O GANGSTER E A PIANISTA
O GANGSTER E A PIANISTA
Por: Sally Dias
CAPÍTULO UM

— Onde diabos você vai, Cloe? – Perguntou, sua melhor amiga, ao vê-la atravessando o corredor da escola e indo de encontro a um burburinho. As amigas estavam combinando de estudarem juntas mais tarde a nova partitura que o professor Oscar havia lhe dado ao final da aula de piano. Estavam animadas e sentindo-se a preferida do professor, já que foi só para as duas que ele liberou a partitura, nem Alana havia recebido a sua e Alana era, sem dúvida, a melhor da classe de aulas de piano. Prometeram que nada as distrairiam do estudo mais tarde e estavam conspirando em voz baixa. 

— Acho que tem alguém apanhando, Hanna, você não está vendo?! – Cloe continuava descendo os poucos degraus da saída da escola para ver o que acontecia. Quatro caras   chutavam um rapaz caído no chão. De onde ela estava, via-se que o rapaz caído tentava proteger o rosto já ensanguentado e os capangas o chutavam nas costas e barriga. – Vamos ajudá-lo!

Hanna então a segurou pelo braço com força, antes que  terminassem de descer os degraus e estivessem do lado de fora. O muro de cerca viva bem aparado da escola, possibilitava ver bem a rua.  Cloe, ao ser segurada pela amiga, derrubou suas apostilas no chão, com o choque da parada abrupta, a amiga segurava forte seu braço à altura do cotovelo.

— Está louca, Cloe?! Devem ser aqueles caras da comunidade, sua maluca! O que fará, irá enfrentar os quatro por causa de um do bando deles? – Hanna a olhava com clara estupefação, com olhos injetados, a puxava. – Vamos sair pela outra entrada e fingir que não vimos nada! – Soltando o braço da amiga, Hanna se abaixou e pegou as partituras caídas.

Cloe sabia que a amiga tinha razão. Quem era ela para enfrentar quatro homens raivosos, aliás, quem era ela para enfrentar qualquer homem que fosse? Não entendia nada de luta, sequer sabia defesa pessoal! Não saberia defender a si própria se se visse em uma briga. Olhando para o cara caído no chão a alguns metros dela, dois dos atacantes tinham desistido de chutá-lo, mas riam alto enquanto viam os outros dois ainda o espancarem e foi aí que ela não aguentou e, no calor do momento, sem pensar, agiu.

Hanna já pegara as partituras caídas e dera as costas, subindo novamente os degraus e imaginando, claro, que a amiga a seguia e iam para a outra entrada da escola, na rua paralela à essa. 

Os passos de seus saltinhos no piso de lajota da escada foram abafados quando Cloe gritou a plenos pulmões:

— Polícia!!

Continuou descendo os degraus e seu grito surtiu o efeito desejado. Um dos que chutavam o pobre coitado caído, não olhou para ela, mas para a rua, os olhos arregalados, procurando o carro da polícia. Os outros também ficaram instantaneamente assustados, a cara de riso se transformando imediatamente em pânico. Para coroar o momento, um carro importado enorme entrou na rua cantando pneus. Até Cloe se assustou, agora na calçada, mesmo sabendo que não era um carro de polícia, por um mísero segundo até ela achou que fosse e estando a menos de um metro agora do agredido no chão, ela se agachou ao lado dele. Por Deus, um dos olhos dele estava fechado de inchaço, Ignorou os caras que correram desabalados.

— Ei, você está bem? – Perguntou ao rapaz gemendo no chão. Cloe não queria mexer nele, na certa tinha algo quebrado, mas sem perceber, tinha colocado a cabeça dele em suas coxas, o asfalto estava quente àquela hora.

O sangue no rosto dele manchou a saia pregueada dela e lhe empapou o joelho rapidamente. — Cloe!

