Horas depois...AnnaA luz que entra pela fresta da cortina é delicada, dourada, quase tímida. Ela beija meu rosto como um afago, mas não me acorda de verdade.O que me desperta... é o calor.O calor de um corpo que ainda está aqui.Abro os olhos devagar, como quem teme que tudo tenha sido só um sonho. Como quem tem medo de que a realidade, sempre tão dura, venha me arrancar o que o coração mal começou a aceitar. Meus dedos deslizam pelo lençol e encontram pele. A dele. Quente. Real. Presente.Raul está deitado de lado, virado para mim. Os olhos fechados, o rosto sereno, os cílios espessos descansando sobre a pele. A respiração dele é lenta, profunda. O peito sobe e desce com um ritmo que embala, que acalma, como se o sono ainda o envolvesse numa paz rara.E pela primeira vez, desde que meu pai se foi... há paz no meu quarto.Uma paz que não grita. Que não pede licença. Que só... se instala.Como se, por alguns minutos, o mundo lá fora tivesse perdido a urgência. Como se a ausência qu
RaulA porta se fecha atrás de mim com um clique seco. O som ressoa dentro do peito como um lembrete incômodo: eu cruzei uma linha. Respiro fundo e deslizo a mão pelos cabelos, tentando organizar os pensamentos enquanto caminho lentamente até o portão. O céu está acinzentado. A rua, silenciosa. Mas dentro de mim, tudo é turvo e ruidoso.Antes que eu possa sair, um carro escuro se aproxima em velocidade incomum. Freia bruscamente diante da casa. Rafael desce antes mesmo de desligar o motor, o rosto marcado por tensão e cansaço.— Raul? — ele me encara, a voz carregada de inquietação. — O que está fazendo aqui? Aconteceu alguma coisa? Acabei de ver… há várias chamadas da Anna.Fico em silêncio por um segundo, mas já sei que é tarde demais para disfarces.— E só agora você viu?O olhar dele salta para a porta da casa, depois volta para mim. A expressão se transforma rápido: da surpresa à desconfiança. Da confusão à indignação.— Você passou a noite aqui?— Rafael... — começo, tentando ma
RafaelO som da porta se fechando ainda ecoa na minha mente quando estaciono o carro na garagem da casa. Tudo está em silêncio, mas o silêncio aqui não é paz. É peso. Um eco constante de tudo que deixei de fazer.Subo para o quarto como quem carrega uma mochila cheia de pedras. Me jogo na cama sem tirar os sapatos. O quarto ainda tem o cheiro da noite anterior — o amargor do álcool, o suor seco na camiseta, a vergonha impregnada no travesseiro.Olho para o teto por longos minutos. Mas o rosto que vejo... é o dela.Anna.E então, sem conseguir segurar, pego o celular.Abro a conversa com ela.A última mensagem dela é de dias atrás. Curta. Educada. Sem nenhuma pontuação exagerada. O tipo de mensagem que diz muito pelo que não está ali.Começo a digitar.Anna, eu não tenho desculpa para o que aconteceu. Eu deveria ter atendido. Eu deveria ter estado lá.Paro. Leio.Apago.Começo de novo.Eu sou um idiota. E você merece mais do que isso. Mais do que um cara que some quando você mais preci
Domingo, fim de noiteRaulO domingo escorre pelas paredes da casa em forma de silêncio.Depois que deixei o apartamento de Dara, não fui para lugar nenhum. Voltei para casa. Tirei os sapatos no corredor, joguei as chaves no móvel da entrada e apenas… me sentei.Fiquei ali. Por horas.Com os braços apoiados nos joelhos e os olhos presos num ponto qualquer da parede. Sem som. Sem celular. Sem distrações. Só o peso daquilo que terminei, do que deixei, do que ainda está por vir.A dor de Dara ainda está aqui, alojada num canto de mim que sei que vai demorar a se curar. Eu a decepcionei. A abandonei no pior momento. Não tem palavra que alivie isso.Mas também sei que, se eu continuasse, eu a machucaria mais. Porque já não era amor. Já não era inteiro.Fecho os olhos. Penso nela. No lenço azul na cabeça. No sorriso que esconde a exaustão. Na força que ela carrega mesmo quando se sente frágil. E penso… que mulher. Que coragem.Mas não é a imagem dela que me acompanha quando me deito no sofá
