Alyssa
A única farmácia do bairro, aberta por vinte quatro horas, ficava há quadras do abrigo.
E pra lá que eu estou indo agora ,movida por um tipo de energia e adrenalina que eu não imaginava que um corpo tão fraco e doente como o meu fosse capaz de produzir de uma hora para a outra. O vento gelado chicoteando o meu rosto Junto com a fina e fria garoa umedecendo o meu único casaco de moletom , não me incomoda como me incomodaria em outra situação. A febre também não parece mais tão incômoda. E o meu estômago parou de protestar ,apesar de ainda doer de fome.
Eu continuo andando.
Tudo para salvar a vida de um estranho motoqueiro assassino.
Um lindo estranho motoqueiro assassino que como um toque de mágica , me fez confiar nele quando já há muito tempo eu tinha deixado de confiar nas pessoas ,principalmente nos homens. Por que todos aqueles que cruzaram o meu caminho, me oferecendo gentileza e bondade, sempre esperavam serem recompensados em troca. Eles se aproximavam ,se mostravam gentis e dispostos a me ajudar. Pediam para ouvir a minha história , mas assim que eu contava , esperançosa que ia receber alguma ajuda, a amarga verdade vinha à tona. O que eles queriam era a certeza do quão ferrada eu estava pra aceitar as suas propostas sujas.
Mas Tristan não. Ele não estava fingindo que se importava.Eu entendia muito bem de fingimento pra saber disso.
Aqueles intensos olhos de tigre , não saíram do meu rosto nenhum segundo enquanto eu contava a minha história. E depois ficou furioso com a minha mãe e Santiago pelo que fizeram comigo.
Mas a minha confiança nele é o que menos importa uma vez que assim que ele ficar bom vai embora e eu nunca mais o verei novamente.
O que importa é salvá-lo. Quando deixei o abrigo , vi que a toalha que pressionei sob o corte para estancar o sangue já estava ficando ensopada. Ele estava sangrando e muito.
Alguns minutos mais tarde, cheguei à farmácia , que mais se parece com uma daquelas lojas de conveniência chique onde você pode encontrar quase tudo um pouco. O que é bom porque eu espero conseguir alguma coisa pra comer ali também uma vez que eu não tenho tanta energia e nem tempo pra procurar um outro lugar aberto a essa hora pra comprar comida agora.
Não quando um um ferido dependia de mim. Quando eu digo alguma coisa pra comer ,eu me refiro a aquelas barriguinhas e biscoitos de cereais light e diet muito comum de se encontrar em farmácias.
A campainha ressoou pela loja notificando a minha entrada quando passei pela porta giratória. Peguei uma cesta e comecei a explorar pelos corredores e prateleiras até encontrar o que tinha me levado até ali.
—Posso ajudá-la , moça ? — um atendente perguntou atrás de mim. E logo em seguida,um segurança enorme com cara de poucos amigos se enfiou na minha frente e cruzou os braços enquanto me olhava feio.
Disfarçando a insegurança que sempre sentia quando me via em situações como essa , quando as pessoas me tratavam como um ser contagioso, me virei para falar com o atendente. O segurança fez questão de mudar de lugar para que eu visse , agora ,ele está do lado do atendente.
— Sim , obrigada. Onde fica o setor com os itens de primeiros socorros ? Não estou encontrando.
É só me mostrar que eu mesma posso pegar o que preciso.
—Forcei um sorriso para ambos que não foi correspondido. Nenhuma novidade até então.
—Entendo. —disse o atendente, franzindo a testa e em seguida, estreitou um olho ao mesmo tempo que puxou o canto dos lábios num sorriso claro de deboche.
— Claro que você pode pegar o que quiser , mas pra isso tem que ter dinheiro para pagar. —Correu os olhos para mim com certo desprezo. — O que não é o seu caso. Acha que eu não reconheço um maldito viciado sem teto só de olhar para um ? Sei o que veio fazer aqui , mas já adianto que não vai conseguir. Então ,dê o fora antes que eu chame a polícia.
Meu Deus. De uma simples sem teto faminta eu passei pra uma viciada em drogas sem teto . Que progresso , não ?
