O silêncio cortante da manhã foi o primeiro golpe que atingiu Celina ao despertar. Não era apenas a ausência de som — era a ausência dele. De novo. O lençol de cetim, frio e intacto ao seu lado, gritava uma verdade que ela já não conseguia mais ignorar: César não havia voltado para casa. E aquilo se repetia há meses.
Com os olhos ainda grudados pela noite mal dormida, ela permaneceu imóvel, encarando o teto branco do quarto gigantesco que mais parecia um palco abandonado. A mansão, imponente por fora, era agora uma prisão dourada por dentro. O luxo dos móveis, as obras de arte nas paredes, os arranjos de flores perfeitamente trocados pelas mãos das funcionárias... tudo era supérfluo diante do vazio que consumia seu peito. Ela se sentou devagar, com um nó apertando a garganta. Os pés descalços tocaram o chão gelado. O eco dos seus próprios passos, enquanto caminhava até o closet, parecia zombar da solidão que a rodeava. Parou diante do enorme espelho e se encarou. O reflexo a fez prender a respiração. “Será que estou feia?” — pensou, apertando os próprios braços como se buscasse abrigo em si mesma. “Será que estou envelhecendo? Será que ele encontrou alguém melhor? Mais bonita? Mais interessante?” Seus olhos vasculhavam o próprio corpo com uma crueldade silenciosa. As olheiras denunciavam noites maldormidas. A pele estava opaca, sem o brilho que costumava exibir. Os lábios, secos, já não sorriam como antes. O brilho nos olhos... havia sumido. Mas o pior não era o que via. Era o que sentia. “Será que deixei de ser suficiente?” Ela respirou fundo, os olhos marejando. A voz interna sussurrava todas as suas inseguranças — a rejeição, a solidão, o medo de estar sendo esquecida, descartada. Aquela mulher no espelho não era a Celina que César conheceu. Mas estava ali. Ferida, sim. Mas ainda de pé. Ela levou a mão aos cabelos soltos e, naquele momento, uma fagulha reacendeu. Não era raiva. Era dor transformando-se em impulso. — Eu não vou me destruir por isso… — murmurou, com a voz embargada. — Eu vou me lembrar de quem eu sou. Determinada, começou a escolher roupas. Roupas que há tempos não usava. Vestidos que acentuavam suas curvas, sapatos que a faziam caminhar como quem sabe onde pisa. Revirou as gavetas até encontrar uma lingerie preta de renda fina, ainda com etiqueta. Presente de uma época em que ela ainda acreditava que eles se amariam para sempre. Separou tudo com cuidado. Depois, ligou para o Spa que costumava frequentar antes da vida começar a desmoronar. Horas depois, Celina estava mergulhada em um processo de renascimento. As mãos delicadas da esteticista faziam massagens em seus ombros tensos, enquanto uma playlist suave preenchia o ambiente. Fez as unhas, depilou-se, cuidou da pele, do cabelo. A maquiagem realçou seus olhos verdes e suavizou seus traços marcados pelo cansaço. Quando se olhou no espelho do salão, no fim da tarde, mal se reconheceu. A mulher que a encarava estava deslumbrante. Forte. Pronta. Ao volante, o céu nublado acompanhava sua trajetória até o prédio espelhado da Brown Advocacia. Cada quilômetro percorrido era um confronto com seus próprios sentimentos. No coração, um turbilhão: medo, esperança, dor, desejo, dúvida. Ela não sabia o que encontraria ali. Só sabia que precisava tentar. Precisava olhar nos olhos dele. Precisava se lembrar do que um dia foram. Precisava, ao menos uma vez, lutar por si mesma — não como a esposa que foi deixada de lado, mas como a mulher que ainda merecia amor. Quando estacionou diante do prédio, já estava anoitecendo, o céu estava carregado de nuvens escuras. O expediente estava prestes a terminar. E Celina estava pronta para a verdade. Ela dirigir-se até