Mundo de ficçãoIniciar sessão
A neve caía em flocos densos e cinzentos sobre São Petersburgo, mas, para Ária Silva, o frio da Rússia não era nada comparado ao gelo que ela carregava no peito. Ela só tinha 28 anos e já carregava em sua vida uma grande bagagem de um passado que, se fosse exposto, poderia incendiá-la e à única pessoa que ela amava no mundo. Fugir do Brasil havia sido a única maneira de cortar o cordão umbilical com a violência, o medo e o julgamento que as perseguiam desde que eram jovens.
Ao seu lado, a jovem Hanna mal completara 20 anos. Sua irmã era extrovertida, ousada e sonhava em cursar a faculdade de design. A mudança para a Rússia, com sua promessa de anonimato e recomeço, era a chance de Hanna florescer sem a sombra de um pai abusivo ou a sina de uma mãe desesperada.
Ainda na juventude, Ária assumiu o peso de ser a âncora, o farol seguro que sua irmã necessitava. Forte, determinada e incrivelmente gentil, ela havia se agarrado à chance de reconstruir a vida das duas. Seu esforço havia sido recompensado: ela finalmente conquistara o que considerava o emprego dos sonhos em uma grande empresa de arquitetura. O salário, somado ao trabalho de meio período de Hanna, garantiria os estudos da irmã e a paz de espírito que tanto almejavam.
Mas naquele dia, o dia da sua esperada promoção, o destino fez questão de lembrá-la, com crueldade, de que o inferno era, de fato, portátil.
O luxuoso tapete persa na sala de Joseph abafava seus passos, mas não o frenético pulsar em suas têmporas. Ária estava parada diante da imponente mesa de mogno, o cheiro de charuto caro e ambição pairando no ar.
- Sente-se, Ária - Joseph indicou, seu sorriso cínico, mal podia esconder o brilho gélido e calculista de seus olhos pequenos. Ele era o CEO, um homem de meia-idade com a barriga saliente de quem nunca recusava um excesso.
Ária sentou-se, as mãos firmes no colo, vestindo seu melhor blazer cor de carvão. Seu coração batia com expectativa.
-Obrigada, senhor. Estou ansiosa para saber sobre a vaga de coordenadora de projetos.
Joseph pegou um copo de whisky na bandeja de cristal e o girou, avaliando-a com um olhar que a fez sentir a pele pinicar.
- Coordenadora de projetos? - Ele riu, uma risada curta e seca que a fez congelar. - Minha querida, a vaga que eu tenho em mente para você é muito mais... íntima. Você tem potencial para ser minha secretária pessoal.
O ar pareceu rarear. Ária piscou, a testa franzida.
-Secretária pessoal? Eu me candidatei a uma função técnica, senhor.
- E você é muito qualificada para ela. Mas veja bem - ele se inclinou na mesa, baixando a voz para um sussurro que era mais ameaçador do que qualquer grito - Eu sou um homem influente. Eu lido com homens grandes, com contratos que valem milhões. Eu preciso de uma mulher que entenda que, para fechar o negócio, às vezes, a discrição e a... proatividade são vitais.
Ária inclinou-se para trás, a determinação em seus olhos castanhos esverdeados endurecendo.
- Não estou entendendo a que tipo de ‘proatividade’ o senhor se refere.
Joseph sorriu, revelando um dente de ouro na lateral.
- Não se faça de ingênua, senhorita Silva. Você é linda. Exótica. Os olhos desses velhos lobos do mercado brilham por uma mulher como você. Eu quero você ao meu lado em todas as reuniões. E se um cliente quiser mais do que uma taça de champanhe e um aperto de mão, você não vai me decepcionar. É um preço pequeno a pagar pelo emprego dos seus sonhos, não acha?
O sangue de Ária ferveu, apagando qualquer medo. Ela era gentil, mas a violência de seu passado havia moldado nela uma defesa de aço.
- Eu recuso - a voz dela saiu baixa, mas firme. - Eu sou uma profissional, senhor. Não sou uma... uma garota de programa para seus clientes.
O sorriso de Joseph se desfez. Seu rosto inchou de fúria, e ele bateu o copo na mesa com tanta força que o cristal estalou.
- Você recusa? Garota, você sabe quem eu sou? Você está brincando com o seu futuro! Ele se levantou, caminhando ao redor da mesa até ficar perigosamente perto dela. - Olhe para mim. Eu lhe ofereço o mundo, e você me ofende. Não vai ser assim. Não vai mesmo.