—Eu não sou uma …
—Todos dizem a mesma coisa. Mas sempre querem a mesma coisa. Roubar ou pedir dinheiro. —Ele me interrompe e acena pro segurança. —Tire ela daqui. Em seguida , lamenta :
—Merda. Não vejo a hora de ser transferido para outra loja . Não aguento mais ter que lidar com esse tipo de lixo. E esse bairro está cheio. Quando essas pragas de sem teto não estão pedindo dinheiro pros clientes na porta da farmácia , estão tentando roubar.
O segurança me olhou feio e apontou para a porta. — Se retire ou eu mesmo faço isso por você.
Pensei em sair dali correndo como sempre fazia ,mas o rosto cheio de dor de Tristan veio na minha mente e isso foi o bastante para uma súbita fúria esquentar o meu sangue e com ela uma coragem que nunca tive antes em situações de humilhações como essa.
Tirei o maço de dinheiro do bolso do casaco e balancei no ar com brusquidão.
—Isso aqui é suficiente para convencê-lo que eu tenho como pagar,sr ? Ou precisa de mais alguma prova ?
—Perguntei, o encarando.
As bochechas rechonchudas do atendente ficaram vermelhas. Ele olhou para o segurança e acenou o cabeça ,o que logo vi que era um sinal para o segurança se afastar porque foi o que osegurança fez. Ele afastou ,mas só alguns passos e ainda me olhava feio. O atendente fingiu uma tosse e abriu um sorriso falso.
— É,.. eu sinto muito, moça. Eu cometi um erro aqui. Na verdade,.. —Ele olhou irritado para o segurança— Paolo cometeu um erro e me levou a cometê-lo também.
Ele confundiu você com uma garota sem teto que ele viu ser expulsa pelo amigo de um restaurante perto daqui dias atrás.
O meu coração disparou e o meu rosto queimou de vergonha.
Ele não se confundiu. Era eu essa sem teto que tinha sido expulsa do restaurante. Eu não tinha ido lá para pedir comida ou roubar , fui pedir um emprego , mas o segurança do lugar era o mesmo que tinha me visto revirando a lata de lixo duas noites antes disso e deduziu que eu estava lá pra pedir comida ou dinheiro para os clientes.
—Eu realmente sinto muito. E evidentemente ,Paolo também , não é mesmo Paolo ? —disse ele com um olhar irritado pro segurança que concordou e me pediu desculpas meio contra gosto.
Era incrível o efeito que o dinheiro causava em algumas pessoas.
Deixei isso pra lá e dizendo que aceitava as desculpas deles , apesar de não ser verdade, segui na direção do corredor indicado por ele que era onde eu ia encontrar tudo que ia precisar para tratar do ferimento de Tristan. Já no corredor e antes de eu começar a pegar qualquer coisa das prateleiras , vi quando o atendente tirou o celular do bolso e virou de costas para mim. Enquanto isso,o segurança me observava sem disfarçar.
O meu coração disparou feito um tambor e as minhas pernas ficaram moles e trêmulas com a possibilidade de ele estar chamando a polícia. Uma notável sem teto com tanto dinheiro no bolso em uma farmácia atrás de itens de primeiros socorros era muito suspeito. Lágrimas começaram a brotar nos meus olhos e com dor no coração por ter que voltar pro abrigo sem nada para cuidar do ferimento de Tristan ,comecei a me afastar indo na direção oposta do atendente . Se eu tivesse sorte ,conseguiria sair dali sem que ele ou o segurança me visse e antes da polícia chegar.
—Ei ,moça ! —O atendente me chamou ao mesmo tempo que ouvi os seus passos apressados para me alcançar.
Correr ia ser pior. Só ia reforçar as suspeitas dele sobre mim.
Eu parei no meio do corredor e esperei ele se aproximar. O meu coração batia rápido e as mãos começaram a suar frio.
—Aqui ,eu trouxe uma cesta. Temos carrinhos também se preferir —disse ele meio ofegante. Eu me virei e olhei para ele que tinha uma cesta na mão. E se fosse só uma distração para me segurar ali até a polícia chegar ?
