CAPÍTULO UM - 1ª PARTE - TESTEMUNHA OCULAR

                                                     TESTEMUNHA OCULAR

Pensar em olhar por aquela janela me enchia de um pânico de morte. 

Mesmo assim me movi em sua direção. Precisava ver para acreditar no que tinha acabado de acontecer!

   Terceiro andar e lá embaixo o corpo de João jazia espatifado dentro de uma lagoa de sangue.

Mal podia acreditar!

   Ele se jogou do terceiro andar na onda, na neurose da droga e apavorado com toda a sacanagem que rolava em volta.  Nada que pudéssemos prever.  Aquela rota era só mais uma!  E apesar de terem acontecido algumas coisas perturbadoras era só mais uma rota!  

  Para o João a última!

-Puta que pariu – pensei - Mas logo o João!

Já tinha percebido os sinais.  Me identificava com eles, mas nunca pensei em ver uma cena dessas. Ainda mais com o João! Meu amiguinho!  Sabia de suas fragilidades, mas não sabia que era suicida.  A gente nunca conhece as pessoas de verdade.  E suicídio fica na cabeça, entra na alma e nunca mais se desgruda da pessoa.  Coração é terra que ninguém pisa. Eu nunca poderia imaginar que aquela rota pudesse terminar do jeito que terminou!  Nunca! Nem na mais louca das minhas viagens. Nunca tinha visto uma morte tão de perto!  Um suicídio.

  Precisava sair dali e estava paralisada.  Nessa hora meus instintos gritavam.  Tinha que sair o quanto antes.  Antes que a polícia localizasse o apartamento de onde caiu aquela pessoa e se estatalou em plena Av. Nossa Senhora de Copacabana, do terceiro andar do prédio da Galeria Alaska, a maldita Galeria do Amor.

  E todos nós que estávamos no apartamento seríamos responsabilizados e ainda tinha a droga para explicar.  Heroína! Acabaríamos todos em cana.

- Quem iria acreditar que ele se jogou?  Quem? –

Essa pergunta ficava martelando a minha mente ainda zonza com o mergulho do João para a morte.  Acho que nem eu mesma acreditava!  Se não tivesse visto com meus próprios olhos também não acreditaria!

   Eu havia me acostumado a toda aquela putaria como cachorro vira-latas.   João não se acostumara!

    As rotas, ali, sempre acabavam em sexo, bacanais, orgias, surubas, swings, ménages.

  Sexo de todo jeito!

  Mas tudo na maior boa, dentro da mais pura sedução. Sem forçação de barra ou violência. O ambiente proporcionava essa liberdade e com muito glamour. 

 Um reduto gay. O mais famoso e único na cidade, naquela época e para sempre. Marcou!

  Provocava a libido de qualquer um.  Mesmo do visitante mais inibido. 

   Mas os tempos eram outros e a Galeria do Amor agonizava!   Transformou-se em um lugar que agregava prostituição e drogas ostensivamente, transformando o ambiente que antes era um lugar de alegria e celebração a arte e ao amor em um cenário hostil, onde a violência impregnava e tragava todos a sua volta.

   Era comum aliviar a tensão das rotas de Cocaína, Heroína e Álcool com muito sexo.  São drogas que corrompem!  Mas nem todos conseguiam se adaptar.  Misturar sexo com esses tipos de drogas não é tão simples assim, sendo uma questão de costume e certos costumes não são para qualquer um.  É preciso um grande exercício de desprendimento dos valores e da ética pessoal, dos preconceitos e de todo juízo.

  João não conseguiu!   

  Foi destruído!

   Eu vinha de um ambiente onde já tinha visto de um tudo. Conhecia vários grupos, seus usos, costumes e hábitos e sempre evitei os que misturavam Cocaína e putaria. Sempre cuidei em manter certa distância até conhecer a Galeria.   Na época em que cheguei em Copacabana fugida do Baixo Gávea, minha intenção era criar um novo espaço para o meu negócio e arrumar novos fregueses.   

