CAPÍTULO DOIS - 1ª PARTE - LAURA E MARTA

  Vida difícil aquela!  Tempos de grandes aflições!

  Não que tivesse sido fácil até então.  Mas existe a chuva e os temporais!

E naquele momento grandes temporais sacudiam a vida das meninas.

A morte do pai, o abandono da mãe, a família desfeita pela miséria, a luta para sobreviver.  Marta tendo que se virar na vida e cuidar da família, menina ainda!

Superou!  Transformou-se em vitoriosa com a limonada que fez do limão que a vida lhe deu: a prostituição!

E de sua irmãzinha Laura foi mãe!  Cuidou e protegeu sua preciosa até o fim! E nisso também foi ganhadora!

Laura enfrentou o abandono, a solidão, a depressão, o casamento fracassado, um marido violento e cruel, a revolta interior e a pior de todas as tormentas – as drogas.

  Ela fez escolhas infelizes e quase fatais para sua vida!  E mesmo contra sua vontade, sobreviveu a ela mesma e lutou para encontra a paz e a verdadeira felicidade.  E nisso foi vencedora!

 Suas vidas foram sacudidas por situações fortes desde sempre!  Nos últimos tempos Laura pensou até em desistir, só que alguma força mais poderosa que os seus desejos covardes de destruição gritava mais alto dentro dela forçando-a a ficar de pé e recomeçar.

 Esse era o verbo da vida de Laura: recomeçar!

  Filha de nordestinos e caçula de três irmãos. A dureza da mãe e a ausência do pai fizeram com que seus dois irmãos homens fossem embora muito cedo e jogaram na prostituição sua irmã mais velha que fez carreira como puta e se virava nas noites de Copacabana. Muito bonita foi seduzida pelo tal Ernesto, bêbado, vagabundo e cafetão, filho do primo de seu pai.  Foi esse primo que o recebeu e arrumou lugar para a família no Rio de Janeiro. Foi essa irmã quem criou Laura e a protegeu.  Foi sua verdadeira mãe.

  Laura contava com cinco anos quando a mãe biológica Dona Ana, abandonou o barraco onde viviam na favela Praia do Pinto.  Nunca mais se soube dela.  Nem paradeiro!  Nem notícias!  Nada!

 Sumiu no mundo!

- Odeio esse Rio de Janeiro, odeio essa favela suja!   

  Essas foram as suas últimas palavras e ficaram guardadas para sempre na memória de Marta.

Enquanto isso o pai dedicava-se cada dia mais, a cachaça e aos poucos ia se abandonando assim como tudo a sua volta.  Morreu um ano depois, envenenado.

Logo depois de sua morte, em onze de maio de 1969, tocaram fogo na favela.

  Marta e Laura viram todo o seu mundo queimar!

  Era uma favela frágil, formada por barracos de madeira e telhados de folhas de zinco construída em um terreno que pertencia a Igreja Católica. Uma invasão bem no meio de uma das áreas mais nobres da zona sul da cidade do Rio de Janeiro: o bairro do Leblon.

Na época havia uma negociação para a remoção dos favelados e bem no meio desse processo pegou fogo misteriosamente. Não sobrou nada da favela!  E foi a chuva que apagou o fogaréu, pois os bombeiros mesmo estando a poucos metros dali, quando chegaram era tudo cinzas.

 Nove mil desabrigados, trinta e dois feridos e uma criança morta no incêndio.

Laura ainda tinha pesadelos com aquela noite. Lembrava do barulho das explosões dos botijões de gás, do fogo ardendo, da gritaria, do choro das crianças.  Lembra da tristeza.

Lembra do desespero. Lembra dos camburões da polícia recolhendo as pessoas que correndo do fogo iam dar na pista em volta da Lagoa Rodrigo de Freitas. A ordem era de remoção daquela favela que incomodava muito a sociedade zona sul.   Era época da ditadura militar e de uma política de extermínio de pessoas vulneráveis: pobres, pretos, nordestinos e favelados.  Esses miseráveis nunca mais apareceram.  Por fim lembra até hoje do temporal que caiu. Do barulho da chuva apagando o fogo e da água misturada as cinzas que iam se juntando as lágrimas dos moradores desgraçados.

Tinha muito carinho por aquele lugar. Nascera ali. Todos os amigos e referências estavam naquela favela. Agora eram cinzas!

  Revivia nos sonhos que tinha as correrias com as outras crianças pelos becos, ruelas de barro e lama, Por entre os barracos e as biroscas.  Tudo tinha gosto de liberdade e alegria. Muita inocência! Era feliz naqueles dias. Felicidade de criança!