—Olha , eu sei que você disse que pode encontrar tudo sozinha. —disse ele ainda segurando a cesta estendida para mim. —Mas depois do que eu disse ,eu gostaria muito de atendê-la . É só você me dizer do que precisa que eu pego pra você. Qualquer coisa. Por favor , moça... —ele baixou a cabeça parecendo derrotado. — Não me denuncie. Eu tenho dois filhos pra sustentar.
—O que ? — Perguntei confusa.
Muito confusa por sinal.
—O meu gerente viu tudo pelas câmeras e disse que se você me processar ele vai me demitir. —disse nervoso e parecendo muito envergonhado também.
Oh , Deus , obrigada. Muito obrigada.
— Não se preocupe. Eu não vou fazer isso. Só quero pegar o que vim buscar e ir embora.
Ele respira com muito alívio e ele não é o único porque eu também respiro.
—Então ,do que precisa ? —Perguntou ele muito disposto a me ajudar. Falei do que precisava e ele foi jogando dentro da cesta. Quando mencionei os remédios e o kit de sutura,notei um ar de desconfiança e curiosidade no rosto dele , mas não fez nenhum comentário ou perguntas , só colocou tudo na cesta.
A caminho do caixa, encontrei as barras de cereais e joguei várias delas na cesta e duas garrafas de água também.
Após pagar por tudo, voltei para o abrigo. A chuva fina de antes tinha engrossado um pouco, mas ainda assim não incomodava. Quando cheguei no abrigo empurrei a porta e entrei ,
com o coração saltitando rápido e forte de ansiedade para saber se Tristan estava bem.
Mas tudo que encontrei foi um colchão vazio.
Decepção atingiu o meu peito.
Ele foi embora. Todo esforço que tinha feito por ele tinha sido inútil. Claro que já esperava que ele fosse embora, mas não ferido daquele jeito e sem menos se despedir. No momento que pensei nisso ,na despedida,
ri de mim mesma.
Se despedir ? Meu Deus, que coisa ridícula de se pensar.
O homem era um assassino. Um assassino que colocou um sorriso arrogante ,frio e presunçoso nos lábios logo depois de ter dito que tinha perdido as contas dos homens que tinha matado hoje.
Só hoje. Os assassinos não se importam com ninguém a não ser eles mesmos. São frios , cruéis e sem coração.
Por que raios abriria uma exceção para uma sem teto ? E além disso, eu devia estar comemorando por ele ter me deixado viva e não se lamentando por ele ter ido embora sem se despedir. É,eu deveria , mas acontece que não
sinto animada com a partida dele para comemorar. Eu começo a sentir frio e só então constato que é porque as roupas estão úmidas pela chuva gelada que tomei enquanto voltava pro abrigo. E eu outro casaco além do que estou vestindo. Bufando ,eu jogo a sacola da farmácia no colchão que, com exceção dos meus remédios para gripe e as barras de cereais ,todo o resto é inútil. Inútil porque eu não tenho mais nenhum ferido para ser tratado aqui. Eu vou até a minha mochila para pegar uma roupa seca, resmungando insultos sobre idiotas assassinos sem coração enquanto faço isso. Mas parei assim que lembrei do dinheiro no meu bolso. É muito dinheiro. E ele deixou comigo. Eu retiro todos os insultos que joguei sobre ele , principalmente o assassino frio sem coração. Com esse dinheiro , da comprar uma roupa nova e com uma boa economia, consigo comprar comida por uns dois meses. Mas eu espero conseguir um emprego antes disso. Não vou mais parecer uma mendiga.
Por causa dele. Ele fez isso por mim. O assassino que eu acabei de julgar que não tem um coração.
Por que eu ainda não estou pulando de felicidade ?
"Por que você sente falta dele. E sabe que não vê-lo de novo.
Sim ,eu sinto a falta dele. Mas também estou furiosa com ele por ter ido embora ferido daquele jeito. E triste por saber que não vê-lo de novo.
O som da porta sendo empurrada me fez pular de susto e ainda assustada , olhei para trás ,na direção da porta. E lá estava ele ,com uma mochila em uma mão e uma garrafa de uísque na outra. Foi impossível conter o sorriso no meu rosto.