Fim do mundo, coração aberto
Fim do mundo, coração aberto
Por: Lady Dani
O fim do mundo chega

O ônibus parou com um gemido metálico no meio do nada, o som estridente cortando o silêncio opressivo do sertão. A poeira subia em redemoinhos ao redor das rodas gastas, dançando no ar quente como fantasmas invisíveis, enquanto o motor cuspiu uma última baforada de fumaça negra antes de calar, deixando apenas o zumbido distante dos insetos. Mariana agarrou sua mala surrada, os dedos suados deslizando no cabo gasto de couro rachado, e desceu os degraus com o coração na garganta, cada passo ecoando como um tambor de guerra em sua mente. O sol do meio-dia era um peso cruel, um martelo de fogo que queimava sua pele exposta, forçando-a a semicerrar os olhos contra o brilho implacável. O horizonte se estendia em uma linha infinita de terra seca, rachada pelo tempo, e céu azul tão vasto que parecia engoli-la, sem nenhuma promessa de refúgio ou redenção. Não havia nada além do vento, um sussurro baixo e ameaçador que parecia carregado de segredos, como se o próprio deserto soubesse mais do que ela jamais entenderia.Ela olhou para o papel amassado em sua mão, as palavras quase ilegíveis agora, borradas pelo suor e pela ansiedade, mas gravadas em sua memória como um grito que não se calava: "Cozinheira procurada para fazenda isolada. Trabalho honesto, longe da civilização." Não era exatamente um plano, mas um desespero. Depois de meses fugindo de si mesma – das ruas barulhentas da cidade, dos rostos que a julgavam com olhos frios e línguas afiadas, das noites em que acordava sufocada por lembranças que não suportava nomear, fragmentos de dor que se recusavam a desaparecer –, aquele anúncio era seu último recurso. Não tinha experiência com cozinha, muito menos com vida rural. Na cidade, suas refeições eram rápidas, compradas em carrinhos de rua ou restos de fast-food, às vezes nem isso. Mas ali, naquele fim de mundo, ela viu uma chance – ou talvez uma armadilha. Não importava. Precisava de um lugar para se esconder, mesmo que fosse no meio de um deserto que parecia vivo apenas para julgá-la.Um jipe velho surgiu ao longe, cortando a poeira como uma faca, seu ronco rouco ecoando pelo vazio. Quando parou a poucos metros, um homem saltou. Era alto, de ombros largos, com uma barba por fazer que parecia mais negligência do que estilo, fios escuros e desalinhados que cobriam o maxilar como uma máscara de indiferença. Seus olhos eram escuros, quase negros, brilhavam com algo que Mariana não conseguiu identificar – hostilidade, talvez, ou um desdém tão profundo que parecia enraizado em sua alma. Vestia uma camisa xadrez desbotada, manchada de suor e terra, as mangas arregaçadas revelando antebraços musculosos marcados por veias proeminentes e cicatrizes antigas. Suas botas enlameadas rangiam ao tocar o chão, deixando pegadas profundas na terra seca, como se ele fosse parte indelével daquele lugar hostil.— Você é a cozinheira? — perguntou ele, a voz grave, rouca, cortante como uma lâmina afiada contra pedra. Não havia gentileza ali, apenas uma impaciência que fez Mariana recuar um passo, o coração batendo tão forte que ela temia que ele pudesse ouvi-lo.Ela engoliu em seco, tentando esconder o tremor que subia por suas pernas, uma vibração que parecia ecoar em cada osso de seu corpo.— Sou... Mariana. Vim por causa do anúncio — respondeu, a voz mais fraca do que pretendia, quase um sussurro perdido no vento.O homem a encarou por um longo momento, os olhos estreitando-se como se tentasse decidir se ela era uma ameaça, um estorvo ou simplesmente uma piada cruel do destino. Finalmente, bufou, um som curto e seco que parecia um aviso, um latido de cão guardião protegendo seu território.