Ele fez um escândalo, elevando a voz para que pudesse ser ouvido pela secretária que esperava na antessala.
- Você! Sua vagabunda ingrata! Você veio até aqui, se ofereceu para o que fosse preciso pela vaga, e agora que sou homem casado, me dá um fora e quer se fazer de vítima? Eu te dou uma chance e você tenta me chantagear? Saia da minha sala!
A humilhação, a injustiça e o fantasma das acusações que sua mãe havia sofrido explodiram nela. Aquele foi o ponto de ruptura. Ela não aguentou. Não recuou. Ela era a Ária Silva, e não seria mais uma vítima.
Em um movimento rápido e instintivo, a mão direita de Ária se fechou em punho. O som do tapa estalou no silêncio da sala, ecoando alto e final. Joseph cambaleou, a marca vermelha de seus cinco dedos instantânea em sua bochecha.
Ária se levantou, a respiração ofegante, mas o olhar fixo nele era de um desprezo gelado e cortante. Ela era, naquele instante, uma força da natureza.
- O senhor é um porco nojento, e eu tenho nojo de ter trabalhado um dia sequer para a sua empresa!
Ela se virou para sair, mas a voz de Joseph, agora um rosnado frio, a parou.
- Saia, mas saiba de uma coisa, brasileira estúpida. Eu sou Joseph Melman. Você nunca mais conseguirá outro emprego nesta cidade, ou em qualquer outra que eu possa alcançar. Eu sou casado, tenho reputação. Você é uma imigrante sem nada. Quem você acha que eles vão acreditar? Você está acabada. Destruída!
Ária parou na porta, girou apenas a cabeça, e cuspiu a palavra final com a força de todo o seu passado.
- Vá para o inferno!
O frio da noite russa envolveu Ária enquanto ela caminhava pelas ruas, lágrimas de fúria e frustração congelando em suas bochechas. O emprego dos sonhos, sua tábua de salvação, havia se dissolvido em um pesadelo.
Ela tirou o telefone da bolsa para ligar para Hanna, sentindo a necessidade urgente de ouvir a voz doce da irmã. Mas, antes que pudesse discar, o aparelho tocou. Era Hanna.
- Hanna, eu não... - ela começou, mas a voz do outro lado não era a da sua irmã. Era grave, masculina e destituída de qualquer emoção.
- Não é a sua querida irmã.
O sangue gelou nas veias de Ária. Ela apertou o telefone contra a orelha, o mundo exterior desaparecendo.
- Quem é? Onde está Hanna? O que fez com ela? - Sua voz mal era um sussurro.
- Não faça perguntas estúpidas. Apenas escute. Se você quiser ver sua irmã viva novamente, você fará exatamente o que eu mandar. Entendeu?
Ária parou, o corpo inteiro tremendo, mas sua mente, treinada pela sobrevivência, permaneceu alerta.
- Eu entendi. O que você quer?
- Não chame a polícia. Se eu souber que você sequer pensou nisso, a coisinha ousada vai sofrer. Vá agora para o endereço que eu vou mandar por mensagem. Você tem dez minutos.
A ligação foi cortada. A mensagem chegou um segundo depois. Era um endereço em um bairro industrial abandonado, longe de tudo. O pânico era uma onda nauseante, mas Ária o empurrou para baixo. Hanna estava em perigo. Ela tinha que ir.
O táxi a deixou em uma rua escura e deserta. Havia apenas um armazém imponente, cujas janelas quebradas pareciam olhos vazios. Ária desceu, o ar pesado de medo e ferrugem.
A porta lateral do armazém estava entreaberta. Ela respirou fundo, forçando a determinação a sobrepor o terror, e entrou.
O cheiro era de poeira e metal, mas o que dominou sua atenção estava no centro do piso de concreto.
Hanna estava lá. Ajoelhada, as mãos amarradas firmemente atrás das costas. Seu rosto estava coberto de lágrimas, e havia um pequeno corte sangrando em sua testa. Ela estava viva, mas o terror em seus olhos era palpável.
Ao lado de Hanna, estava o homem.
Ele era o epítome do perigo. Alto, forte, de constituição robusta e inabalável. Seus cabelos eram pretos como a noite, e seus olhos, igualmente pretos, pareciam absorver toda a luz do local. Seu nariz aquilino acentuava a severidade de seu rosto. Ele não era apenas bonito; ele era perigosíssimo, e Ária soube disso no instante em que seus olhos se encontraram. Este homem exalava poder bruto e crueldade fria.
- Hanna!







