LORCAN
Meus pés cortavam a floresta como lâminas. Os galhos chicoteavam meu rosto, mas eu não diminuía o ritmo. O ar frio queimava nos pulmões e, a cada passo, sentia o limite da minha paciência e da minha sanidade ficando para trás.
Eu não queria me transformar. Ainda não.
Uma transformação Lycan não era fácil, no momento que cedesse o meu corpo à minha fera interior, ela seria capaz de destroçar tudo em seu caminho, sendo o animal selvagem que era, nem um pouco racional.
A cada fibra do meu corpo, eu a segurava dentro de mim. Lutava contra ela com a mesma violência com que ela me implorava para ser solta. Minha pele parecia em chamas, os músculos tremiam de tensão.
Quando cheguei perto dos limites da nossa fronteira, avistei um farol aceso. Um cheiro familiar me atingiu, misturado a um aroma completamente novo… e perigosamente viciante.
— Que porra tá acontecendo aqui? — Minha voz cortou o ar como um trovão.
Lobos se afastaram às pressas, abrindo espaço ao meu redor. No meio do círculo, uma mulher estava caída. Pequena. Frágil. Os cabelos castanhos desgrenhados cobriam seu rosto, grudados por suor e lágrimas. Seu corpo tremia, e seus gemidos de dor eram um soco direto no meu estômago.
Meu lobo rugiu, ameaçando tomar o controle. Aquele som… aquela dor… trazia de volta memórias enterradas… A noite da minha transformação Lycan.
Fechei os punhos, afastei a lembrança e voltei ao presente.
— Alfa, a fêmea tentou fugir quando eu disse que ela seria interrogada — Cassian, meu Beta, cuspiu as palavras com desprezo. — Tratei de garantir que ela não fosse a lugar nenhum.
Meu olhar cortou o espaço entre nós.
— Porra, Cassian… — murmurei, o controle escapando por entre os dentes.
A luta interna se tornou mais feroz. Minha fera rosnava, faminta por dominação, enquanto meu lado racional tentava segurar as rédeas.
Ajoelhei-me ao lado dela. O cheiro de terra, suor e… algo mais. Um aroma amadeirado, levemente adocicado, com um toque de sal. Era cru. Selvagem. Inesperadamente bom.
— Não precisava disso! — A voz de Dahlia, companheira de Cassian, cortou o ar. — Ela já estava machucada. Não ia longe. Isso foi… desnecessário.
Enquanto os dois discutiam atrás de mim, me forcei a analisar a situação. Meu olhar percorreu o corpo da intrusa até parar no tornozelo grotescamente deslocado. Engoli em seco.
Ela estava completamente quebrada… mas, ainda assim, o jeito como tentava sufocar a dor me pegou desprevenido.
— Chamem um curandeiro. Agora. — Minha voz soou cortante, e o comando foi obedecido de imediato.
— Alfa… ela não vai conseguir andar desse jeito. Quando a encontramos na Ilha das Devas, já mal conseguia se manter de pé — Eme informou, a calma dela sendo o único fio que me manteve são naquele instante.
Ilha das Devas?
O que uma loba jovem fazia naquele lugar?
— Prepare alguma coisa para a dor. Vamos ter que colocar o tornozelo no lugar antes que ela pire de vez.
— Sim, Alfa. Mas… como vamos levá-la até lá?
— Eu carrego.
No segundo em que me movi, ela reagiu.
Levantou o rosto sujo, os olhos queimando como brasas vivas. Castanhos, com um brilho… indomável.
Ela rosnou. Para mim.
Meu corpo congelou. O choque percorreu minha espinha como eletricidade.
Por um instante, meu lobo parou de lutar. Ele apenas… observou. Fascinado.
Aquela mulher… tinha uma presença que não combinava com seu estado deplorável.
— Não se aproxime de mim! — Ela disparou, a voz embargada, mas com uma força surpreendente. — Não ouse me tocar, Alfa Lorcan. Eu sei quem você é… e não confio em você.
Atrevo-me a dizer… eu gostei da ousadia. Era burrice, claro. Mas provocante.