  Seus pais vieram do Ceará fugidos da seca. Foi a favela Praia do Pinto que os acolheu. Sua mãe tinha apenas vinte anos e trazia Laura no bucho e pela mão dois filhos menores: Joílson com nove anos e Carlinhos com oito.  Desde a chegada odiou tudo! Apegada as raízes não queria ter saído de sua terra natal.  Chorou a viagem inteira! Odiava a favela, a cidade, as pessoas! Odiava a cidade grande!   Um ódio que a fez enlouquecer e tempos depois sumir no mundo.  Casara-se com quatorze anos.  O pai de Laura, seu José Carlos, homem bem mais velho, a tomou como esposa de uma família de retirantes a quem dera guarida. Tinha uma casa, alguns jumentos e uma pequena lavoura em ‘Ité’, cidadezinha no sertão do Ceará, herança do pai. Era um bom homem. A tal família foi-se embora aliviada por deixar a menina amparada.

Seu Zé Carlos criava uma filha do primeiro casamento: Marta.  A mãe morrera no parto. Criou a menina sozinho e quando se casou com a mãe de Laura, Marta já tinha sete anos.  Vieram para o Rio de Janeiro três anos depois. Marta chegou ao Rio com dez anos. Eram boas amigas.  Traziam na bagagem sonhos e esperança de uma vida melhor.  A seca destruiu tudo o que tinham. Mas a mãe de Laura não acreditava em dias melhores. Era só amargura D’Ana!

 Foi essa favela que os acolheu, através de um primo de seu Zé Carlos, que era filho de uma tia que morava no centro de Fortaleza.  Dona Ermelinda, irmã mais velha de sua falecida mãe.   Ela o ajudou nessa empreitada. Escreveu para o filho que de pronto providenciou tudo para recebê-los na cidade maravilhosa.   Então ele veio e já com serviço certo.  Foi ser zelador no “Parque Davis”, um conglomerado de laboratórios farmacêuticos que existia, na época, a pouca distância da favela onde comprou um barraco com o dinheirinho que apurou vendendo o que a seca não destruiu:  a casa e o pequeno pedaço de terra.

  A esposa D’Ana foi ser faxineira.  Mesmo prestes a dar à luz foi trabalhar e Marta cuidava dos menores e do barraco.

Laura nasceu naquele mesmo ano. Dia 27 de dezembro de 1964.  E cresceu assim!  Na pobreza extrema daquele lugar e sob os cuidados da irmã, pois a mãe vivia deprimida e era Marta que levava o bebê para ser amamentado. Dona Ana não fazia questão de cuidar da pequena que recebeu o nome de Laura. O pai escolheu quando foi registrar.   

Marta foi uma criança feliz apesar dos pesares! Cuidava de tudo e todos!   Sentia-se grata pela comida na mesa. Via a fome que muitos passavam ali. E, bem ou mal, tinha uma família e o carinho dos irmãos.  Era feliz na inocência de menina. Mas sabia que aquela felicidade era frágil. Sentia que coisas ruins estavam a cada dia, mais fortes entre os seus.  Via a fragilidade da felicidade e daquela favela.  Tudo muito afetado pela miséria e todas as mazelas que existem nela.

  Conforme o tempo passava e Laura crescia o pai ia ficando cada vez mais ausente, a mãe cada vez mais amarga e a cachaça tomou o primeiro lugar na família e na vida de seu Zé Carlos.

  Era normal a mãe sair de madrugada a sua procura e encontrá-lo caído em algum beco ou porta de birosca. Por ali muitos viviam assim. Era comum.

  O primo, sempre acompanhava seu Zé nas bebedeiras, e não tinha um dia que eles não bebessem. Esse primo tinha um filho de uns vinte e tantos anos bem rodados e se juntava a eles todos os dias para beber e jogar. Mas antes, fazia uma visita ao barraco da família. Flertava com Marta e tinha longas conversas com Dona Ana em seu quarto de dormir.  Isso depois de distribuir balas para os meninos na condição que fossem brincar lá fora.  O tal Ernesto era uma raposa!  Ele chegava as cinco da tarde.  Bem na hora que muitos saiam do trabalho nas fábricas. Morador de Copacabana e sempre com dinheiro para gastar na cachaça e no bilhar era tratado como celebridade, e sempre se juntava ao seu pai e seu Zé Carlos.   Passavam as noites assim!  Jogando e bebendo!