— Joaquim. Vamos. Não gosto de esperar.Ele arrancou a mala de suas mãos sem cerimônia, os dedos ásperos roçando os dela por um instante, um toque que a fez estremecer. Jogou a mala no banco traseiro do jipe como se fosse um saco de grãos, o movimento tão casual quanto brutal. Indicou o banco do passageiro com um gesto brusco, quase um comando, os olhos nunca deixando os dela, como se testasse sua coragem – ou sua fraqueza. Mariana obedeceu, sentindo o estômago revirar, uma mistura de medo e uma estranha fascinação pelo homem que parecia tão conectado àquele deserto quanto as árvores retorcidas que lutavam por sobrevivência ao longo da estrada.A viagem foi silenciosa, exceto pelo ronco rouco do motor e pelo chiado do vento contra o metal corroído do jipe. Joaquim dirigia com uma mão no volante, a outra apoiada no parapeito da janela, os dedos tamborilando impacientemente contra o vidro rachado. Seus olhos estavam fixos na estrada de terra batida, mas Mariana sentia o peso de sua presença, um silêncio que não era paz, mas uma ameaça contida. Ela observava os campos áridos, os arbustos esparsos que pareciam mortos, suas raízes expostas como ossos quebrados, o céu que se fechava sobre eles como uma armadilha, um teto invisível que prometia sufocá-la. Quanto mais se afastavam da estrada principal, mais isolada ela se sentia – como se estivesse sendo levada para um lugar de onde nunca mais voltaria, um buraco no mapa onde o tempo e a esperança tinham sido esquecidos.Quando finalmente chegaram à fazenda, o sol já começava a descer, tingindo tudo de um laranja sinistro, como se o céu sangrasse ao entardecer. Era um conjunto de construções rústicas: uma casa principal de madeira e pedra, as tábuas rachadas e envelhecidas pelo sol, um curral onde alguns cavalos esqueléticos pastavam, um celeiro que parecia prestes a desabar, suas sombras se estendendo como dedos esqueléticos sobre a terra. Havia também um pequeno campo recém-arado, sinais de que alguém tentava fazer a terra render, apesar de sua relutância. Tudo cheirava a terra, suor e abandono, um cheiro que se infiltrava nas narinas de Mariana como um lembrete de que ali não havia lugar para fraqueza. Não havia sinais de vida humana, apenas o eco distante de um corvo gritando no céu, seu grito agudo cortando o ar como uma advertência.— Aqui é o fim do mundo — disse Joaquim, estacionando o jipe com um solavanco que fez Mariana agarrar o assento. Sua voz era baixa, quase um murmúrio, mas carregada de algo que fez a pele de Mariana formigar, uma mistura de desafio e ameaça que a fez questionar se ele realmente a queria ali ou apenas a tolerava por falta de opções. — A fazenda tá caindo aos pedaços, mas tô tentando salvar ela. Plantando, criando cavalos. Se não aguentar, é melhor ir embora agora.Mariana ergueu o queixo, forçando-se a parecer mais confiante do que se sentia, mesmo com as mãos tremendo tanto que ela as escondeu nos bolsos da calça jeans rasgada.— Eu aguento — respondeu, mas suas palavras soaram frágeis até para si mesma, um eco perdido no vasto silêncio da fazenda.Ele a olhou de soslaio, os olhos semicerrados, e por um instante ela pensou ter visto um brilho de algo – dúvida, talvez, ou um desprezo tão profundo que ele nem se dava ao trabalho de escondê-lo. Sem dizer mais nada, ele saltou do jipe e indicou com um gesto seco que ela o seguisse. A casa era ainda mais intimidante por dentro: móveis velhos, cobertos por uma camada fina de poeira, paredes de madeira rachada que rangiam sob o peso do tempo, um silêncio opressivo que parecia pulsar nas sombras, como se o lugar guardasse segredos que nunca seriam revelados.Mostrou-lhe um quartinho nos fundos – um espaço pequeno, com uma cama de ferro rangente, uma cômoda quebrada cujas gavetas estavam emperradas, e uma janela que dava para o campo escuro, sem cortinas, apenas a escuridão lá fora, como um olho vazio a observá-la, julgando cada respiração. O cheiro era de mofo e madeira velha, e Mariana sentiu um arrepio subir por sua espinha.