Dia seguinte....AnnaO relógio já passa das dez e dez quando a angústia começa a tomar conta de mim. Rafael prometeu passar para me buscar às nove e quarenta e cinco. A visita ao novo parceiro comercial é importante — ele mesmo disse isso ontem. Mas agora, quase meia hora depois, nenhuma mensagem, nenhuma ligação. Nada.O sol está inclemente, e eu continuo aqui, parada na entrada do prédio da empresa, tentando não parecer desesperada. O calor na calçada é sufocante, o salto já machuca meus pés, e o estômago vazio começa a gritar, avisando que não aguento mais. Respiro fundo, tentando manter a postura, mas o mal-estar se espalha como uma corrente elétrica pelo meu corpo, paralisando meus sentidos.A tontura vem de repente, como um vendaval.A visão embaça, o chão parece mais longe do que deveria, e, antes que eu consiga me apoiar na parede, sinto minhas pernas falharem. O mundo parece girar ao meu redor, um turbilhão de cores e formas que não consigo processar. Vou cair. Sei disso.—
De volta à empresa, o relógio marca quase seis. O salto ainda machuca meus pés, mas agora carrego algo diferente do que tinha de manhã: a sensação de dever cumprido.A reunião foi um sucesso. Rafael se superou, e eu consegui acompanhar, mesmo com o corpo ainda fraco e o coração descompassado pelas emoções do dia. Organizo meus relatórios em silêncio, tentando recuperar alguma ordem dentro de mim, quando escuto a porta se abrir devagar.Levanto os olhos.É ele.Raul.Parado na entrada da sala com as mãos nos bolsos, a expressão contida, mas os olhos... os olhos não disfarçam nada.— Vim ver se você está bem.Minha respiração falha por um segundo. O corpo ainda lembra o toque dele mais cedo, a firmeza com que me segurou, o calor do paletó em meus ombros.Assinto, com um sorriso pequeno, mas verdadeiro.— Estou, sim. Obrigada por mais cedo. De verdade.Ele se aproxima. Os passos são firmes, mas há hesitação neles. Como se cada um carregasse o peso do que ele sente, mas não pode dizer.—
Horas depois, a noite....RaulO restaurante ao nosso redor é um refúgio de elegância discreta, mas nada aqui combina com a confusão que me domina por dentro. O aroma delicado das especiarias, as velas tremulando suavemente, tudo parece estar em um ritmo oposto ao do meu coração, que bate pesado e fora de compasso.Dara está na minha frente, tão luminosa, tão cheia de vida, mesmo que a doença insista em desafiá-la. Ela fala sobre a quimioterapia como se fosse apenas mais um detalhe do dia, um item a ser riscado na lista de afazeres. Sua coragem me espanta, a forma como consegue encontrar graça até nos momentos mais sombrios. Ela ri ao contar sobre uma enfermeira desastrada, e eu tento me conectar, tento estar ali por ela.Mas minha mente é uma traição constante. Por mais que eu me esforce, ela vagueia para longe, para outro lugar, outra pessoa.Anna.Eu deveria me sentir envergonhado, culpado e sinto. Mas a culpa não apaga a intensidade do que carrego dentro de mim. Desde aquela entre
Aquilo me desmonta por dentro. A garganta fecha, como se engolir as palavras exigisse força demais.— Sim... e ele quis me ajudar. Sem me contar. Eu não sabia que ele estava por trás desse emprego — confesso, num sussurro. — Como se ainda precisasse me proteger.— Porque precisa. — Rafael me encara, firme. — E não tem nada de errado nisso. É o jeito dele de continuar sendo seu herói, mesmo cansado. Mesmo doente.Fico em silêncio. Tentando absorver. E no meio de tudo isso, percebo que estou mostrando a ele um lado meu que quase ninguém vê. O lado que quebra. Que sente. Que sofre calado.E, por algum motivo que ainda não entendo... não me sinto exposta.Me sinto segura.Rafael sorri de leve. Mas é um sorriso de verdade agora, não aquele de fachada. Um sorriso que parece entender sem precisar dizer mais nada.— Vai para casa e descanse.Me levanto devagar. Quando passo por ele, paro por um instante, sem saber se digo ou não. Mas digo.— Obrigada... por me ouvir.Ele baixa o olhar por um
