Marcus disse com impaciência:
— Scarlett, já chega...
Sua voz carregava um tom de advertência, o mesmo que usava com membros desobedientes da alcateia. Não era a voz de um companheiro, mas de um Alfa perdendo a paciência com uma subordinada.
— Fui mais do que generoso. Dei a você tempo para se curar, recursos para se recuperar e, agora, estou pedindo apenas uma assinatura simples.
Ele se aproximou, e sua presença, como se não bastasse, tornou o ambiente ainda mais opressor naquele cômodo pequeno.
— Não teste mais a minha paciência.
Antes mesmo que pudesse concluir a ameaça, Celeste reagiu bruscamente, cerrando os dentes e agarrando, com firmeza, a faca sobre a mesa.
No mesmo segundo, a lâmina cintilou prateada sob a luz da tarde que invadia o ambiente pela janela.
— Scarlett, vou me redimir com a minha morte!
A voz dela vacilou em um desespero teatral, mas, apesar disso, os olhos mantiveram-se frios e calculistas.
Com um gesto impiedoso, ela cortou a própria mão, e o ferimento foi tão profundo que o osso branco apareceu por entre a carne aberta.
O sangue jorrou em seguida, respingando sobre os documentos brancos e perfeitamente alinhados sobre a mesa.
O cheiro metálico logo tomou conta do ar, fazendo meu estômago revirar.
Mesmo assim, meu peito permaneceu vazio. Tudo o que me veio à mente foi a pergunta: “Por que não cortou a garganta em vez da mão?
Se quisesse mesmo se redimir, isso teria surtido um efeito muito mais convincente.”
— Celeste!
O grito de pânico de Marcus rompeu, como um trovão, o silêncio tenso que pairava no ar.
E de imediato, ele se ajoelhou ao lado dela, pressionando com força as mãos sobre o ferimento, como se isso bastasse para conter o sangramento.
— Chamem os curandeiros! Agora! — Ele gritou para os empregados paralisados na porta.
— Tragam a poção de cura de grau mais alto que temos!
As mãos dele, agora manchadas de escarlate, seguravam o braço ferido dela com todo o cuidado.
“As mesmas mãos que, um dia, me envolveram com tanta ternura, agora tremiam por causa de outra mulher…”
Em seguida, Celeste ergueu o olhar, com lágrimas escorrendo pelo rosto, encarnando perfeitamente a imagem da feminilidade frágil.
— Marcus, veja quem eu sou: apenas uma loba renegada, vivendo à margem, dia após dia. Então, como poderia permitir que minhas ações colocassem em risco sua relação com Scarlett?
Sua voz saiu quase como um sussurro, claramente projetada para tocar o coração dele.
— Prefiro morrer a causar problemas entre você e sua companheira.
Ela cambaleou de forma dramática, como se estivesse prestes a desmaiar pela perda de sangue, e, sem demora, Marcus a segurou, com o rosto tomado por uma fúria protetora e uma preocupação intensa.
Dessa forma, o instinto protetor dele foi completamente ativado, exatamente como ela havia planejado.
Como resultado, o rosto de Marcus ficou vermelho de raiva ao desviar o olhar da mão ensanguentada de Celeste para minha expressão inabalável.
Ao mesmo tempo, ele respirou com dificuldade, e seu peito subiu e desceu em ritmo acelerado, como se lutasse para conter o ódio.
Logo depois, ele se virou para mim com olhos venenosos, enquanto sua voz emergia carregada de acusação:
— Scarlett, ela está tentando se redimir com a própria morte e você ainda se recusa a perdoá-la?
A decepção no tom dele cortou mais fundo que qualquer lâmina.
— O que exatamente você quer de mim? Ou dela? Ela já sofreu o suficiente!
Sua voz aumentava a cada palavra, preenchendo o cômodo com a dominação Alfa.
— Até uma loba renegada sabe pensar no bem da alcateia. Sendo assim, já que seu corpo está praticamente curado, qual a necessidade de enviá-la para a Prisão Prateada?
O tom dele se tornava cada vez mais venenoso.
— Por acaso, seu coração é feito de gelo? Não consegue ver que ela está sinceramente arrependida?
“Como se eu fosse a única errada em toda aquela situação.
Como se eu fosse o monstro por não perdoar a mulher que mandou matar meu filho!”
Fitei o sangue no chão, sentindo o estômago girar e, ao mesmo tempo, a mente se embaralhar.
Aquela visão, por sua vez, trouxe de volta memórias que eu me esforçava para enterrar:
Sangue em minhas coxas. Sangue no chão da floresta. Sangue onde deveria estar meu bebê…
Atordoada, vi a poça de sangue parecer se transformar, moldando-se na figura de um bebê minúsculo que estendia as mãozinhas em minha direção.
A alucinação foi tão vívida que, por um instante, quase consegui ouvir um sussurro.
— Mamãe...
Aquela palavra reverberou na minha mente, destruindo o último fragmento da resistência que eu ainda mantinha.
As lágrimas, então, vieram com força, jorrando como uma represa rompida sem aviso.