  Despretensiosamente fui chegando.  Aos poucos as rotas foram me engolindo e todos os meus planos foram engolidos também.  Tudo o que vivi ali, de fato, serviu para me libertar e encarar coisas sobre mim mesma que até então fingia não ver e não saber.  A minha negação teve que cair por terra. Mas essa vivência me descontruiu.  Eu me perdi de mim mesma e enfrentei minha pior versão. 

É sempre mais difícil voltar!  Fazer o caminho de volta!  Isso é recomeçar.  Minha especialidade. Mas antes de me transformar em nova criatura tive que ir ao inferno!  E como sempre, criado pelas minhas próprias escolhas erradas. Tive que sofrer! Conhecer o lado ruim da história! E sentir na pele toda dor que essas escolhas equivocadas puderam causar! 

  E antes de ser obrigada a enxergar o óbvio vivi noites intensas de sexo, drogas e libertação. A Galeria Alaska, chamada na época de Galeria do Amor me ajudou a ver a vida como realmente era e as minhas limitações, principalmente as sexuais, foram as primeiras a sofrer mudanças, a um só tempo, radicais e necessárias para me livrar da escravidão em que vivia e as desculpas que dava para continuar cativa, jogando minha vida fora por nada!

A Galeria do Amor me ensinou!

Ali eu era anônima! Esse anonimato me ajudou a aceitar e aprender na prática que participar de uma sacanagem qualquer era só para extravasar a maldita compulsão e a crise de abstinência que se instalava quando não era mais possível me drogar e que podia me matar subitamente com um ataque cardíaco ou uma convulsão se eu continuasse negando-a.  Para isso não hesitava em usar sem parar aquela droga nova: a maldita Heroína que era especialista em matar e deixava bem claro que era impossível parar o uso sem ajuda ou conter o bad quando os recursos acabavam. 

Pobre daquele que teimasse em fingir que não estava entendendo os avisos que o corpo enviava! Muitos morreram assim! Na maldita compulsão! No maldito ‘não ser!

Todas as drogas são fatais, mas a Heroína é a droga do ponto final!

E eu era muito teimosa! Muito!

A Cocaína me cegava!  Recusava-me a encarar minhas dores e para isso precisava de anestesia.  Só que eu era um poço sem fundo e fosse qual fosse a droga ia querer sempre mais e mais e depois disso o tédio e com ele mais anestesia num círculo vicioso sem fim.

  Tive que me adaptar para me sentir confortável com o que estava vivendo naquele momento. Aprender com os que já conheciam a onda! 

  Então aprendi que podia extravasar no sexo o efeito dormente na anestesia mortal.  E isso sem maiores comprometimentos.   Ali eu podia tudo.  Sem rastros. E tinha a turma para me proteger, mesmo que nos envolvêssemos com outras tribos só fazíamos aquilo que fosse do nosso agrado.

 Encontrei, assim e ali, um meio de não explodir. Já não estava mais aguentando a rebordosa da onda e por mais que eu tentasse não conseguia resistir as minhas vontades. O sexo veio para me ajudar a suportar aquilo que poderia me destruir. Meu instinto de sobrevivência era mesmo poderoso, junto com todas essas descobertas pude libertar-me, inclusive do desejo de morte, que sonhava ser meu grande momento de alívio de todos os tormentos que já não podia mais aguentar.

 A Heroína chegou e primeiro foi um desafio, eu era movida a desafios, e depois foi a coragem que eu precisava para me jogar em desafios ainda maiores como por exemplo enfrentar e dar vazão a minha libido voraz.  Só que conforme anestesiava minhas dores, meu amor, empatia, dó, gratidão e consideração também foram anestesiadas e naquela noite acordei para minha miserável realidade filha da puta!

O momento de morte que vivi naquele dia, vendo João se jogar pela janela num voo solitário e fatal me sacudiu de tal maneira que nunca mais pude me drogar em paz! 

  Se é que há paz em se drogar!

