Monstro
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Por: Letícia Black
Prefácio: A inocência perdida

Prefácio

A inocência perdida

— Tem certeza que a sua mãe não vai brigar com a gente, Fabrício? – Uma garota de olhos verdes brilhantes e cabelos ruivos presos cuidadosamente em uma trança perguntou, enquanto ela e o grupo com mais oito amigos caminhava pateticamente em direção ao canto mais escuro do grande quintal.

Atrás deles, o crepúsculo encerrava o dia do aniversário do menino que guiava os amigos, Fabrício, com seus pequenos olhos azuis atentos e temerosos, enquanto fingia ser corajoso o suficiente para continuar com o ligeiro desafio. Os cabelos dourados do menino eram constantemente levados pelo vento, assim como seu companheiro, logo atrás dele, que tinha os cabelos num dourado um pouco mais claro. Esse era Luís. E ele, sim, demonstrava o medo que Fabrício fingia não ter.

— Não, ela não liga, Catarina — respondeu, arrancando um galho forte de uma árvore próxima e fincou no chão para ajudá-lo a andar, como um cajado. — Enquanto a gente estiver dentro do quintal...

Um cão uivou ao primeiro sinal da Lua, fazendo Luís e as meninas pularem de susto. Cada um deles agarrou o braço do companheiro mais próximo que aparentava ser forte. A garota loira de olhos cor-de-mel, Raquel, teve que dividir o braço de Pedro, o pequeno de cabelo ruivo-desbotando-para-castanho e olhos azuis sinceros e corajosos com a pequena morena de olhos castanhos, Belinda, porque o garoto que estava do outro lado dela, Luís, estava amedrontado o suficiente para ele mesmo agarrar seu braço. A pequena Catarina, a mais nova do grupo, com ainda sete anos recém-completados, correu para frente e segurou o braço de Fabrício que estava livre do cajado. Ele sorriu mais confiante com aquilo e o seu medo escondido pareceu se amenizar. Por último, a morena de olhos tão escuros quanto a noite que caía, Léa, enlaçou os dedos com os do penúltimo garoto livre, Arthur, moreno e de olhos azuis brilhantes.

O último garoto, Michael, irmão de Raquel, estava ali apenas arrastado pela irmã e olhou desejoso para uma das amigas dela. Ele esperava que a garota arrancasse o braço que segurava e viesse correndo para ele. Era apenas por ela que ele estava ali com a irmã. Se não fosse, estaria brincando com garotos mais velhos, da sua idade de nove anos. Todos os outros tinham oito anos, exceto Luís, que já completara nove, Catarina e Belinda com sete.

O comboio de pequenas perninhas seguiu seu líder aniversariante até onde ele queria. A intenção da viagem era um plano de Arthur, que era o único que sabia o que fariam quando chegassem ao lugar. Ele só queria se divertir às custas dos outros garotos e das meninas.

Mas nem ele, nem Fabrício haviam ido àquela casa à noite.

Estavam chegando à beira do fim do longo e extenso quintal de Fabrício. E era bem próximo dos limites daquele espaço controlado que estava o fim da jornada.

A cabana se mostrou a eles em poucos passos. Ela era toda feita de madeira velha e desgastada. A pintura branca, que um dia poderia ter deixado a casa bonita, já quase não existia mais. A única janela estava presta com tábuas de madeira que a impediam de abrir e a porta parecia prestes a cair.

Um a um, Pedro e Arthur à frente, eles entraram, fazendo a porta ranger, reclamando do esforço não comum. A casa fedia a mofo, poeira e animais mortos. As meninas reclamaram sonoramente e Luís fez coro, choramingando. Fabrício, que conhecia mais a casa e estava um pouco mais seguro, tateou no escuro da noite recém feita e achou uma vela, acendendo com um fósforo encontrado em uma caixinha amarela ao lado.

O efeito foi o contrário do que ele queria. As meninas gritaram vendo as teias de aranha e as sombras dos ratos correndo no chão. Léa foi rápida ao pensar e montou nas costas de Arthur. As outras não se demoraram a imitá-la e Raquel procurou o irmão para isso, deixando que Belinda subisse às costas de Pedro. Luís subiu no sofá.

— Então... Belinda, você trouxe os lençóis que eu te pedi? — Arthur perguntou.

A garota concordou com a cabeça e escorregou a mochilinha pelos ombros, jogando-a para Luís, que não tinha nada para segurar. Arthur arrumou Léa sobre suas costas melhor e andou até o segundo cômodo da casa, um quarto com um colchão mais esburacado que um campo pronto para o semeio. Ele pôs a garota no chão por um momento e ela o agarrou pela cintura, tremendo e resmungando baixinho. Ele acariciou o cabelo dela com um sorriso e pegou o lençol azul que Luís lhe oferecia.

Ele forrou o lençol na cama, ajudado por Luís, e logo os nove estavam sentados à cama na ordem Michael, Raquel, Luís, Fabrício, Catarina, Belinda, Pedro, Arthur, Léa e fechava-se o círculo.