AnnaAcordo antes do sol nascer completamente. A claridade suave entra pela fresta da cortina, dourando o quarto com um tom calmo, quase triste. O silêncio é diferente de ontem. Ainda dói..., mas é menos áspero.Me viro devagar. Raul ainda está ao meu lado.Dormindo.O braço dele repousa sobre minha cintura, como uma promessa silenciosa de que está aqui. Que ficou. O rosto sereno, os traços relaxados. Tão diferente do homem tenso de dias atrás.Observo por alguns minutos, sem pressa.Meu corpo ainda carrega o toque dele e meu coração pulsa com algo que não é só luto.É cuidado.É esperança.Me mexo um pouco, tentando não o acordar. Mas ele sente. Os olhos abrem devagar, sonolentos.— Já é manhã? — ele murmura, a voz rouca.— Já. — Respondo, passando os dedos devagar pelos cabelos bagunçados dele. — Você vai trabalhar hoje?Ele esfrega os olhos, respira fundo e me olha por um instante. Um daqueles olhares que dizem mais do que qualquer palavra. Carrega tudo: o que vivemos ontem, o que
Terça-feira, amanhecerAnnaAcordo com a luz suave invadindo o quarto em faixas douradas. Raul ainda dorme, deitado de lado, com o braço estendido na minha direção, como se me procurasse até nos sonhos. Meu peito aperta — daquela forma estranha de quando algo bonito acontece em meio ao caos.Me levanto com cuidado. O roupão ainda tem o perfume do meu pai. Misturado ao de café da manhã de ontem. Misturado ao toque de Raul.O tempo parece flutuar. Tudo dentro de mim ainda dói, mas há uma nova clareza no fundo do peito. Algo que pulsa. Que pede movimento.Volto ao quarto com duas xícaras de café. Raul já está acordado, sentado à beira da cama, mexendo no celular. Ele sorri quando me vê — e é aquele sorriso calmo, sereno, que ele só usou comigo ontem.— Bom dia — ele diz, com a voz rouca de sono. — Dormiu bem?— O suficiente. — Estendo a xícara. — Fiz café... e tomei coragem.— Coragem? — ele pergunta, franzindo a testa.— Para voltar. — Respiro fundo. — Hoje vou com você. Quero trabalhar
Onze horas da noiteMansão FernandezA mansão Fernandez é um labirinto de sombras e luzes suaves. Enquanto caminho pelos corredores familiares, sinto o peso do silêncio, cortado apenas pelo som distante da música que ecoa do andar de cima. O clima opressivo parece refletir a turbulência que carrego dentro de mim desde que soube do câncer de Dara.A angústia aperta meu peito como um nó, constante e sufocante, lembrando-me implacavelmente do que está em jogo. Meus ombros estão tensos, e sinto uma fisgada no pescoço, fruto de noites mal dormidas.Subo as escadas, tentando silenciar meus pensamentos, mas o ranger do piso sob meus pés ecoa na minha mente como acusações silenciosas. Quando alcanço o topo, vejo a porta do quarto de Rafael entreaberta, e lá está ele, reclinado na cama, com um sorriso despreocupado nos lábios, enquanto uma jovem mulher se move ao seu lado, rindo e brincando como se o mundo fora daquele quarto não existisse.A luz suave do abajur delineia os contornos de seus r
— Ah, você está aqui... — diz ela, com um sorriso tímido que parece deslocado naquela hora e lugar. — Vim pegar um pouco de água.Permaneço em silêncio, observando enquanto ela caminha despreocupada até a geladeira.A naturalidade de seus movimentos contrasta com a tensão que cresce dentro de mim como uma onda prestes a quebrar.O perfume leve que ela exala — doce, juvenil — chega até mim, tornando a cena ainda mais insuportável.— Não sabia que estava acordado; você é o irmão de Rafael, não? — murmura ela, enchendo um copo de água. Sua voz é casual, quase inocente, como se nada na situação fosse errado.— Sim. — Respondo com um corte seco. Não me dou ao trabalho de me apresentar.Sei que não vale a pena criar laços; a garota não vai durar.— É tarde — acrescento, a voz afiada como uma lâmina. — Talvez você devesse ir para casa.Ela sorri levemente, sem se intimidar, e responde com simplicidade:— Vou passar a noite com Rafael — diz ela, sem traço de provocação, apenas constatando um