Me ajudou a perceber que queria sair do inferno e que aquilo não era vida.  E todo o sofrimento disfarçado em liberdade e amor era um grande e eterno pedido de socorro!  Vivia num inferno pessoal. Um inferno interno tão intenso que poderia me devorar assim como fez com o João.  Eu vi esse mesmo tormento em seus olhos!  Vi sua agonia! Me identifiquei com ela!  Éramos iguais!  Mesmo tormento! Mesma agonia! Mesmas ilusões!  E não fiz nada!  Não pude fazer nada!  A mesma Heroína que o matou me paralisava!  E como uma voiyer macabra fiquei olhando-o se jogar da janela do terceiro andar!  

Aquele pulo no ar foi uma tentativa de se livrar dessa agonia! Desse inferno!

Ninguém é feliz vivendo num inferno!

Ninguém é feliz usando drogas!

Ninguém!

 Quando subimos para o terceiro andar já era dia claro, manhã de domingo e a onda da droga pedia um esconderijo. Todos estávamos pancados!  Uns mais outros menos...

  Para mim realmente não fazia diferença!  Há muito tinha deixado de lado a dignidade em manter as aparências, mas diante dos últimos acontecimentos era preciso se resguardar. A Galeria não era mais um lugar de paz e liberdade! Qualquer um que ficasse ali a luz do dia poderia ser agredido e até morto.  A vizinhança não tolerava mais os frequentadores e protestavam violentamente.

      João não conseguiu mais suportar toda a degradação a sua volta!  Estava vulnerável demais e a Heroína o devorava por dentro.  Naquela manhã ver sua homossexualidade ser ridicularizada por seu companheiro de muitos anos foi como um soco na cara e depois ver o seu homem comendo outro e sendo comido bem ali na sua frente foi demais.  Ele se humilhou, rastejou e implorou por amor agarrado as pernas do parceiro.  Com gestos violentos foi escorraçado do quarto, chutado e agredido sem dó nem piedade por aquele que sempre amou e protegeu.   Ele não aguentou! E pulou para a morte!

Naquele momento eu também me senti despencando no ar.  Eu também senti meu corpo se arrebentar no asfalto quente da avenida com meu amiguinho! Se Telma não tivesse se agarrado a mim naquela hora eu teria pulado junto na esperança ilusória de salvar meu amigo! Uma dor insuportável tomou meu peito!  Tudo em mim doía!  Meus ossos eram só dor!  Parei de respirar!  Por alguns segundos desfaleci no sofá com Telma agarrada a mim.  Assim que percebeu que eu não estava ali me sacudiu com toda sua força! Berrou e berrou meu nome dentro do meu ouvido!  Foi assim que voltei a mim e lembrei da triste realidade e desejei morrer mil vezes nessa hora!

Não era uma viagem! 

João pulou para a morte!

   Ver João caído lá embaixo me fez lembrar em como fui parar ali. Olhei em volta e todos no apartamento estavam em choque.  Dani gritava palavras de ordem e recolhia a droga, as ampolas, as seringas, andando de um lado para o outro dentro da sala atordoada e com sua voz de trovão gritava intimando todos a irmos embora.

- Bora galera, temos que sair daqui antes que lombre!

 Estávamos todos a beira de um colapso.  Meu coração batia tão forte que minha cabeça parecia que ia explodir.  Dormente, minhas pernas nem sabiam que estavam ali.  A borracha ainda estava presa no meu braço que sangrava e minhas coisas espalhadas na mesa de centro.  Fiquei vendo as pessoas correndo para a porta, querendo sair tudo junto, se espremendo, aterrorizadas com aquele momento.    Danei a rir! Achei engraçado!  Pareciam carrinhos bati-bati! Era o efeito da última picada!  Um torpor tomava conta de todo o meu corpo e eu só queria me deitar e adormecer naquela nuvem colorida que via em torno da confusão que a turma fazia para sair correndo pela porta.

  Telma me pegou pelo braço.

