CAPÍTULO UM - 2ª PARTE - O REDUTO

O maior reduto gay já visto no Rio de Janeiro e o mais famoso do país.  Foi eternizado pela música de Agnaldo Timóteo como a Galeria do Amor.

Por três décadas, a partir dos anos setenta foi um ‘point’ badalado em Copacabana, mas ser gay nos anos 90 ainda era visto como imoralidade e alvo de descriminação e rejeição.  A Galeria era um dos poucos lugares do Rio onde podia-se soltar a franga literalmente e ser feliz!

 Repleta de michês que iam faturar dinheiro com os gays que frequentavam o lugar.  Era o palco iluminado onde se gozava de plena liberdade de gênero e onde a paz reinava entre as mais diferentes tribos. Conservou seu ‘glamour’, encanto e até uma ingenuidade artística e romântica por três décadas. O final dos anos 90 foi perdendo espaço para a corrupção das drogas, a prostituição e a violência, que sem perdão, destruiu todo o amor da Galeria.

Localizada em plena Avenida Nossa Senhora de Copacabana, posto seis, no número 1.241, chamava a atenção por seu poder gregário e por ser um dos cenários mais queridos de toda a comunidade gay e afins.  Encantava com espetáculos montados em seu teatro, e em suas duas boates badaladíssimas desde os anos 60.  Em verdade um marco histórico com fama internacional esmagado pelo preconceito da sociedade da época e destruído pela corrupção e o descaso.

A Galeria Alaska foi a primeira galeria de Copacabana inaugurada em 1951 com o estabelecimento de lojas para “comércio fino”. Situada embaixo de um condomínio residencial de classe média na altura do Posto 6 da praia de Copacabana. É uma passagem de aproximadamente uns cem metros que liga as duas principais avenidas do bairro: Nossa Senhora de Copacabana e Avenida Atlântica. A entrada principal é decorada com altas colunas de concreto cobertas com uma cor clara, que olhando de longe imita mármore, mesmo material das paredes internas, criando um ambiente sofisticado e distinto. Esta entrada localiza-se na Av. Nossa Senhora de Copacabana, que possui estabelecimentos comerciais, prédios residenciais, hotéis, pontos de ônibus e intenso tráfego de carros. Do outo lado fica a Avenida Atlântica que é toda residencial e com vista para a famosa Praia de Copacabana.

A Galeria abrigou duas boates, duas salas de cinemas e um teatro, porém ao longo dos anos foi intensa a dinâmica de aberturas e fechamentos devido as mudanças nas sociabilidades que sempre acompanham o curso dos anos e ao público da época.

Esse espaço depois que foi conquistado por travestis como um espaço artístico e de socialização homoafetiva sofreu ao longo dessas três décadas uma contínua marginalização e degradação humana e social além de desmoralização e perseguição da comunidade local e da sociedade como um todo. E foi esse o processo que destruiu o point Galeria do Amor.

A última boate a fazer história na galeria na década de noventa chamava-se House Lady Cristiny.  Lady Cristiny era uma transgênero brasileira que vivia na Europa, casada com um alemão e que voltando ao Brasil cedeu ao desejo de salvar o velho reduto e moralizar o lugar.  Funcionava como um restaurante e nas noites de sexta a domingo como boate.  Uma boate só para lésbicas, inédito para a época.  Havia um letreiro em ‘neon’ vermelho que piscava, avisando em inglês, qual era o público alvo. E ai de quem não respeitasse o aviso! A segurança era muito cuidadosa.  Com música ao vivo, muita gente e muito barulho.  Vivia lotada! Era a mais popular e seus preços mais em conta.  Um sucesso mesmo, mas uma tentativa ingênua de moralizar o lugar, visto que seu espaço era reduzido acolhendo até quatrocentas pessoas e na pista da Galeria Alaska, na avenida dava quatro mil pessoas reunidas em toda a sua área.

Mas já não adiantava mais! 

