Glacial- Mundo árabe
Glacial- Mundo árabe
Por: Sandra Rummer
Aysha Bar Jair

Aysha Bar Jair

Em dezembro de 1990, Anne, minha mãe, viajou para o Catar com a ideia de viver e trabalhar durante algum tempo. Ela trabalhava no Hospital Rei Mustafá na área de pesquisas. Mas durante esse período que esteve no país, ela acabou conhecendo um homem, meu pai, Muhamed Bar Jair. Ele trabalhava para a monarquia saudita no ramo petrolífero. Com a idade de vinte cinco anos, ela se apaixonou perdidamente pelo homem moreno de olhos cor de mel.

Fortemente atraídos um pelo outro, em pouco tempo, se casaram e logo foram abençoados com meu nascimento. Os primeiros anos de casamento, lhe trouxeram a felicidade que ela tanto desejava. Além de meu pai, ser um homem amoroso e dedicado a família, a família real cedeu um palácio para que eles morassem.

Como engenheiro petrolífero, sempre fora dedicado ao seu trabalho. Praticamente viveu em função dele. A família real sempre gostou muito dele. Quando eles davam festas, éramos sempre convidados para participar. Eu não me lembro disso, pois eu era muito pequena na época.

Meu pai sempre teve muita facilidade com o inglês, e com o casamento, o inglês dele melhorou muito. O sheik estava com problemas de negociação de máquinas para a captação do petróleo que ele comprava dos EUA, meu pai então foi enviado para cá. Papai se mostrou muito competente e obteve sucesso na viagem. Isso foi como se ele assinasse o passaporte de permanência nos EUA. O que era para ser uma viagem de poucos dias, se tornou algo definitivo. Eu tinha cinco anos quando isso aconteceu.

Ouço uma batida na porta interrompendo meus pensamentos.

—Aysha, está pronta? —É meu pai novamente me chamando.

—Já vou. —Digo, mas não me movo do meu lugar.

Desde que me conheço por gente meu pai me fala desse dia, uma data especial para eles, mas para mim o medo do desconhecido.

Logo que viemos para cá, fui preparada para esse dia, o dia que eu conheceria o homem ao qual fui prometida, o príncipe Zair Salim El Mustafá, o filho mais velho da família real.

Para os padrões nortes americanos um absurdo tal coisa, mas isso é muito comum no rico país chamado Catar.

Isso é muito comum lá fora. Mas aqui?

Não sei por que meu pai concordou em manter esse acordo mesmo sabendo que irei morar tão longe deles.

Bem, na verdade sei. Meu pai é muito amado pela família real, e acho que foi uma maneira de recompensa-los por todos os benefícios que ele teve desde que eles investiram nele. Meu pai foi apadrinhado por essa família. Estudou com os recursos da família real e tão logo conquistou seu diploma, começou a trabalhar para eles.

Minha mãe tem mais sangue árabe do que Norte-Americano. Então a promessa que meu pai fez a eles, não lhe causou impacto. Ao contrário, ela ficou deslumbrada por eu me casar com o príncipe de Doha, um homem de sangue azul.

Já faz quinze minutos que estou ouvindo meu pai chamar meu nome e não consigo me mover. Passo a mão nos olhos e aliso meus cabelos castanho com reflexos dourados, nervosamente. Eu sei que estou encrencada. Não há nada que eu possa fazer a não ser ir até a sala.

Minha irmãzinha entra saltitante.

—Aysha! Aysha! O que há com você? O príncipe está aí. Baba está te chamando! Vamos!

Sinto novamente aquele aperto no coração e uno minhas mãos, aperto uma na outra na tentativa de fazê-las parar de tremer.

Minha irmã é muito nova para entender o que a presença dele significa realmente. Ela vê tudo como num conto de fadas. Como eu, quando era pequena. Quando meu pai me falava sobre esse dia o impacto não era tão grande.

Como minha mãe pode concordar com meu pai quando aceitou que eu fosse prometida em casamento? Pergunto-me, mal-humorada.

—Vamos Aysha!

—Diga que já vou! —Eu digo, quase à beira das lágrimas.

Layla cala-se imediatamente quando vê as lágrimas descerem dos meus olhos.

— Você está chorando?

Tadinha...Eu não quero assustá-la.

—Não, caiu um cisco. Vai lá e diz para o papai que eu estou indo.

— Papai está nervoso com sua demora.

—Eu já vou. Só preciso de um minuto para tirar esse cisco dos olhos, entende?

— Zair é lindo...—Ela diz sonhadora.

Eu respiro fundo. Meu baba(pai) entra.

—Aysha, habibi(querida). Estamos te esperando. Seu noivo está aí.

Meu pai se senta na minha cama ao meu lado.

—Baba... —Eu começo.