o elevador e seguiu até a sala da presidência. Celina abriu a porta do escritório e seu mundo desmoronou. César, seu marido, estava entrelaçado no corpo de outra mulher. Nicole estava jogada sobre a mesa, os cabelos loiros desarrumados, os lábios entreabertos em puro prazer. As pernas estavam enroscadas na cintura de César, as mãos cravadas em suas costas. Ela foi a primeira notar sua presença. Um sorriso de satisfação surgiu em seu rosto. Seus olhos brilhavam com malícia, como se já esperasse aquele momento, como se quisesse que Celina a visse ali, tomando o que era dela. Foi só então que César percebeu sua esposa parada à porta. Ele se virou lentamente, sem pressa, sem susto. O olhar que lançou para Celina não demonstrava culpa. Não demonstrava arrependimento. Apenas frieza. Como se nada tivesse acontecido. Como se ela não significasse nada. César apenas a encarou, sem emoção e continuo o ato com a secretária friamente. Celina deu um passo para trás, sentindo que não suportaria mais um segundo ali, virou-se e saiu aos prantos, transtornada. Ela entrou no carro e, sem pensar, parou no primeiro bar que viu e bebeu. Saindo de lá, ligou o motor e acelerou. Saiu sem rumo pelas ruas de São Paulo. A chuva caía fina, misturando-se às lágrimas que escorriam pelo rosto de Celina. Dirigia sem rumo, ofegante, a mente entorpecida pela dor de ter flagrado a traição. O mundo parecia girar em câmera lenta, até que tudo acelerou num segundo. Ela atravessou um sinal vermelho sem notar. Um vulto surgiu. Um corpo. Um impacto. — Meu Deus! — gritou, pisando no freio com força. O carro parou com um tranco seco. Celina correu para a frente, o coração na boca. O homem estava caído, gemendo baixo. Era um morador de rua, mas não como ela imaginava. Tinha o corpo forte, os ombros largos e definidos mesmo sob a camisa molhada. O rosto, apesar da sujeira, era bonito. Revelava traços firmes e olhos intensos. — Você está bem? Eu... eu não te vi! Quer ir ao hospital? — perguntou, agachando-se ao lado dele. — Tô bem... acho. Só doeu a perna. Mas tô vivo — disse, tentando se levantar. Celina hesitou. O sobrenome Brown pesava em sua mente. O medo de alguém reconhece-la, de tudo virar manchete no dia seguinte, apertava seu peito. Um escândalo arruinaria ainda mais o que restava de sua vida. — Olha... posso te ajudar. Não quer ir pra um hospital, mas... Posso te levar num hotel. Um lugar quente pra descansar, tomar um banho, se cuidar. — Por quê você faria isso? — Porque eu... preciso fazer alguma coisa. Ele a olhou, desconfiado, mas depois assentiu. Ela o ajudou entrar no carro. O silêncio era tenso. Quando chegaram ao hotel, ele era simples e discreto. Celina subiu com ele até o quarto. — Vai, toma um banho. Eu espero aqui — disse, sentando-se na beirada da cama. Ele a encarou por um segundo, depois entrou no banheiro. Enquanto ouvia o som da água caindo, Celina respirou fundo. O cheiro do quarto era limpo, diferente do caos que carregava por dentro. Quando ele saiu do banho, com os cabelos molhados, toalha enrolada na cintura, Celina o olhou em silêncio. Bonito. Tão real. Mais real do que tudo o que tinha deixado para trás naquela noite.Celina viu aquele abdômen definido e musculoso reluzindo com os respingos d’água. Ela não conseguiu evitar o olhar. Ele era bonito. Bonito demais para a situação em que estava. E aquilo... aquilo era estranho. Ela se levantou, ainda atordoada, e notou o ombro dele avermelhado. Deu um passo em sua direção, preocupada, mas tropeçou no pé de uma mesinha antiga no quarto. Antes que pudesse cair, ele a segurou com firmeza. Os olhos escuros dele a observaram com atenção, estudando cada detalhe do seu rosto. Celina o encarou por alguns segundos. Havia algo naquele homem que a intrigava. Um magnetismo silencioso e perigoso. Talvez fosse a bebida. Talvez o desespero. Então, ele a beijou. Um beijo possessivo, intenso, como se quisesse devorá-la por inteiro. O clima entre os dois esquentou, e Celina correspondeu. Queria aquele momento tanto quanto ele. Ela interrompeu o beijo, ofegante. — Isso não pode acontecer... é loucura. Eu nem sei quem você é. Nem o seu nome... — Também não