- Vamos mulher! Coragem!  Já chamei um taxi.  Vamos nessa!

Ela me sacudiu com força e bateu na minha cara até eu sair da viagem e acordar para aquela desgraça que tinha acabado de acontecer. Agarrou meu pescoço empurrando para fora do sofá e banhou minha cabeça com a água do balde de gelo que havia derretido.  A água gelada me fez gritar! Parecia um monte de alfinetes me espetando, mas saí da letargia. Sacudi os cabelos e estava de volta entendendo tudo o que tinha acontecido, querendo chorar, mas o choro não saía e apertava minha garganta, sufocando-me!

- Não é hora de choro criatura!  Vamos nessa mulher! Acorda porra! – berrou Telma apressada.

Secou e limpou meu rosto.  Recolheu nossas coisas na mochila que colocou nas costas. Vestiu meu casaco, calçou e me ajudou a levantar.   Minhas pernas ainda dormiam.  Descemos pelas escadas devagar, e sem atropelos foi me arrumando pelo caminho.

Saímos na portaria da Galeria Alaska sem problemas, braços dados, óculos escuros, um sol de rachar.  E aquele nó na garganta! Me joguei dentro do taxi pedindo a Deus que tudo fosse só mais uma viagem da maldita Heroína!

Olhei para trás e vi a multidão de pessoas em volta do cadáver do João, ao longe o som da sirene de uma ambulância.

- Puta que pariu! Meu amiguinho!  João! – balbuciava quando a vontade era de gritar.

  Telma me abraçou!  Deitei no seu colo, fechei os olhos e calei!

 E assim, fiz uma retrospectiva relâmpago daquela noite.

Já sabia dessas coisas daquela droga maldita! A pior de todas!   A pá de cal na minha vida. Aquela que transforma todas as fragilidades em alucinações tão reais que chega uma hora que não dá mais para distinguir o que é real!

 Olhei para os meus braços cheios de marcas. Algumas ainda sangravam em carne viva!

  Gelei! Uma onda de medo profundo me fazia tremer como com febre alta. Medo das alucinações!  Por um momento pensei que aquilo tudo, o pulo do meu amiguinho João, poderia ser só mais um pesadelo da onda da maldita Heroína.

  Vivia entre dois mundos! Tinha dias que eu não sabia distinguir onde estava e Telma conhecia muito bem essas viagens.  Ela sempre me socorria e andava comigo nos caminhos que eu escolhia quando entrava nessa onda do caos.

 Um sacode me fez voltar dos devaneios.  Telma me sacodia!  Estava acostumada a me trazer de volta. Sempre me salvando!  Ela era minha amiga.  Minha irmã não a perdoaria se alguma coisa de mais grave acontecesse comigo.  Ela temia Madame Marta! Todos temiam. Apesar de tudo ela gostava de mim como se fosse sua filha!   Podia contar com ela mesmo que não estivesse lúcida para saber, já havia me trazido de volta a realidade muitas vezes.  Ela odiava aquela droga nova.  Detestava toda vez que me encontrava alucinada de Heroína.  E todas as vezes prometia pedir a ajuda de Marta e isso era suficiente para me fazer parar e voltar a lucidez.

- Acorda Laura! Não é hora disso!  Fica na boa que estamos quase em casa.

 Disse abraçada a mim consolando-me e trazendo aquela terrível realidade de volta a minha mente.

De olhos fechados, recostei em seu ombro. Não eram alucinações da Heroína.

Era tudo verdade! Tinha acabado de acontecer!  João pulou para a morte!  Em pânico repetia isso em voz alta para que eu mesma acreditasse.  Não era uma viagem!  Foi um pulo para a morte!  E uma morte horrível!  

  Desesperada, me debatia dentro do abraço de Telma. Parecia que ia sufocar.  Tudo em mim era pânico!

 E aquele grito preso na garganta!

 E ainda sentindo nas veias a ardência gelada, como bala de menta, da última picada.

 Nunca mais voltaria ali.

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