— E agora? — Pedro perguntou.

Com um sorriso, no mínimo, maléfico, Arthur pegou sua própria mochila e tirou um tabuleiro com as letras do alfabeto e um compasso. Seu sorriso foi desafiador.

— Ah, não mesmo — Léa reclamou, sendo a primeira a reparar nos apetrechos do rapaz porque era a mais próxima. — Você não está pensando em brincar desse troço ruim nessa casa imunda e de noite, está?

Ele só sorriu, confirmando o seu plano recém descoberto.

— Que tipo de maníaco você é? — Luís perguntou. — Vamos embora, gente!

A porta bateu com um estrondo e, lá fora, a chuva começou a cair.

— Está vendo? — Arthur sorriu — É um sinal, eles querem que nós joguemos.

A porta rangeu novamente, batendo com mais força, quase confirmando o que o menino dissera. Ele sorriu com a coincidência.

— E se eu não quiser? — Belinda fez a pergunta que todos queriam.

O sorriso do garoto desapareceu e ele ficou sério.

— Vão nos matar um a um.

Os outros tremeram, menos Michael que estava parecendo seguro e sem medo, apenas para confrontar seu pequeno rival ao caminho do coração da sua garota.

— Não temos mais escolha — A voz de Pedro sussurrou em meio ao barulho da chuva.

Então, as crianças assustadas com os presságios forçados pelo vento, e não por espíritos como eles achavam, colocaram o tabuleiro no centro da roda torta e se aproximaram. Arthur pegou o compasso, abriu em um pequeno ângulo de sessenta graus e colocou o dedo em cima. Léa se adiantou para colocar seu dedo sobre o dele, mas ela acabou por destruir o ângulo do compasso, fazendo o menino olhar zangado para ela. Ela só se encolheu.

 — Desculpe — sussurrou, avermelhada.

Arthur revirou os olhos e tirou um copo descartável da mochila, ele viera preparado, mas era uma pena que sua mãe não o deixasse andar com copos de vidro por aí. Afinal, ele só tinha oito anos...

O copo foi posicionado com o compasso dentro, apenas porque eles não sabiam se copos descartáveis valiam, e os dedos foram colocados em cima do copo, amassando um pouco suas beiradas. As crianças rezaram. Não estavam com muito medo ainda, pareciam mais dormentes quanto ao que poderia acontecer, dormentes pela companhia um do outro.

— O que a gente faz agora? — Luís perguntou, baixinho.

Arthur levantou o dedo indicador da mão livre e levou-o a boca, pedindo silêncio.

— Tem alguém aí? — Ele perguntou. Nada aconteceu nos segundos que se seguiram. Impaciente, ele repetiu a pergunta — Tem alguém aí? — As garotas estremeceram com o frio, mas nada além do vento gelado que vira de lugar nenhum aconteceu — Tem alguém aí?

E na terceira pergunta, o copo se moveu. Todos tremeram ao ver o copo arrastar-se para o “sim” descrito no tabuleiro. Michael se assustou e tirou o dedo de cima dos outros, ele era o que estava no topo.

— Quem fez isso? — Ele perguntou, assustado. Ninguém respondeu.

Mas Arthur parecia meio em pânico ao ver o garoto com o dedo fora do copo.

— Põe o dedo de novo, você não pode tirar! — Ele reclamou. — Você tem que pedir pra ele te deixar sair, não pode tirar! — Ele repetiu.

Ainda assustado com a brincadeira dos mais novos, Michael devolveu o dedo a pilha. Todas as nove crianças se encararam, assustadas com a movimentação do copo.

— E agora? — Luís perguntou mais uma vez. Mesmo com medo, ele estava curioso. Fabrício estava calado e Pedro parecia admirado. As meninas estavam muito assustadas.

— Alguém quer perguntar algo? — Arthur questionou.

— Eu — Pedro respondeu — Posso? — Perguntou. Arthur, que parecia estar liderando, consentiu. — Você é homem ou mulher?

O copo estremeceu e se arrastou para o “H”. Homem.

— Um homem — Catarina estremeceu.

Eles se encararam, refletindo o mesmo medo da caçula, mas sem querer demonstrar.

— É minha vez? — Belinda perguntou. Todos concordaram. — Você morreu quando? — inquiriu, quase se mostrando segura com o que falava.

O copo deslizou lentamente. 1,8,5,3. 1853.

— Tem tempo — Pedro suspirou. — Catarina?

A pequena ruivinha levantou o nariz no ar, querendo se mostrar tão corajosa quanto seus amigos.

— Como você morreu? — Perguntou.

O copo demorou a responder. Mas ele foi riscando o tabuleiro e formando a frase medonha. CORTARAM A MINHA GARGANTA.

— Coitado... — Léa sussurrou. — Será que ele ainda pode falar?

— Ele está morto, Léa — Michael ralhou com ela, a sua voz cortando o ar.

Eles repreenderam-no.