O grito de Hanna a fez voltar ao presente e olhar a volta. Haviam pessoas distantes, curiosos dali mesmo da rua, observavam com olhos arregalados. Ao que dava para ver, ninguém queria se envolver, só ela, boba como era – seu irmão já a chamara tantas vezes de coração mole. – tinha se intrometido na situação.

— Ele está ferido, Hanna, muito ferido! Me ajude a tirá-lo do asfalto quente! – Ela gritou de volta para a amiga, não querendo  deixar o rapaz largado ali no meio da rua, jogado como uma animal atropelado.

— Moça! – Um senhor que observava tudo encostado em uma árvore na calçada oposta a da escola a chamou. – Deixe-o aí, ele é dos Santinis. Saia enquanto pode e não se envolva!

Tendo dito isso, o homem começou a andar, se distanciando de cabeça baixa, como se até ter falado com ela pudesse envolvê-lo de alguma forma.

Cloe não acreditava. Como podiam só olhar e nada fazer? Eram tão covardes quanto os que o agrediram,  um a um dos que tinham ficado olhando, sumiram como baratas quando se acende a luz.

— Me ajude, Hanna, ele é pesado! – Cloe gritou para a amiga que ainda permanecia nos degraus da escola, assustada.

— Meu Deus, Cloe, não ouviu o que o homem disse? Ele é dos Santinis! – Mas Hanna estava ao lado dela em segundos, resignada e trêmula. – Estamos fodidas, sabia? – Hanna pegou pelos pés desconjuntados do rapaz e ajudou Cloe a tirá-lo do meio da rua. Quase arrastaram-no até a árvore que o senhor estava antes e tinha a advertido. Ali ao menos tinha sombra. – Meu Deus, estamos completamente fodidas!

Hanna estava desesperada, só pensava na delicada situação que poderiam estar envolvidas ajudando um dos Santinis.

Segurando o rapaz por debaixo dos braços, ele parecia pesar uma tonelada, exalava alto enquanto o puxava e sua amiga não reparou, mas ela sim. Mesmo em meio ao ocorrido incomum e mesmo ele estando inconsciente, os cabelos loiros empapados de sangue e colados na testa, ela notou como ele era belo. Olho inchado e fechado, boca partida e nariz torto, na certa quebrado, ela pôde ver a nuance por baixo de tudo. Ele era bonito. E foi quando ele abriu os olhos e olhou diretamente para ela. De sua posição, com as duas mãos debaixo dos braços dele, claro que ele só poderia olhar para ela ao abrir os olhos, mas ele olhou para ela. Foi um olhar diferente que parecia sorrir com os olhos.

— Pronto, vamos deixá-lo debaixo da árvore a vazar daqui, Cloe! – Falou Hanna, soltando os pés dele e já se preparando para recuarem. 

Cloe não prestava atenção ao que a amiga dizia. Ainda prescutava os olhos do rapaz. Ele parecia jovem, os olhos deviam mesmo ser mesmo a janela da alma, pois aquele breve olhar que lhe dera, aquele sorriso nos olhos, por mais ínfimo que fosse, pareceu ter lhe dito tanto. 

Então se lembrando do carro que entrara na rua cantando pneus e enquanto acomodava novamente a cabeça dele em suas coxas, olhou e não demorou a encontrar o carro, ele chamava a atenção ali. A escola de música dela era para pessoas que tinham condições e ela não era uma dessas pessoas, havia ganhado uma bolsa. O bairro ali era nobre, muito diferente de onde ela morava, mas ainda assim, o carro chamava a atenção, o carro de nenhum dos professores era semelhante ao que parara ali e estacionara. Os vidros escuros não permitia ver o interior e ocupante, mas Cloe parecia sentir que estava sendo observada e um arrepio passou por sua cintura. 

— Jesus, Cloe, devem ser os Navarros! Temos que dar o fora daqui! –  A voz de Hanna agora era quase delirante de desespero, ela seguira os olhos de Cloe e também percebeu o carro parado. – Vão nos fuzilar! Você nos condenou!