A Galeria Alaska morreria no ano seguinte

A outra boate era a Sotão.

Servia a todo tipo de público e seu estilo era Disco Music. Uma discoteca.  Era assim que a gente denominava na época.  Não era grande coisa vista por fora!  Toda pintada de preto e uma placa simples, de madeira crua, anunciando seu nome em tinta verde fosforescente.  Mas sua fama era notória e funcionava 24 horas nos fins de semana.  Sua capacidade para trezentas pessoas era muito disputada, formando filas monstruosas ao longo da avenida, ainda durante o dia.   Por dentro, surpreendia!  Era um lugar lindo e mágico! Uma cópia perfeita da boate do filme “Os Embalos de Sábado a Noite”, famoso filme americano de 1977, um drama musical idolatrado pelos gays. As caixas de som ficavam no teto e seu piso em acrílico todo iluminado por baixo a tornava uma das boates mais lindas e famosas do Rio de Janeiro.  O salão ainda tinha um atrativo a mais: os garçons eram todos rapazes lindos, corpos esculturais e serviam as mesas só de sunga, tênis, meias e gravata borboleta. Uma delícia ver todo aquele cenário! Puro glamour!  Tudo muito sedutor! Mas apesar de toda sedução era proibido se tocar, e carícias mais ousadas na pista de dança.

Além das maravilhosas boates, havia um teatro: O Teatro Alaska, que dava nome a galeria. Nele aconteciam os mais variados tipos de shows, muitas atrações e artistas famosos nacionais e internacionais e de travestis e drags, as segundas e terças, no melhor estilo ‘cabaré’. Os sábados eram destinados aos shows com dançarinos sarados e lindos, o “A Noite dos Leopardos” e as quartas feiras outros bailarinos, igualmente lindos, se apresentavam, nus, dançando rits famosos da época, só para o público feminino. Era o ‘Clube de Mulheres”, um grande sucesso e que lançou muito dançarino na televisão e era visitado por muitas atrizes, celebridades e famosos. 

  

   Até a década de 80 ainda se podia arrumar um namorado sem correr o risco de ser assaltado.  Os michês eram profissionais educados e ainda havia romantismo nas ruas. A partir dos anos 90, até seu fechamento, a promiscuidade tomou conta do território e o caos aos poucos foi se estabelecendo acompanhando o pulsar dos tempos que, sem perdão acabava a cada dia com a descrição e o cuidado dos que sempre foram oprimidos e que ali podiam gozar de plena liberdade.  Invisíveis até o sucesso da Galeria Alaska, por três décadas foram os donos do pedaço.  Depois disso a droga e a prostituição passaram a imperar e aí virou terra de aproveitadores.   O amor se fazia pelos corredores e entre os boxes do primeiro andar.  Era comum que lá pelas tantas amantes se pegassem entre as portas fechadas dos boxes e espalhados pelas escadas e corredores até o terceiro andar.

  Sexo explícito e louco ficou comum!

   E ver homens dando o cú, mulheres se chupando, drags vestidas de festa caindo de boquete em homens de terno e gravata, policiais comendo prostitutas novinhas que faziam ponto ali, mulheres e homens comendo os michês, tudo isso bem entre os boxes do primeiro andar, que era passagem e ligava a Av. Atlântica com a Nossa Senhora de Copacabana, caminho de muitos trabalhadores e moradores e essa promiscuidade toda causou tanta indignação que os dias de ferveção foram reduzidos e um ano depois exterminados.

Em meio a tudo isso, a AIDS ganhou a mídia e dizimava aqueles que trepavam sem camisinha e as bichas eram o alvo. Por um bom tempo esse púbico gay, os travestis, as bichas e as drags foram intitulados os culpados por espalhar doença tão devastadora.    Em verdade foram usados como bucha por aqueles que só queriam uma desculpa para atacá-los e expulsá-los dali, contudo entre os frequentadores muitos morreram doentes e nem se entendia direito o que era aquilo. Sabíamos que matava e matava mal!

