre a varanda. Observando a esfera esbranquiçada que banhava-o ali ou em Romana.O ódio pela velha Valentina assolava por vezes, quando a coluna parecia querer se soltar do resto do corpo. Aquele tempo todo Heitor acredito que a raiva de sua mãe pela velha era pura birra. Agora sabia que não. Dispor de serviços absurdos como aqueles, em troca de almoço e uma cama. Uma mulher rica feito ela?O vento sacudiu as imensas cortinas e pegadas descalças fizeram-se ouvir. Áurea estava acordada e o seguira até o andar maias alto. Pusera-se ao seu lado e observou por um bom tempo a lua pelo vidro da janela.— Eu trouxe isso. — Sussurrou a menina, entregando-lhe o livro que ganhara do falecido Héctor: “Príncipe Levi e suas estrelas”. Os dois estavam lendo aquele livro juntos e, aparen
— Que bom! Veja, parece que Matarás continua intacta. Só espero que deixem-nos entrar... — O velho arrumou a pequena casaca e apoiou-se na lateral da embarcação para observar a ilha. Havia um sol muito forte ali, banhava seus ombros de forma muito reconfortante, pois aliviava a lembrança da quase hipotermia do dia anterior. O barco aproximou-se lentamente do píer e dois guardas matarasos já os esperavam. — Documentos por favor! — Gritou um deles. — Sim, claro! — Omar berrou de volta, enquanto laceava a corrente entre o barco de o poste no píer. — Aqui. O guarda mais velhos aproximou-se do primeiro e juntos leram os três documentos. — E o garoto? — Disse o mais velho, apontando para Afonso. — Ah... — Omar aproximou-se do guarda. — Nós fugimos de São Havier, entende? Houve uma invasão e nós... nós conseguimos escapar. — Sem documentos serão deportados. — Disse de forma mecânica o guarda mais novo. — Estão comigo! — Berrou
A neve caía sobre as lágrimas congeladas de Heitor. Nada mais o incomodava. O peito doía e os olhos ardiam, mas nada nem ninguém conseguiria fazê-lo esquecer os sons dos disparos. O garoto não levantou em momento nenhum, já não mais sentia as mãos que agora estavam soterradas na neve. Áurea e Omar estavam ali também e, talvez por solidariedade não fizeram objeção alguma em congelar ali, junto ao garoto.Alguns aviões cortavam os ares de vez em quando, carregados com a bandeira purianista e bombardeando casas ao longe, mas nada disso o faria levantar dali. O medo de morrer pareceu sumir durante aquele momento. Não poderia se dar ao risco de levantar, não poderia ver ali o corpo de sua mãe. A mulher que sempre o protegera não fora protegida e tudo aquilo parecia esmagar seu cérebro ao mesmo tempo. O ar parecia cada vez mais rarefeito e isso
Heitor não disse nada, nem poderia. Aquilo definitivamente não era do seu gosto, mas o que lhe machucava era não poder fazer nada. Sabia o perigo que corriam, sabia exatamente o que poderia acontecer com sua mãe, com ele, com Omar. Mas sair agora, sozinha. Isso não era razoável; era uma loucura! Logo perdeu o fio de pensamento quando a mulher agachou novamente.— Eu vou voltar. Prometo. — Os seus olhos encheram de lágrimas. Agora pareciam os olhos que Heitor tanto conhecia, estes eram os olhos gentis, bondosos e esperançosos que sempre lhe davam força e, por algum motivo, o garoto entendeu que aquilo era o que deveria ser feito.Antonella pegou as chaves sobre uma das prateleiras e endireitou a bolsa de um ombro só. Deu uma última olhada para seu filho e partiu; pela porta dos fundos e sem olhar para trás. Heitor levantou em seguida, correu para a porta e trancou-a. Em segui
Eram pouco mais de oito horas e os dois acabavam de chegar à padaria da mãe de Heitor. Antonella ergueu as sobrancelhas ao ver Afonso, não era comum o garoto levar amigos para lá. Deu o sorriso gentil de sempre e puxou a mochila do garoto. — Olá, rapazinho. Deixe que eu guardo essa mochila. — Antonella costumava ser mais gentil que o normal quando se tratava de visitas (exceto a velha Valentina, pois a odiava). Afonso agradeceu e sentou-se num banquinho próximo ao balcão. — Espere uns minutinhos. Vou buscar o livro. — Disse Heitor, enfiando-se na portinhola do balcão e seguindo para o estoque. Heitor deixava ali o livro, pois sempre que saía do colégio dirigia-se para a padaria e, estrategicamente, o morrinho era muito próximo de lá. Deixava-o sempre em uma das prateleiras, perto das sacas de farinha de trigo. Podia ouvir o bater de utensílios na cozinha — que ficava no cômodo ao lado — em que Antonella trabalhava incessantemente. Encontrou o pequeno livro no lugar q
Último capítulo