No fim da tarde, ouço batidinhas leves na porta. Reconheço de imediato. É Clara.Abro com um sorriso. Ela está com os cabelos presos num coque torto, as mãos cheias de sacolas de feira.— Trouxe umas frutas boas. Seu pai gosta de banana, né? — diz, entrando sem cerimônia.— Vai amar. Está comendo pouco, mas o que come, escolhe com carinho — respondo, pegando as sacolas.Ela vai até ele, se abaixa devagar ao lado da poltrona, segura sua mão com ternura.— E aí, campeão?Meu pai sorri, fraco, mas genuíno.— Continua aqui, firme. Só um pouco mais lento — brinca, tentando soar forte.Clara conversa com ele como se o tempo não tivesse passado. Como se ele ainda fosse aquele homem que a ajudava a consertar a torneira, carregar as compras, dar conselhos. E talvez, para ela, ele ainda seja. Eu observo de longe, sentindo o nó na garganta se formar de novo.Depois, enquanto ela me ajuda a organizar as compras na cozinha, fala baixo, com aquele olhar preocupado de sempre:— Tenho notado que ele
Segunda, à tarde....AnnaO dia segue seu ritmo, com a rotina bem estabelecida de sempre. Funcionários caminham pelos corredores, cada um com suas preocupações, como se carregassem suas responsabilidades em silêncio, quase invisíveis, mas visíveis a quem realmente observa. O cenário na empresa é de uma calma tensa, algo que parece fluir sem grandes interrupções, mas com uma energia palpável, que crescia com a aproximação da reunião.Agora, à tarde, a pressão se torna ainda mais evidente. Uma reunião de importância decisiva se aproxima, e o ambiente na empresa reflete a tensão natural desses momentos. Encontro-me no meu escritório, fazendo os últimos ajustes em tudo, como se cada detalhe fosse crucial para o sucesso do encontro. Organizo documentos, reviso relatórios e me certifico de que todos os aspectos logísticos estejam perfeitamente alinhados. Cada ponto a ser discutido, cada dado, tudo está sendo cuidadosamente verificado.A reunião é uma peça-chave. Trata-se de uma avaliação es
Uma hora depois...AnnaAo abrir a porta da sala de reuniões, sinto o ar mudar instantaneamente.Denso. Pesado. Como se até as paredes percebessem que algo está fora do lugar.Todos os olhares se voltam para mim. Curiosos. Confusos. Procurando, sem disfarçar, o homem que deveria estar à frente da reunião. Rafael.Engulo em seco. A vontade de recuar é forte, mas não posso. Endireito os ombros, prendo a respiração e caminho até a cabeceira da mesa, cada passo ecoando dentro de mim.— Boa tarde a todos. — Minha voz soa firme, mesmo que o caos me devore por dentro. — Meu nome é Anna Simon Ricci e hoje conduzirei esta reunião em nome do Sr. Rafael Fernandez. Infelizmente, ele não pôde comparecer devido a um imprevisto.O silêncio que se instala é espesso. Quase palpável.Até que ele se rompe.— Porra... — a voz grave de Raul corta o ar, baixa e rouca, carregada de uma frustração contida que reverbera na sala.Um murmúrio atravessa os presentes.Meus olhos o procuram — e o encontram.Sentad
RaulChego em casa mais tarde do que pretendia. O jantar com Dara foi silencioso e desconfortável. Ela estava cansada, o peso do tratamento deixando-a mais pálida e frágil do que nunca. Seus olhos, que antes brilhavam com intensidade, agora pareciam carregar uma sombra permanente. Dessa vez eu fiquei focado nela, mantendo a conversa leve para ela se sentir feliz, mas não teve jeito, ela estava muito apática.Ao abrir a porta da mansão, o silêncio habitual me recebe. Só o som abafado dos meus passos no piso de mármore ecoa pelo espaço amplo. A casa, mesmo grandiosa, parece pequena diante do vazio que a preenche. Subo as escadas com passos lentos, como se cada degrau aumentasse o peso nos meus ombros.Paro diante da porta entreaberta do quarto de Rafael. Um cheiro ácido de álcool e cigarro escapa pelo corredor. Meu maxilar se contrai. Entro sem bater e o vejo jogado na cama, completamente à deriva. Garrafas vazias estão espalhadas pelo chão, e sua camisa está amassada, colada ao corpo s