— Não seja malvado, Mica — Raquel disse, ralhando com o irmão. O silêncio se fez, enquanto eles se encaravam. — Acho que é a vez do Fabrício.

O garoto concordou e aspirou o ar com força.

— Não sei o que perguntar... ahn... — Fabrício parecia meio perdido. — Onde você viveu?

O copo foi rápido. Escreveu LONDRINA.

— Ele ao menos era daqui, né? — Luís riu amarelo. — Bom... O que você fazia?

O copo correu com mais rapidez que na pergunta anterior e a resposta foi satisfatória e prática. CONSTRUÍA RELÓGIOS GRANDES.

— Que legal! — Pedro exclamou.

Os outros também se animaram com a descoberta e relaxaram como se fosse normal conversar com um espírito de um cara que construía relógios grandes por um copo de plástico com um compasso dentro. Eles sorriam, no momento descontraído e quase se esqueceram de que não havia acabado. E que não acabaria tão cedo.

— Vai, Raquel — Luís encorajou-a.

A garota franziu as sobrancelhas para o copo, e era fácil adivinhar que ela estava apostando que havia algo errado com o tal do espírito só pelas linhas que formavam em sua testa juvenil.

— O que você quer? — Ela foi categórica. Sem rodeios, direto ao ponto.

E o copo correu. Primeiro em direção a Pedro, ele franziu a sobrancelha ao ver o copo parar em cima do M.

— Mexer? Meditar? Melhorar? Mijar? Mudar? — Pedro questionou. Ninguém respondeu.

Então o copo voltou a correr no tabuleiro, dessa vez, em direção à Fabrício. E parou em cima do A.

— Será que ele quer malhar? — Raquel perguntou, olhando para o copo parado por cima de Luís.

Luís negou com a cabeça, uma sombra de medo passou pelos seus olhos quando ele descobriu a resposta, mas nada disse. Ficou apenas ouvindo as teorias absurdas dos seus amigos.

— Mascar chiclete? — Fabrício tentou.

— Não, ele quer marchar como ele marchava nos grandes exércitos das guerras — Catarina disse. Os outros olharam admirados para ela. — Que foi?

Não responderam. O copo voltara a se mexer. Léa se encolheu, a resposta medonha brilhando na expressão de seu rosto assim como brilhara na de Luís. Ela o encarou e os dois se apoiaram em silêncio a esperar, ao invés de falar com os outros. Porque o copo correra na direção de Michael e agora descansava tranquilo na letra T.

— Ele veio tomar um mate? — Pedro continuava a se perguntar.

Mas ninguém falou nada. Arthur parecia ter ido pelo mesmo caminho de Luís e Léa. Michael tremia e Catarina e Raquel não tinham mais ideias. Belinda estava quieta, temendo por Pedro que não parava de falar coisas absurdas. Fabrício havia se encolhido, também, mas não pela palavra que se formara, mas pela face de desespero que ele encarava à sua frente, Léa.

E o copo voltou a correr. Voltou à Fabrício.

— Ah, é isso. — Pedro sorriu, se sentindo inteligente. — Ele veio explorar as matas. Mas que matas?

— Cala a boca, Pedro — Belinda falou.

E com uma rapidez maior que das outras vezes, apenas pelo prazer de terminar a palavra com a última letra, entre Michael e Léa. O copo parou, quase que alegremente, em cima do R.

MATAR.

— Chega! — Michael choramingou. — Posso sair? — Ele perguntou ao espírito.

A frase demorou a se formar, mas ela veio. O copo deslizou várias vezes no tabuleiro, tentando ser claro, deixando pequenos espaços de tempo entre as letras e grandes nos fins de palavras. Ninguém falou enquanto ele não terminava, parando no ”não”

OS OUTROS PODEM, VOCÊ NÃO.

Eles se encararam, a face de pânico estampada em Michael refletia em cada um deles. Um a um, eles foram tirando o dedo do copo até que só o de Michael ficasse. Então o copo deslizou.

VOCÊ É MAU COMO EU.

— Não, não sou! — Michael choramingou.

VOCÊ INVEJA COMO EU.

Michael não respondeu. Ele invejava. Então, só chorou.

VOCÊ DEVE MORRER COMO EU.

E foi rápido, nenhum deles conseguiu sequer falar algo antes que acontecesse. O compasso dentro do copo rasgou o plástico fino que o prendia e voou no ar com nada o sustentando. Foi como um foguete e cravou junto a jugular. E dançou até o outro lado do pescoço, deixando o rasgo escorrer a vida do menino para fora.

O grito foi único, vindo de oito vozes diferentes. O garoto cuspiu sangue e escorregou da cama com um último suspiro. O compasso, sujo de sangue, ainda flutuando no ar, caiu em cima de sua barriga.

E os oito saíram correndo pela porta rangente da casa, em meio à chuva, aos choros e aos berros de volta aos braços de suas mães para contar o que havia acontecido.

Ninguém nunca havia acreditado.

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