Layla me interrompe.

—Baba, quando eu crescer vou me casar com um príncipe também?

—Sim. Ficou combinado que se sua irmã for uma boa esposa, você será prometida também. —Papai fala com ela e me encara sério.

—Subahanallah. (Deus seja louvado!) —Ela diz com olhos sonhadores.

—Agora seja uma mocinha e se comporte lá. Assim eles verão que você será uma boa esposa.

—Aywa.(sim) —Ela diz obediente, com uma leve mesura.

Quando ela sai, eu aperto meus lábios e começo a chorar.

—Pai, eu não quero esse casamento.

Meu pai fica pálido. Respira fundo, é nítido seu nervosismo.

—Habibi, sempre conversamos sobre isso. Seu baba explicou a chegada desse dia. Não era para você estar assim. Ele é uma ótima pessoa.

—Como sabe? Eu era um bebê quando o senhor me prometeu?

—Ebna(filha). Pare com isso!

— Baba, eu ainda não consigo acreditar no que está acontecendo. Quando o senhor falava, achei que ele se esqueceria da promessa, que ele não viesse.

—É, mas o destino planejou que ficassem juntos e a palavra de um árabe é como por escrito. Nem eu e nem ele, podemos voltar atrás. Maktub, estava escrito!

—Destino? O senhor ditou meu destino!

— Não é bem assim, mas falaremos disso mais tarde.

Eu pego as mãos do meu pai.

—Pai, o senhor poderia pedir um tempo. Dizer que não estou preparada para o casamento. Allah! Ahsaor bel taab! (Deus! Estou me sentindo doente)

Meu pai vociferou:

—Pare com isso! Para sala, já! Trata-se de uma questão de honra. Não me envergonhe, Aysha. O sheik desejar você como esposa para o seu filho é a máxima honraria que um rei pode oferecer. —Ele se levanta. — E olhe ao seu redor. Tudo que você tem. Essa mansão linda e confortável, suas joias, seus vestidos. Tudo isso é fruto dessa família que me deu a mão e que você está menosprezando agora. Se não fosse por eles, eu estaria ainda perambulando na Medina passando fome ou fazendo sei lá o quê para sobreviver! — Eu ouvi o relato como se aquilo não fosse comigo, enquanto o meu pai dramatizava, entrando lentamente ao clímax, mas quando meu pai termina suas falas com lágrimas nos olhos, eu fico tocada, embora eu tenha ouvido essa história diversas vezes.

Sim, meu pai está movido por um real sentimento de pura gratidão e estima pelo Sheik Ali Salim El Mustafá. Envergonhada por meu comportamento, eu tento me recompor.

Afasto meus cabelos do rosto e os coloco atrás da orelha. Respiro fundo e enxugo meus olhos.

— Assef. (Perdoe-me) —Digo, abaixando minha cabeça num tom serviçal, mas meu interior agitado em revolta.

—Agora lave esse rosto e encare sua realidade de frente, com cabeça erguida. Por Allah! Você não está indo para um matadouro. Você irá se casar com um príncipe do nosso povo.

—Aywa! (Tudo bem!) E se eu não for uma boa esposa? —Pergunto, ousadamente.

—Claro que será uma boa esposa. Você terá servas, será servida, não servirá. A única coisa que precisa fazer é procriar. —Eu fecho os punhos com as palavras dele. A minha tristeza deu lugar à resignação e a rebeldia. —Espero você na sala.

Assinto com um leve aceno de cabeça. Ele me olha por um tempo e sai do meu quarto.

A verdade é que meus pais apreciam demais as coisas boas da vida, então para eles, eu me casando com um homem arquimilionário, amando ou não meu marido, estou indo para o paraíso.

Eu me levanto. Vou até o banheiro. Olho meu vestido negro de enterro, pronta para o sacrifício. Caminho em direção a sala de cabeça baixa, pensativa.

Papai nunca me falou direito sobre suas atribuições físicas, se era alto, baixo, magro, gordo. O homem árabe não valoriza a beleza masculina, só a mulher é valorizada nesse aspecto. Ele precisa só ser bem-sucedido no trabalho ou em seus negócios.

Eu sei que ele tem 28 anos, portanto dez anos mais velho que eu e que moraremos em Doha, um estado riquíssimo de Catar.

Sei também que Zair comanda o império da família. São riquíssimos, graças ao fraturamento hidráulico, que é um método que possibilita a extração de combustíveis líquidos e gasosos do subsolo.

Allah! Se eu estivesse sacrificando um futuro casamento por amor, seria diferente! Mas não estou. Tenho medo de não gostar dele.

E ele? Como encara esse casamento?

Um prazer sexual fixo e seguro?

Apenas uma progenitora?