— Aqui você dorme. Cozinha fica ali. Começa amanhã. Se não souber fazer, aprende, ou não vai durar — disse ele, a voz cortante, antes de sair, deixando-a sozinha com o peso de suas palavras e o eco de seus passos pesados pelo corredor.Mariana largou a mala no chão, as mãos tremendo enquanto tentava processar onde estava. O ar era pesado, carregado de um cheiro úmido e antigo, como se a casa guardasse memórias que não pertenciam a ela. Sentou-se na cama, ouvindo os sons da noite – o vento uivando baixo, o rangido distante de uma porta solta no celeiro, o cricrilar dos insetos que parecia um coro sinistro. Algo naquele lugar a fazia sentir-se pequena, vulnerável, como se estivesse sendo julgada por forças que não compreendia, forças que talvez incluíssem o próprio Joaquim, cuja presença era tão imponente quanto ameaçadora.Na manhã seguinte, enfrentou a cozinha com o coração na boca. Nunca havia cozinhado de verdade, muito menos para seis pessoas, como Joaquim exigira na breve conversa que tiveram antes de ele desaparecer para cuidar do gado e dos cavalos. Na cidade, suas refeições eram um caos – pão velho, latas de conservas, ou nada. Mas ali não havia escolhas. Havia um fogão a lenha, cujas chamas ela mal sabia controlar, panelas pesadas que pareciam pesadelos de ferro, e uma despensa com poucos itens: feijão, carne seca, farinha, alguns legumes murchos que pareciam gritar por misericórdia. Ela não fazia ideia por onde começar, e o pânico crescia em seu peito como uma onda prestes a engoli-la.Tentou acender o fogão, mas as chamas escaparam, lambendo suas mãos e queimando os dedos com um calor que a fez soltar um grito abafado. Deixou cair uma panela no chão com um estrondo que ecoou pela casa silenciosa, o som reverberando como um trovão, fazendo-a congelar, esperando que Joaquim aparecesse para expulsá-la. Quando finalmente conseguiu ferver água, esqueceu de temperar o feijão, que ficou insosso e grudento, um bloco marrom que mais parecia lama do que comida. A carne seca, que deveria ser refogada lentamente, acabou queimada em uma das bordas, soltando um cheiro acre que fez seus olhos arderem e lágrimas escorrerem pelo rosto sem que ela pudesse controlá-las. Enquanto cortava um legume com mãos trêmulas, a faca escorregou, cortando superficialmente seu dedo. Ela mordeu o lábio para não gritar, enrolando o ferimento em um pano sujo que encontrou sobre a pia, o sangue tingindo o tecido em um vermelho que a fez lembrar de coisas que preferia esquecer.Enquanto lutava com a comida, os outros moradores da fazenda começaram a aparecer. Eram cinco ao todo: quatro homens rudes, de faces endurecidas pelo sol e mãos calejadas, e uma mulher que, à primeira vista, Mariana confundiu com mais um deles. Alta, de ombros largos, com cabelos curtos e desalinhados presos por um boné sujo, a mulher tinha uma postura que lembrava um homem, mas seus olhos eram gentis, quase maternos, quando cruzaram com os de Mariana. Seu nome, soube mais tarde, era Tereza. Os homens – João, Pedro, Lucas e Mateus – mal falaram com ela, limitando-se a grunhidos e olhares desconfiados, mas Tereza aproximou-se, oferecendo um aceno tímido.