Celina estacionou o carro na garagem da mansão e ficou ali por alguns instantes, respirando fundo. As mãos ainda tremiam no volante, e sua mente estava um turbilhão. A noite anterior parecia um borrão, um sonho — ou talvez um pesadelo. Desceu do carro com passos incertos e entrou na casa em silêncio. A mansão estava mergulhada na escuridão, apenas algumas luzes de presença iluminavam discretamente o caminho até o quarto. Subiu as escadas devagar, o coração acelerado. A cabeça martelava, reflexo da bebida e da madrugada intensa que tivera. Quando empurrou a porta do quarto e entrou, encontrou tudo escuro. Suspirou aliviada, pensando que poderia deitar e tentar esquecer tudo. Mas então, um clique suave ecoou no ambiente. A luz do abajur ao lado da poltrona foi acesa, e Celina conteve um grito ao ver a silhueta de César sentado ali, à sua espera. Os olhos dele estavam sombrios, o rosto rígido, uma expressão de puro ódio. — Onde você passou a noite? — a voz dele cortou o silêncio co
Sentado atrás da enorme mesa de mogno, olhando-a com um misto de surpresa e divertimento, estava ele. O mendigo, o morador de rua. Os olhos dele, agora friamente calculistas, a encararam com um leve toque de diversão — quase desdém. Havia algo de diferente nele agora… não apenas o terno perfeitamente alinhado, ou o corte de cabelo impecável. Era o modo como ele a olhava. Como se tivesse vencido algum tipo de jogo que ela nem sabia que estava jogando. — Senhorita Bernardes… — ele murmurou, cruzando os dedos sobre a mesa. — Que coincidência interessante. Celina engoliu em seco, tentando disfarçar o choque. O que ele estava fazendo ali? Mais importante: o que ele sabia sobre ela? Celina ainda sentia o impacto da surpresa enquanto se sentava na cadeira de couro à frente da enorme mesa de mogno. O choque de o encontrar naquele escritório luxuoso, o homem daquela noite, o mendigo, a deixou sem palavras por alguns instantes. Ele estava ali, à sua frente, como seu possível chefe. Thor
Celina virou-se vendo uma mulher lindíssima entrar sem hesitação. Sentiu o estômago despencar. — Que saudade, amor! Celina ficou paralisada. Seus olhos instintivamente desceram para as mãos de ambos. Ali estavam as alianças douradas. Thor levantou-se da cadeira com uma expressão fechada, passou por Celina sem dizer uma palavra e seguiu Isabela até o corredor. Celina permaneceu sentada, com o coração disparado e um nó se formando em sua garganta. No lado de fora, a voz ríspida de Thor ecoou, ainda que ele tentasse conter a irritação: — Isabela, já falei que não quero interrupções no meu trabalho. Isso é inaceitável. — Você está levando isso a sério demais, amor — ela respondeu, emburrada. — Eu só queria te ver. — Não é o momento. Vá para casa. A gente se fala depois. Isabela revirou os olhos. — Deixa de ser chato, amor. Thor limpou a garganta e, com visível irritação, disse: — Porra Isabela, já falei e não vou repetir novamente, vai pra casa agora. Isabela bufou, cruzand