  O problema é que lá pelas tantas, o primo e seu filho iam embora, mas o pai de Laura e Marta continuava a noitada bebendo até cair!  E essa conta, geralmente, era sempre dele, e como era morador e trabalhador de confiança ficava tudo no fiado. Quando recebia o salário mais da metade do dinheiro era para pagar as biroscas e a conta da cachaça que nunca fechava. Estava sempre devendo Seu Zé!   Muitas vezes ia trabalhar completamente bêbado e nisso dava sorte pois seu encarregado também era seu parceiro de copo e não fazia questão de sobriedade dos trabalhadores que tiravam o lixo químico dos pátios internos do complexo de laboratórios. O cheiro era fortíssimo, de arder o nariz. O calor e a fumaça amarela que saía dos bueiros daqueles pátios eram insuportáveis.  Só mesmo com muita cachaça no corpo para aguentar. Todos sabiam disso.  Só os que recolhiam os detritos e transitavam naquela área limpando tudo sem proteção alguma é que parecia que não sabiam de nada!

  Se nas biroscas e no trabalho seu Zé vivia bem com todos.  Já em casa e com a família a convivência era das piores. Os filhos e a esposa só o viam bêbado. Quando não estava ruim de cachaça, estava ruim de ressaca, dormindo feito morto.  Eram assim os dias de domingo em que ele não levantava da cama nem para comer. Muito abatido que ficava em emendar trabalho e cachaça a semana toda. A mulher reclamava, ele batia nela! As crianças choravam, ele batia nas crianças!

As brigas foram ficando cada vez mais violentas e frequentes.

Péssima companheira a cachaça!

Destruidora de famílias!

Um dia, em meio a uma dessas brigas, o irmão mais velho defendeu a mãe socando a cara do pai e foi-se embora. Desapareceu. Nunca mais deu notícias.

Logo depois foi a vez do mais novo, o Carlinhos.  Ele se embrenhou em uma favela nas proximidades e ficou por lá.  Aparecia vez por outra, até morrer um ano depois, em um confronto com a polícia. Nessa época, Marta tinha doze anos, já fazia a vida e o enterrou. Madura e forte era Marta.  Cuidava de tudo. Colocava Laura na cama assim que escurecia, saía.  Só voltava pela manhã. 

  Depois disso a mãe passava as noites chorando, de joelhos, ao pé da cama. Os meninos eram seu xodó! Não saía mais de casa, nem as faxinas fazia mais. Só saia aos domingos para ir à missa.   Quando voltava começava tudo novamente: de joelhos, terço na mão, olhar distante e aquelas rezas intermináveis.  Novenas e ladainhas que só a faziam chorar.   Por conta disso Laura cresceu odiando rezas.

De um dia para o outro a mãe ficou ausente e o tempo todo com aquele olhar distante. Falava com Dona Ana e ela não respondia mais. Não saia mais em busca do marido bêbado nem ia mais as missas. Passava os dias sentada na beirada da cama olhando pela janela do barraco um pedacinho de céu que ainda resistia pois conforme a favela ia crescendo os espaços vazios iam sendo ocupados.  Laura não entendia o que acontecia com sua mãe, ninguém explicava e era muito novinha. Era como se a mulher não existisse mais. De tanto se perguntar por que daquilo, descobriu que dentro do seu coração a mãe não era aquela figura triste de mulher chorona e rezadeira. A mãe que tinha em seu coração era a irmã mais velha Marta! Aquela mulher estátua nunca foi sua mãe!  Tinha medo dela!  Nunca recebera um carinho, um afago, um consolo!  

  Sua Mainha era mesmo Marta. Era ela que aquecia seu coração de menina. Que dava carinho e dava amor! Muito novinha Laura para tais lembranças. Tinha acabado de fazer cinco anos.  Por conta dessa dureza de afeto amadurecia e entendia as coisas a sua volta na mais tenra idade.

Então, em uma manhã de domingo Dona Ana se despediu da filha.  Pediu perdão enquanto beijava sua testa e foi embora. A menina, tonta de sono, ainda pensou que a mãe ia a missa e voltou a dormir. Nunca mais se soube dela.

 Quando tomou consciência do caso, surpreendeu-se com o seu sentimento que era de alívio.  Nunca mais as choradeiras, nem rezas, nem brigas.  Isso tudo a mãe levou com ela naquela manhã.

-Amém! – Dizia para si mesma toda vez que pensava nisso. Sem rezas e sem choradeiras.  Tinha muito medo das ladainhas!

Meses depois foi o pai. Ele abateu muito depois que a esposa foi embora!