A Galeria do Amor morria também!

  O que antes rolava de domingo a domingo agora estava reduzido e acontecia de quarta a sábado pois os domingos estavam reservados a duas igrejas evangélicas que se aproveitaram da falência do comércio devido à má reputação do lugar, se instalado nos boxes do primeiro andar e faziam protestos pela moralidade no local.  Protestos cada vez mais violentos, invadindo a Av. Copacabana. Foi a Igreja Universal do Reino de Deus, denominação evangélica que fazia muito sucesso na época arrastando muitos fiéis que em nome da santa especulação imobiliária compraram o local.

 As boates mudaram de endereço, as tribos também. Só o Teatro Alaska resistia e por uns anos continuou com os espetáculos.

  Antes da estúpida morte do João, outros casos de morte abalaram o local.

 Um gay foi perseguido e linchado.  Espancado até a morte por um grupo de pivetes que aterrorizavam o local em assaltos frequentes e violentos. Era manhã de domingo e a vítima foi tomar a ‘saideira’ em um dos bares do entorno e, diga-se de passagem, em frente à delegacia local.  Desde da sua criação, em 1951, a Galeria Alaska teve como característica, ao longo dos anos, um histórico de criminalidade e violência que durante as noites tomava conta do lugar.

Mas nada comparado a década de noventa!

  Foi a época mais violenta na história da sua história.  Isso em todos os sentidos: violência, AIDS, Cocaína pura, Heroína, nunca se morreu tanto!

Vários casos de overdose e era normal ver os bombeiros recolhendo o cadáver do desgraçado e a festa nem parava! 

   Depois aconteceu o assassinato da filha de uma escritora famosa de novelas televisivas.  Mãe e filha frequentadoras do lugar andavam com uma turma pesadona. Turma que regava com álcool e Cocaína pura as noites de Copacabana!   Seu algoz foi um dos dançarinos do espetáculo Clube de Mulheres que acontecia no Teatro Alaska.   Andavam juntos e eram amigos de balada. A polícia descobriu que foi um crime passional, um triângulo amoroso. O dançarino, sua esposa e a filha da escritora. Foi um escândalo e a Galeria do Amor novamente nas páginas policiais. 

  Daí veio o pulo do João!   Um suicídio cruel sob os efeitos da maldita Heroína que era a verdadeira assassina e nunca falada ou comentada nos noticiários.

 Invisível! 

 Novamente escândalo!

 Novamente páginas policiais!

 Agora sob o protesto de evangélicos e moradores.  Moralistas que gritavam sua homofobia bloqueando a Avenida Nossa Senhora de Copacabana com palavras de ordem maldizendo o lugar e chamando-a de “A Galeria do Diabo”.

E ainda tinha a polícia no rastro do tráfico de drogas local.   Os casos de overdose que iam parar no pronto socorro ou no IML sumiam nas estatísticas.   Então os envolvimentos em mutretas e vários tipos de sujeira e corrupção explodiam na cara dos frequentadores que eram perseguidos pela polícia irada em ver suas mazelas expostas publicamente!

Então a Heroína apareceu no pedaço! Sedutora e cruel como puta classe A de beleza rara.  Droga cara e de muito boa qualidade passou a marcar os casos de briga, roubos, golpes e as overdoses.  Muitos casos que sobrecarregavam a polícia, os hospitais e o necrotério. Isso aguçava por demais tanto a curiosidade como a cobiça dos policiais da área!  Muita grana envolvida!  Droga cara!  Não era uma droga qualquer. 

Em sendo assim, diante de todas essas circunstâncias, em janeiro de 1999, fecharam a Galeria do Amor e tudo foi vendido para a Igreja Universal. 

    Foi no começo dessa bagunça toda que cheguei.   Frequentei o reduto por pouco tempo. Dois anos e meio.  O bastante para mudar todo o pensamento sobre as coisas da vida e minha relação com elas. 

Naquela noite fiz uma viagem mental relembrando minha trajetória até ali. 