Hanna tremia o corpo todo e as lágrimas caíam em profusão agora.  A cabeça do rapaz pesando em suas coxas, sangue, desespero, sim, estavam lascadas e foi ela que as meteu nessa confusão. Mas enquanto aguardava a execução, resignada, Cloe falou à amiga:

— Corra! Corra, Hanna!

 Hanna correu. Largando as partituras  ao pé da árvore, correu como se sua vida dependesse disso e acreditava que dependia mesmo. Não poderia correr de balas, mas morreria tentando. Atravessando de volta para a escola sem ter sido alvejada,  subiu os degraus de dois em dois. A saia azul pregueada do uniforme parecia uma bandeira sendo hasteada atrás de si.

Cloe ficou. Se recusava a correr e deixar o rapaz ser morto ali sozinho e pensava que de não adiantaria mesmo sair agora, pois se o ocupante do carro a visse se levantar, a mataria. E para seu total desespero o carro  foi ligado e veio. O automóvel atravessou a rua e estacionou ao lado dela. Portas foram abertas dos dois lados e não era um ocupante, como ela pensou. Três rapazes brutamontes de óculos escuros desceram e se puseram ao lado dela e olhavam-na de cima. Cloe sentiu dor de barriga, seu coração estava batendo tão forte que ela julgava que eles ouviriam, que todo o quarteirão ouviria. 

A  cereja do bolo foi quando a cabeça em seu colo se mexeu. Ela olhava ainda para os caras parados ali, de queixo erguido, ela mirava cada um, já que não se via seus olhos, mas quando o cara ferido se mexeu, ela desviou os olhos dos homens e olhou para ele. Os olhos azuis a miravam de novo e por mais incrível que pudesse ser, sua boca arrebentada deu um sorriso, mais parecia uma careta, mas ele lhe sorria.

— Deixe com a gente agora, moça – Um dos brutamontes falou, sua voz grossa e rascante a fez sentir outra onda de arrepio.

Outro se posicionou para tirar o ferido de seu colo e Cloe reagiu, agarrando o rapaz contra si.

— Não! – Deus do céu ela queria mesmo morrer? Cloe estava perplexa com sua própria reação. – Já quase o mataram, seus covardes! Sumam daqui porque minha amiga já foi buscar ajuda para ele. Não vou contar nada à polícia.

Ela sabia que sua voz saía patética, mas não conseguiria deixar acabarem de matar o rapaz. 

— O quê? – O cara mais distante e próximo ao carro que olhava para todos os lados, certamente receoso que a polícia chegasse, começou a gargalhar. – Ela é durona, hein? Essa é das minhas. Não imaginaria, tá ligado? A mina é fraquinha. – O maldito gargalhava mais.

— São meus amigos, Cloe – falou baixinho o cara ferido em seu colo e ela quase engasgou. – Sim, ouvi seu nome. Obrigado, estou bem agora.

Cloe estava de boca aberta. Então eram seus amigos? Quanta surpresa em míseros minutos. Tudo tinha acontecido tão rápido que a cabeça dela ainda estava meio aérea.

O motorista abaixou o vidro da janela e esse não estava de óculos, e também não ria, só a olhava sério e falou:

— Tirem-no do chão, seus palermas!

Em meio minuto o rapaz estava dentro do carro, tendo sido tirado do colo de Cloe. A garota se pôs de pé, feliz por suas pernas funcionarem, pois pareciam gelatina.

— Levem-na para escola, para onde ela tinha saído. – Ordenou o ferido e Cloe queria dizer que não havia necessidades, que na verdade já estava indo embora quando se deu o ocorrido, mas sua voz não saía e quando deu por si, estava no meio de dois brutamontes a levando de volta para a escola. Como dois seguranças, a escoltaram pela entrada da escola e subiram os degraus com ela, chegando no corredor de sua classe. Ao menos o ferido estava bem, já que falava.