  Agora passava na venda, pegava duas ou três garrafas de pinga, ia para casa, e bebia até o dia clarear. Falava sozinho e nos seus devaneios conversava com a mulher e ralhava com as crianças como se estivesse vendo-as correr em volta do barraco. Não dormia e quando o dia clareava saia e ia trabalhar. Trabalhava nos fundos da fábrica, em meio aos latões de detritos e refugos da produção de produtos químicos e remédios de todo tipo. Era um lugar que fedia e tinha aqueles bueiros no chão por onde saía uma fumaça amarela e fedorenta o tempo todo. As irmãs já tinham ido até lá para saber dele. Depois que Dona Ana se foi tinha aqueles dias que ele nem aparecia em casa. Passava até três dias sem aparecer em casa. Marta pegava Laura pela mão e ia à procura do pai com medo de que ele morresse pela rua e fosse enterrado como indigente. Descobriu que ele ficava na jogatina com os funcionários da noite e acabavam todos muito bêbados e seu Zé Carlos dormia por lá mesmo. Marta fez isso duas vezes e como foi muito assediada pelos guardas de segurança se sentiu ameaçada e não voltou mais. Eles sabiam que elas eram filhas do Zé Cachaça. Era assim que o pai era conhecido por ali e das duas vezes faltaram com o devido respeito, falando coisas obscenas, e oferecendo comida e dinheiro. Chamando-as faveladinhas e usando esse termo como insulto. Laura era muito pequena, mas lembra do medo que sentiu. Os homens riam alto e xingavam e tentaram agarrá-las. Marta botou Laura no colo e correu como um raio. Ela era boa de corrida.  Nunca mais voltaram naquele lugar fedido para procurá-lo. E teve vezes de passar semanas sem aparecer! E quando aparecia podia-se notar sua pele cinza, sua magreza, uma tosse seca e violenta que lhe roubava o ar. E quando comia sempre vomitava tudo. E aquele cheiro de remédio que parecia entranhado no corpo franzino de Seu Zé Carlos só evidenciava a quanto ele estava doente!

  Mas com tudo isso Laura lembra que em dias de feira ele sempre aparecia. Chegava perto da hora do almoço. Vinha sóbrio e trazia banana da terra, arroz, feijão de corda e peixe e pedia a Marta que fizesse o almoço. Nesses dias tomava banho, colocava uma roupa limpa, sentava-se na soleira da porta e ficava observando as crianças que brincavam no beco.  Laura chegava devagarinho e se aninhava em seu colo e ele a recebia com todo o carinho. E os dois ficavam por ali, sentindo o cheiro gostoso da comida sendo preparada e ouvindo o riso das crianças que brincavam.  Depois comiam juntos e seu Zé contava casos engraçados dos amigos, que bêbados, aprontavam no trabalho. E eles riam e pareciam uma família de novo.  Isso era amor!

Mas as meninas sabiam que não podiam confiar no pai e se sentiam gratas por esses momentos de alegria. Também reconheciam que ele não deixava faltar comida e gás e no dia do pagamento sempre mandava uma boa parte do salário para mantê-las. E esse dinheiro ajudava muito pois era Marta que sustentava a casa com o que ganhava nas noites e nas calçadas de Copacabana.  Elas o viam como o doente que era.  Sabiam que não podiam contar com ele por causa da cachaça.  Seus instintos aguçados pelas dificuldades da vida de pobres faveladas avisavam que a qualquer momento aquele homem poderia nunca mais voltar! Sentiam o quanto ele estava doente!

  Então, quase um ano depois do desaparecimento de Dona Ana, seu Zé voltou para casa depois de muitos dias sumido. Não estava bêbado. Entregou um envelope pardo para Marta que fazia a janta e se arrumava para sair. Seu Zé Carlos parecia bem mais abatido e cansado.  Não quis jantar.  Não disse uma palavra, tomou banho e deitou-se.   Marta nem saiu aquela noite. Parecia que sabia que algo muito ruim ia acontecer e imaginou que se ficasse tudo ia ficar bem. Colocou o envelope sobre a mesa da cozinha, banhou e deu comida a Laurinha, jantou, tomou seu banho, fechou o barraco, apagou o único bocal de luz e dormiu agarradinha com Laura. Dormiram num sono só!

O dia mal tinha clareado, ela se levantou, botou a água no fogo para fazer o café. Imaginou que o pai se levantaria para o trabalho e gostaria de tomar o cafezinho de sempre. Mas o silêncio do quarto foi angustiando conforme as horas se passavam. Ela ouvia o rádio, fez e bebeu o café e não aguentando mais o suspense chegou até a porta do quarto, afastou a cortina que servia como porta e chamou pelo pai que não respondeu. O ambiente estava escuro porque a janela ainda estava fechada. Marta foi se aproximando e tocou na mão de seu Zé que pendia para fora da cama.

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