E assim, solucei sem controle, permitindo que toda a dor acumulada por meses transbordasse como uma avalanche impiedosa:
— Tudo bem. — Sussurrei entre os soluços.
— Leve-a para o centro de cura. Assim que vocês voltarem, eu assino.
Mesmo com dificuldade, consegui responder a Marcus, ainda que minha voz soasse quase irreconhecível.
A forma como minhas palavras carregavam rendição me fez me odiar ainda mais, sobretudo porque a exaustão me dominava por completo.
Eu estava cansada de lutar, cansada de sofrer e, acima de tudo, cansada de ser transformada na vilã da narrativa alheia.
O alívio estampado no rosto dele foi imediato e inegável, já que ele não pensou duas vezes antes de erguer Celeste nos braços e começar a gritar ordens às empregadas ao redor:
— Preparem o carro! Rápido!
A urgência com que ele zelava pelo bem-estar dela contrastava cruelmente com tudo o que ele nunca fizera por mim.
Em silêncio, eles atravessaram a porta e se foram, sem sequer olhar para trás, abandonando-me à solidão e às minhas próprias sombras.
Logo depois, meus joelhos cederam, e caí no chão, com o estalo seco contra a madeira rompendo o silêncio do quarto.
E com isso, as sensações fantasmas voltaram: a sensação do meu filho se movendo em meu ventre, o calor da presença da minha loba em minha alma…
Contudo, eu sabia que aquilo era apenas a memória de algo que havia sido brutalmente arrancado de mim.
Meu filho e minha loba estavam mortos: assassinados pela mulher que Marcus acabara de carregar nos braços como se fosse um tesouro.
Por mais que eu tentasse, era impossível superar aquilo.
E essa constatação me atingiu com a força de um soco no peito, esmagando o pouco que restava de mim.
“Marcus, adeus.
Até nunca mais…”
-
Horas mais tarde, sob o luar que atravessava a janela do quarto, Celeste parecia completamente satisfeita nos braços de Marcus.
E seu ferimento havia sido curado por completo, sem deixar sequer uma cicatriz.
Conveniente, aliás, o quão depressa ela se recuperava sempre que isso lhe convinha…
— Você trabalhou tanto nas últimas semanas, cuidando da Scarlett todos os dias com tanto carinho.
Deslizando atrás dele com uma sensualidade nitidamente ensaiada, ela pousou os dedos sobre seus ombros, massageando devagar para afastar qualquer resquício de tensão.
Havia posse em cada toque, como se estivesse delimitando aquilo que considerava seu.
Em resposta, Marcus a envolveu pela cintura, pressionando o corpo dela contra o seu com intensidade.
— Não foi por sua causa que o Conselho Alfa ganhou munição contra mim? Se não fosse por isso, eu teria que manter essa farsa por tanto tempo?
A irritação transbordou na voz dele, já enfraquecida pelo cansaço.
E diante disso, a imagem de companheiro afetuoso enfim ruíra por completo.
Celeste, por sua vez, o beijou com intensidade e, logo depois, levou suas mãos até a barriga discretamente saliente.
— Bebê, diga oi para o papai.
A voz dela era melosa, como a de uma mãe devotada em uma peça ensaiada.
— Seu papai sacrificou tanto por você... Então cresça bem, e cuide dele quando for grande, está bem?
Ela sorriu para Marcus com falsa inocência, aninhando-se ainda mais em seus braços, enquanto os olhos dele brilhavam com felicidade genuína pela primeira vez em semanas.
Além disso, seu sorriso era terno, caloroso, ao passo que acariciava a barriga dela com delicadeza.
Era o mesmo olhar que, um dia, ele havia reservado apenas para mim…
Foi então que se ouviu um estrondo: “Bang!”
A porta do quarto se escancarou com tamanha força que bateu contra a parede.
E Neil surgiu na entrada, em completo pânico, com as roupas desalinhadas e o rosto visivelmente pálido.
— Alfa! Algo terrível aconteceu... É sobre a Scarlett, ela...
Ofegante, ele arfava como se tivesse atravessado o território inteiro até ali.
Nesse momento, Celeste fingiu estar abalada, apertando-se contra Marcus em busca de amparo.
— A Scarlett não vai me causar problemas de novo, vai?
Embora fingisse preocupação na voz trêmula, seus olhos, por outro lado, transbordavam satisfação.
Percebendo isso, Marcus se levantou da cama num impulso e, imediatamente, cravou os dedos com força brutal no braço de Neil.
Ao mesmo tempo, seu peito nu subia e descia em fúria, denunciando o impacto daquela interrupção.
— Neil, quantas vezes eu disse para não mencionar aquela mulher aqui dentro? O que quer que tenha acontecido, resolva você mesmo.
O tom dele foi frio e definitivo.
Entretanto, o rosto de Neil permaneceu transtornado, com os olhos arregalados em puro horror.
Assim, ele encarou Marcus com os olhos vermelhos, e sua voz se quebrou:
— A Scarlett sofreu um acidente a caminho de outra alcateia. O carro explodiu!
As palavras pairaram no ar como uma sentença de morte.
— Ela morreu! Queimada viva!