Allah! Farei de tudo para ele se decepcionar comigo. Preciso livrar minha irmã dessa situação. O futuro dela depende de mim!

Amanhã mesmo comprarei anticoncepcional, se eles estão pensando que eu vou engravidar fácil, estão muito enganados. E se eu engravidar, ficarei na mão dele. Se eu for fria, uma múmia, ele irá reclamar de mim para a família e minha irmã terá a chance de amar e ser amada.

Entro na enorme sala, arejada, cheia de antiguidades, quadros, revestido de tapetes persas. Sim, o luxo que me cerca e explica o porquê estou sendo vendida.

Mamãe se levanta do sofá sorrindo quando me vê. Ela sempre deu claros sinais que é a favor dessa união.

—Aysha.

— Não acredito que colocou esse vestido! —Ela lamenta. — Seu noivo não é tradicionalista. Não precisava se vestir desse jeito. Zair não pode vê-la desse jeito...

— E por que não? — Eu retruco, seca. — Vou me casar com ele independente de ser bonita ou não.

—Por que está dificultando as coisas? — Mamãe pergunta, alisando nervosamente seu elegante vestido azul marinho e branco. Ela se parece com Jacqueline Onassis. Sempre linda, impecável.

— Onde está meu noivo, afinal?

— Na biblioteca, com seu pai. Ele está discutindo os preparativos para o seu casamento.

—Não sei como ele pôde aceitar uma coisa dessas? Se casar sem ao menos me conhecer.

—Ele segue o costume de seu país. Isso é natural.

Eu estremeço. Eu nem conheço direito Zair e os detalhes do nosso casamento já estão sendo acertados.

— Um costume horrível! — Eu protesto. —E se eu não gostar dele?

Ela sorri.

—É mais fácil ele não gostar de você do que ao contrário. E você verá que eu tenho razão.

Eu estremeço com as palavras dela.

—E se acontecer? E se ele não gostar de mim?

—Se ele não... gostar de você? —Ela se atrapalha. —Você acha que se divorciar é fácil assim? Que ele não te escute dizer uma coisa dessas. Ele é um homem íntegro. Se ele te assumir, ele apostará nessa relação. A estatística de divórcios em casamentos arranjados é extremamente baixa.

—Claro, as mulheres são submissas ao ponto de não expor suas opiniões.

—O que está tentando dizer? Que irá remar contra nesse casamento?

Eu meneio a cabeça.

—Não. Claro que não.

Ela segura as minhas mãos.

— Ebna(filha). Você está nervosa, isso é perfeitamente natural.

—Sim, ainda bem que reconhece. Uma situação assim, quem não ficaria?

—Saiba que está cheio de garotas que gostaria de estar no seu lugar. Está cheio de histórias de garotas que procuram árabes na internet. E sabe por quê? Porque eles valorizam a família, o amor e são extremamente românticos. Veja seu pai, por exemplo.

—O amor?

—Filha, isso surgirá com o tempo. Amor é diferente de paixão. Ele é um sentimento que cresce aos poucos no coração. E quando você tiver um bebê, verá que ser mãe é algo divino.

A perspectiva do futuro longe de todos, num país que eu só ouvia falar fez meu sangue esvair de minhas faces. A ideia de ser usada para gerar um sucessor ao reino é odiosa.

Eu a encaro por um momento.

—Tão divino que está louca para se livrar de mim.

Minha mãe me olha sem ação, mas antes que ela fale algo a porta da biblioteca se abre e um homem usando um Kandoora branco sai por ela. Allah! Imediatamente eu me sinto abalada por sua figura majestosa.

Ou nocauteada?

Ele é lindo. Tão lindo, que eu me começo a me sentir horrorosa com esse vestido que eu escolhi e por isso, insegura.

Droga!

Sinto um arrepio na espinha quando seus olhos negros passam por minha figura parada ali. Ele tem os cabelos bem negros, penteados para trás, sem um fio fora do lugar. Maravilhosamente charmoso.

Sim, ele é um dos homens mais bonitos que eu já vi.

Zair caminha com a graça de uma pantera negra na minha direção. Ele parece ser muito seguro de si. Eu me senti quente por dentro.

Impressionada.

A cada passo que ele dá, ele parece mais alto.

Meu pai me disse que ele domina bem o inglês, que eu praticaria meu árabe apenas quando morasse em Catar.

—Salaam Aleikum. (A paz) —Ele diz cordato, seus olhos frios como gelo e penetrantes como um raio x.

—As-Salamu Alaikum (A paz) —Respondo ao seu cumprimento.

Meu pai surge ao lado dele.

—Não é linda minha Aysha?

Ele passa os olhos pelo meu rosto como se tivesse comprando algo.

—Muito.

Meu pai, tosse, constrangido.