— Não se preocupe, menina. Todo mundo erra no começo. Aqui é duro, mas a gente se ajuda — disse Tereza, a voz rouca, mas reconfortante, enquanto ajudava Mariana a limpar a bagunça no chão.Quando Joaquim voltou ao meio-dia, sujo de terra e suor, o "almoço" estava uma bagunça. Ele parou na porta da cozinha, os olhos escuros fixos nela, e por um momento Mariana pensou que ele a mandaria embora ali mesmo, que aquele seria o fim de sua fuga patética. Mas ele apenas bufou, um som curto e seco que parecia conter toda a frustração do mundo.— Isso é o que você chama de comida? — disse ele finalmente, a voz baixa, mas carregada de sarcasmo e algo mais, algo que Mariana não conseguiu decifrar – raiva, talvez, ou uma decepção que ele não admitiria sentir. — Se foi a única candidata em meses, não é de se estranhar que a fazenda esteja falindo.Mariana baixou os olhos, as mãos tremendo tanto que ela as escondeu atrás das costas. Sabia que ele tinha razão. O anúncio no jornal ficara meses sem resposta, um grito perdido no vazio, até ela aparecer, um último suspiro de esperança para uma vaga que ninguém mais queria. E agora ali estava ela, atrapalhada, perdida, tentando desesperadamente provar que valia algo, mesmo sabendo que não tinha a menor ideia do que estava fazendo.Naquela tarde, enquanto os funcionários saíam para trabalhar nos campos e com os cavalos, Mariana ouviu falar de uma vizinha, a esposa de um caseiro de outra fazenda a poucas milhas dali. Seu nome era Dona Lúcia, uma mulher experiente que, segundo Tereza, sabia tudo sobre cozinhar com o que a terra oferecia. Tereza sugeriu que Mariana a visitasse no dia seguinte, dizendo que Dona Lúcia poderia ensinar alguns truques para sobreviver na cozinha da fazenda. A ideia trouxe um raio de esperança a Mariana, mesmo que a perspectiva de enfrentar mais um dia naquele lugar a enchesse de apreensão.Naquela noite, deitada na cama dura, Mariana ouviu passos pesados no corredor. Eram de Joaquim, indo e vindo, como se ele também estivesse inquieto, talvez planejando como se livrar dela ou como salvar a fazenda que parecia escapar de suas mãos. Ela fechou os olhos, tentando dormir, mas os sons da fazenda a mantinham alerta – o vento uivando baixo, o rangido da madeira, e, de vez em quando, um grito distante que podia ser de um animal... ou de outra coisa. Quando finalmente adormeceu, sonhou com sombras que se moviam nas paredes, com olhos que a observavam da escuridão, e com uma voz que sussurrava seu nome como uma ameaça. Acordou sobressaltada, o coração disparado, mas não gritou. Ficou em silêncio, ouvindo o silêncio da fazenda, e se perguntou se havia feito a escolha certa ao vir para o fim do mundo, ou se havia apenas trocado uma prisão por outra.Do outro lado da casa, Joaquim estava sentado à mesa da cozinha, uma garrafa de cachaça pela metade ao seu lado, o líquido âmbar brilhando à luz fraca de uma lâmpada pendurada no teto. Seus olhos estavam fixos em um ponto distante, as mãos, normalmente tão firmes, tremiam ligeiramente enquanto girava o copo entre os dedos. Algo na chegada daquela mulher o perturbava, mas ele não sabia dizer o que. Talvez fosse o medo de que ela trouxesse problemas. Ou talvez fosse o medo de que, de alguma forma, ela o fizesse lembrar de coisas que ele jurara esquecer, coisas que o faziam sentir o peso de uma culpa que nunca confessaria. A fazenda, seus cavalos, seus campos – tudo estava em jogo, e ele não podia se dar ao luxo de falhar. Não novamente.

Continue lendo este livro gratuitamente
Digitalize o código para baixar o App
capítulo anteriorpróximo capítulo

Capítulos relacionados

Último capítulo

Explore e leia boas novelas gratuitamente
Acesso gratuito a um vasto número de boas novelas no aplicativo BueNovela. Baixe os livros que você gosta e leia em qualquer lugar e a qualquer hora.
Leia livros gratuitamente no aplicativo
Digitalize o código para ler no App