Celina encarava o teste de gravidez sobre a pia do banheiro da empresa, incapaz de desviar o olhar daquelas duas linhas cor-de-rosa. Positivo. Seu coração batia descompassado, e sua mente estava um caos. — O que eu vou fazer agora? — murmurou, passando as mãos trêmulas pelos cabelos. Ela começou a andar de um lado para o outro, sentindo o desespero crescer em seu peito. — Eu posso ser demitida… Não sei nem quem é o pai… Sua respiração estava acelerada. Sua cabeça girava. Não fazia ideia de quantas semanas estava, e essa incerteza a aterrorizava. Se fosse de César, seria um golpe do destino. Um último laço que a ligaria para sempre a ele, quando tudo o que queria era esquecê-lo. Se fosse de Thor… Celina apertou os olhos, recusando-se a terminar o pensamento. As lágrimas escorreram pelo seu rosto. Ela não estava pronta para aquilo. O som do telefone tocando na sala ao lado a fez prender a respiração. Ela ignorou, incapaz de se mover. O telefone tocou novamente. E nova
Celina saiu do consultório médico com as pernas trêmulas, sentindo o coração martelar contra o peito. Cada palavra da ginecologista ecoava em sua mente como um martelo em vidro frágil: "Um mês e três dias." "Precisamos marcar seu pré-natal." Ela entrou no carro quase no automático e fechou a porta com força. Suas mãos tremiam tanto que teve que segurar o volante por um instante antes de ligá-lo. Mas, ao invés de dar a partida, abaixou a cabeça e apoiou a testa no couro frio do volante. — Não… isso não pode estar acontecendo… — sussurrou, sua voz quebrada pelo choque. Fechou os olhos, tentando encontrar uma falha, uma possibilidade de erro. Mas os cálculos eram claros. O pai do seu filho só podia ser uma pessoa. Thor Miller. Seu chefe. O homem que ela odiava com cada fibra do seu ser. O homem arrogante, prepotente, frio e insensível. O homem que a tratava como se fosse descartável, como se sua existência se resumisse ao trabalho que fazia para ele. E agora… Celina
Celina estava sentada no chão frio, do lado de fora da casa que um dia foi sua. Seu corpo estava ali, mas sua alma parecia ter sido arrancada. As lágrimas escorriam em silêncio, molhando sua pele pálida. Seus pertences estavam espalhados pela calçada como se fossem lixo, roupas misturadas com documentos, sapatos. O vento da noite passava por ela, mas Celina não sentia frio. Não sentia nada além do vazio dentro de si. "Não sou nada. Não tenho ninguém." As palavras de César ecoavam em sua mente, cortando como lâminas afiadas. "Você era um nada quando se casou comigo. E vai continuar sendo." Seus dedos tremiam ao apertar a barra da própria blusa. O que vou fazer? Pra onde vou? Ela não tinha família para acolhê-la. Nenhum porto seguro. Seu mundo, que já estava desmoronando, agora havia ruído por completo. O barulho de um carro se aproximando tirou-a , por um breve momento, do estado de choque. Os faróis iluminaram sua figura encolhida no chão, e Celina ouviu o motor desligand
Ao ouvir toda aquela conversa, Celina tapou a boca para conter o soluço que ameaçava escapar. Ela sentiu a alma se despedaçar. A tontura veio forte, e ela precisou segurar-se na parede. Se Thor descobrisse sobre o bebê… Ele a obrigaria a abortar também. Celina sentiu o pânico tomar conta de seu corpo. Ela não podia contar. Não podia deixar que ele soubesse. Seus olhos arderam, e as lágrimas voltaram a cair. Virou-se e saiu correndo pelo corredor, sentindo o coração esmigalhado dentro do peito. Seu filho nunca poderia saber quem era o pai. E, assim, a decisão foi tomada. Ela protegeria seu bebê. Mesmo que isso significasse carregar esse segredo pelo resto da vida. Ao entrar em sua sala apressada, fechou a porta atrás de si, encostando-se nela como se precisasse de apoio para não desmoronar. Seu corpo tremia. O peito subia e descia de forma descompassada. Então, como se uma represa tivesse rompido, as lágrimas vieram. Ela deslizou até o chão, cobrindo