—Bem, eu e minha esposa deixaremos vocês um pouco à sós.

Eu vejo meu pai se afastar arrastando minha mãe em direção à cozinha.

Os olhos penetrantes de Zair passam ligeiramente por mim e a impressão que tenho é que minhas pernas estão presas a duas bolas de chumbo.

—Então, você é Aysha Bar Jair...

—Sim.

— Vamos nos sentar? — Eu o convido, ousadamente, mostrando o sofá de três lugares.

Zair não diz nada, age. Caminha até lá e se senta majestoso e espera eu me sentar. Arrogância típica do homem árabe. Movo meus cabelos para trás antes de, relutantemente, me sentar ao seu lado. Com a proximidade sinto seu perfume caro, maravilhoso. Com certeza exclusivo, de algum perfumista do oriente.

Uma parte traiçoeira de mim, está encantada com ele. Zair é bonito demais. Assim, de perto, ele é de tirar o fôlego. Seus traços são aristocráticos. As sobrancelhas perfeitas. Tão perfeitas que começo a me perguntar se ele retira os pelinhos indesejados delas. A barba bem aparada sob a pele dourada.

Um charme.

Os olhos negros são sombreados por longos cílios. Mas são tão frios para mim que o sentimento que tenho que estamos prestes a fazer uma proposta comercial e não um pedido de casamento.

É como se, quando tudo estivesse acertado, apertaríamos as mãos um do outro, ao invés de trocarmos beijos.

Não haverá cenários românticos, jantar à luz de velas, nem amor. Eu nem mesmo o conheço direito. Isso é contra tudo que um dia sonhei para mim em termos de romance. Muito frustrante.

—Seu pai conversou com você? —Ele diz com um sotaque carregado. Até isso era bonito nele. —Ele explicou que viverá comigo em Doha?

—Sim.

Ele assente.

—Foi explicado a você a vida que terá como minha esposa?

—Sim.

Ele então abre um sorriso, e novamente me sinto nocauteada. Isso me deixa com uma certa raiva. Tenho medo de ser a cordeirinha dele.

—Isso tudo é timidez?

—Não acha que sou muito nova para a posição de sua esposa?

Ele respira fundo.

—A sua idade permite que seja facilmente moldada do que uma mulher mais velha cheia de ideias e vícios. Para ocupar a posição como a minha esposa, terá que ser extremamente obediente.

Allah! Fiquei a olhar para ele com o queixo caído.

—Você quer uma múmia.

Zair não entende e fica olhando para mim.

—Múmia?

Mamãe entra na sala. Com certeza estava ouvindo atrás da porta.

—O café está servido. Majestade, sente-se aqui, por favor. —Minha mãe afasta a cadeira da cabeceira para ele. —Mohameeeeeed. —Ela chama meu pai com voz rouca, esganiçada. Ela parece nervosa. — Aysha, você pode me ajudar aqui na cozinha?

Hum, isso não é bom...

—Claro. —Eu digo e me levanto do sofá.

O príncipe se levanta também e caminhando com a graça de um felino se senta aonde minha mãe indicou. Meu pai surge na sala de jantar e ocupa seu lugar ao lado do príncipe.

Temerosa e relutante, eu sigo minha mãe.

Na cozinha ela se vira para mim com sangue nos olhos.

—Múmia? Você é louca de perguntar um negócio desse para o príncipe? Ainda bem que ele não entendeu.

—Bem, se não entendeu, com certeza irá perguntar para o meu pai ou procurar no dicionário.

—Aysha. O que há com você? —Mamãe chora. —Allah! Eu te criei tão bem. Conversei tanto com você. Seu pai também. Sempre te preparamos para esse dia.

Eu baixo o rosto por um momento e o ergo novamente.

—Noun(mãe). Eu não gostei do jeito dele. Ele é arrogante. Meia dúzia de palavras e ele já disse que eu...

—Eu ouvi! —Ela me interrompe e pega a minha mão. — Filha. Ele é um príncipe. Está acostumado a ser servido, a ter tudo que deseja. É natural que ele queira uma esposa obediente. Ele quer uma mulher dócil ao lado dele.

—Como uma cadeli...

—Não! Chega! Vá até a sala e leve esses biscoitos que fiz especialmente para ele. Fiquei sabendo que são os seus preferidos.

—Você colocou canela. A lista que li de suas preferências diz que ele odeia.

—Allah! É verdade! Ajude-me a tirar.

Eu sorri ao ver como ele ficou abalada. Eu bati os biscoitos e tiramos o máximo que pudemos.

Ela prova.

—Estão arruinados!

—Estão nada! —Eu digo e pego a bandeja de Mankouche .

Minha mãe diz um sonoro nãoooooooo, mas eu não a levo mesmo assim.

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