— Você realmente acha que tem escolha? — A ameaça arranhava minha garganta, pronta para explodir.
— Não preciso estar de pé para rasgar sua garganta.
Ah… Porra. Aquilo deveria me irritar, mas tudo o que fez foi despertar algo perverso dentro de mim.
Abaixei o rosto até ficar a centímetros do dela. Sua respiração quente e ofegante tocou minha pele, e o cheiro dela… porra, o cheiro dela era um convite ao caos.
— Vai aprender… — murmurei, num rosnado baixo. — Que no meu território quem faz as regras sou eu.
Ela não piscou. Não desviou o olhar. Queixo erguido, como uma guerreira mesmo deitada no chão. Aquilo só deixou meu lobo ainda mais faminto.
— Você não consegue nem se sustentar. — Passei os braços ao redor dela. Um sob a curva dos joelhos, o outro na cintura. — Então cale a boca.
Ela era leve. Leve demais. Pele fina demais. Ossos salientes como se não comesse direito há anos.
Quando a ergui, um gemido agudo escapou dos seus lábios. Ela tentou esconder, mas eu ouvi. Todo mundo ouviu.
Automaticamente ajustei o aperto, buscando não piorar sua dor.
— Eu posso andar! — Ela tentou protestar.
— Não. — Saí andando, ignorando a birra.
Enquanto atravessava o campo, lancei uma ordem por cima do ombro:
— Assim que eu lidar com ela, quero todos vocês na tenda do conselho. Sem atrasos.
O silêncio atrás de mim foi aceitação suficiente.
— Me coloque no chão! — Ela se debatia, os punhos fracos acertando meu peito.
— Chega. — O tom Alfa preencheu minha voz, carregado de dominação.
Ela paralisou. Senti quando sua loba interna cedeu, encolhendo-se em obediência instintiva.
Se ela fosse ligada a um Alfa, o vínculo teria a protegido de sentir meu comando tão forte. Mas ela não tinha vínculo. Sem Alfa. Sem matilha.
Uma loba errante.
Meu olhar endureceu. Isso deixava tudo mais confuso.
— Não é hora para birras infantis. Estou te ajudando, então aceite essa porra calada.
Ela engoliu seco, o peito subindo e descendo rápido.
Seguimos o caminho em silêncio, e não demorou para que eu sentisse o peso da cabeça dela encostar no meu ombro. Surpreso, congelei por um instante.
A proximidade dela me deixava desconcertado. O calor do corpo frágil, o cheiro… tudo nela era um convite que eu não queria aceitar.
O ar quente da sua respiração bateu na curva do meu pescoço, me arrancando um arrepio que odiei sentir.
— Você está… quente. Como consegue não sentir frio? — O sussurro dela mal passou de um fio de voz.
Ela estava lutando para se manter acordada.
— Sou um Lycan. — Minha resposta foi seca, curta.
Ela apenas deu de ombros, como se aquilo não fosse importante. Seu corpo estremeceu e ela se aconchegou ainda mais.
Porra… aquilo não era justo.
— Estou congelando — ela murmurou, já meio entorpecida.
— Está fraca. Melhor dormir. Sua loba precisa começar o processo de cura.
— Não posso… Não confio em você.
Uma risada seca escapou de mim, amarga.
— Se eu quisesse te matar, já estaria morta.
Ela soltou um último suspiro. O corpo dela amoleceu de vez, desmaiando.
Continuei andando, os pensamentos girando mais rápido que minhas pernas.
— Alfa. — Um dos patrulheiros se aproximou. — A curandeira já está a postos. Onde quer que ela espere?
Parei por um segundo. Olhei para o rosto sujo, frágil, e ainda assim perigoso, da mulher nos meus braços.
Levá-la para as celas seria o certo, mas algo dentro de mim gritava que ela não sobreviveria a noite lá. Ainda não.
— Mande a curandeira me esperar… na minha cabana.
Ao dar as costas e seguir meu caminho, só consegui pensar em uma coisa:
Aquela mulher era um problema.
E de alguma forma… agora ela era meu problema.