  Quando cheguei a decadência estava mais do que instalada. Podia sentir o glamour que ainda brilhava por entre as muitas tribos. Conheci pessoas que eram locais e da antiga. Apaixonei-me por suas histórias. Vivi intensamente os últimos tempos desse lugar histórico que me corrompeu e que também me salvou!

 Salvou-me de mim mesma!  

    

Dentro do taxi lembrei do João meu amiguinho mais querido. O mais sensível!

 Como faca de dois gumes a Galeria do Amor o destruiu e a Heroína foi a ferramenta desse processo.   Seu pulo do terceiro andar daquele prédio foi um tapa na cara de todos nós que, em pensar, até hoje, dói!

 Mas esse é um pensamento de pessoas suicidas. Somos assim mesmo! Vive-se por um fio de navalha!

-  Puta que pariu!  Terceiro andar filho da puta! Porque você pulou meu amigo? - me perguntava, ainda incrédula, ouvindo a sirene gritando atrás do taxi que rapidamente ia deixando a cena e me transportando para o inferno da culpa eterna.

         O terceiro andar era uma espécie de motel comandado pelo Cláudio, um travesti velho, decadente, rabugento e proprietário dos dez apartamentos do andar que serviam a prostituição.  Nós sempre fugíamos da claridade do dia e continuávamos as rotas nesse andar que estava sempre a nossa disposição. Minha turma era privilegiada pois fazia parte dela o matuto Pacheco, a traficante Keith Marrone, o Duda, dançarino e um dos Leopardos e o casal Samuel e Giovani, que eram os reis da Heroína!  Eles traziam a Heroína direto da Itália.  A droga mais mortal que conheci!  E que por pouco, por muito pouco não me matou assim tão mal como fez com João.

  Ter sempre um apartamento reservado foi um acordo que o Pacheco fez com o Cláudio em troca de Cocaína e depois a Heroína.  Esse acordo fez muita coisa mudar entre nós e nos corrompeu brutalmente! 

   Ao mesmo tempo que tínhamos privacidade para fugir dos perigos da luz do dia nosso uso de drogas foi ficando cada vez mais intenso e as manobras para fugir das abstinências, como o sexo, foram ficando cada vez mais pesadas, principalmente depois que a Heroína entrou em cena.  Era uma bomba relógio prestes a estourar.  

E estourou bem na nossa cara com o pulo do João!

Dentro daquele carro fiz a retrospectiva mais infeliz da minha vida miserável.

Me sentia culpada!   Já tinha visto os sinais e não fiz nada!

Vi a mudança! Vi a neurose, as paranoias! Vi o medo nos olhos do João toda vez que se aplicava.  Vi os efeitos arrasadores que tudo isso fez na cabeça dele!

Vi e não fiz nada porque não podia admitir nem ver o que também estava passando. Tinha que me fazer forte e entre sorrisos e fodas continuar alimentando minha incontrolável vontade de usar! E depois me esconder sobre os efeitos da maldita H que assim como a Cocaína também acabou me inutilizando para o sexo.

  Aquela noite de sábado cheguei na Galeria as dez da noite e o lugar já fervilhava.

Minha turma foi chegando devagar e algumas horas depois estávamos todos juntos, como sempre.  Dani, voz de trovão, Luciana com seu namorado Duda, dançarino e um dos Leopardos, o João e o Pacheco, o casal Giovani e Carlos, Telma e suas meninas Solange e Gracinha.   Seguíamos sempre o mesmo sistema; chopp, rota, muito papo, a Cocaína e a Heroína rolando.

Essa era minha galera e desde que me juntei a ela muitas coisas mudaram para mim, umas para o bem e outras para o mal, dois lados da mesma moeda assim com tudo na vida!  Aprendi muito de mim mesma, superei e então recomecei!

Venci minha maior batalha!

 Sobrevivi a mim mesma!

 Olá, muito prazer!

 Sou Laura.   

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