Cloe avistou Hanna chorando e tentando contar detalhes do ocorrido para meia dúzia de professores, quando viu a amiga sendo escoltada por dois seguranças, todo o sangue fugiu de seu rosto. Estavam próximos à sala do professor Oscar e ele tentava consolar e acalmar Hanna. O professor se calou ao vê-los.

— Olá – cumprimentou um deles. – Está tudo bem, tá ligado? A garota tá aqui e a traremos à aula todos os dias….

— Não precisa – Cloe se apressou em avisar. – Não há necessidades.

— Quê isso, gata? Tu ajudou nosso homem, é o mínimo que podemos fazer. Até amanhã.

Se despedindo, foram embora e Cloe sentiu o rosto corar ao ver a expressão dos professores. Oscar, o professor, pediu que lhe trouxessem água e depois que ela parou de tremer, lhe falou:

— Minha querida Cloe, sabe que conseguir uma vaga para você aqui não foi fácil, não sabe? Você é uma das minhas melhores alunas, não devia ter se intrometido com essa gangue, meu bem.

— Vão retirar minha bolsa? – Ela perguntou com a boca trêmula. Como podia em minutos estragar suas chances de ser a melhor pianista do país?

Oscar olhou para os outros professores, indeciso, pois eles olhavam para a rua e viam o carro dos mafiosos saindo. Sabiam que não podiam ter um desentendimento com eles.

— Claro que não, meu bem. Sua vaga está segura. – Oscar achou por bem falar por todos.

A semana havia só começado e também o tormento da garota, já que sem saber como sabiam seu endereço, um carro a aguardava todos os dias na porta de sua casa e a deixava na porta da escola. Soube que o nome do rapaz que socorrera era Túlio, pois avisaram-na que ele pedira que a deixassem em segurança todos os dias. Túlio deveria estar se recuperando dos ferimentos, ela não o viu durante os dias em que era buscada na escola. Claro que isso gerou  infortúnios na escola, mas ela não sabia o que poderia fazer por enquanto.

No quarto dia em que estava sendo levada à escola, estava cansada disso. Sentia vergonha por ser alvo de buchichos na escola, saiu mais cedo da aula e resolveu pegar o ônibus. Queria se ver livre da escolta. Sentiu-se mais livre voltando ao normal, cumprimentou  Castro, o motorista legal do ônibus com um sorriso. Levaria cerca de quarenta minutos até chegar à sua casa de ônibus, mas era tão bom voltar ao normal. Conversava com Lucinha, uma de suas vizinhas que pegara o mesmo ônibus, quando o ônibus freou de uma vez, jogando os passageiros de um lado para o outro e uma garotinha de uns seis anos foi ao chão, começando a chorar estridentemente.

— O que aconteceu? – Gritou Lucinha para o motorista e antes que ouvissem a resposta dele, Cloe viu o que o fizera frear. Na frente do ônibus o maldito carro de Túlio. Ele mesmo saiu de dentro e olhava para o ônibus com a expressão fechada. Talvez o reconhecimento do motorista, que começava a xingar ao ser parado bruscamente, ver Túlio, fez com que o homem se calasse e abrisse a porta para que ele entrasse. Misturas de sentimentos a acometeram. De início ela ficou enraivecida. Quem diabos era ele para interceptá-la desse jeito? Se ela quisesse ir para a escola sozinha, tinha o direito! Ao mesmo tempo, ela sentiu um frêmito de satisfação.

— Vamos, Cloe! – Ele gritou ao entrar no ônibus com sua imponência. O motorista e Castro olhavam para ela com impotência no olhar. Não podiam interferir, tinham família para sustentar e ali, em pessoa estava Túlio. Qual o idiota iria querer se meter com o líder da guangue de Paco, o poderoso chefe dos Santinis?

Passando por ele de queixo erguido, ela desceu do ônibus e entrou no carro. Os comparsas de Túlio a cumprimentaram sorrindo.

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