1 - PRÓLOGO

Ao amanhecer, os serviçais, grupo do qual eu não fazia mais parte, acenderam a fogueira e aqueceram água, pães, queijo e restos de carne do dia anterior enquanto os outros participaram da rápida missa a Titus celebrada por Taurus. Não demorou mais do que dez minutos, e não passou de protocolo para manter os fiéis na linha. Logo todos partiram para um rápido desjejum enquanto os serviçais desmontavam e empacotavam as tendas. Em seguida, partimos.

Poucos quilômetros à frente, a estrada bifurcava-se, à esquerda se afastando e à direita entrando na floresta, caminho este pelo qual seguimos. A mata, que em certos pontos era tão fechada que formava um túnel sobre a estrada, tornava o ambiente frio e sombrio. A via de terra pavimentada com velhas e desgastadas raízes de árvores começou a se acentuar em uma subida leve e contínua, e passamos o dia inteiro movendo-nos pela selva, parando apenas para uma refeição como no dia anterior, até que no meio da tarde entramos em um trecho menos denso e foi possível ver, ainda bem distante, uma cordilheira de cumes chatos. Continuamos até um grande planalto por onde andamos pelo menos mais meia hora, até avistarmos a carroça no ponto de encontro com o acampamento montado em uma imensa clareira.

Na chegada, fizemos mais uma refeição rápida enquanto a noite caía e, após, os magos ordenaram que tomássemos posição. A temperatura caiu em pouco tempo. Procurando em vão os tigres em volta, minha curiosidade se aguçou com a paisagem diferente e, cada vez mais próximos daquela bela cadeia de montanhas com topos acinzentados, achatados, de cumes esbranquiçados pela neve remanescente do inverno, atentei a cada detalhe abusando do zoom como sempre. Até que, ao focar no cume mais alto da cordilheira, tomei um susto! Havia uma criatura lá!

Abaixada como se não quisesse ser vista, era um ser fantástico! Selvagem e belo, demoníaco e gracioso, de cor dourada reluzente; grande, poderia confundir-se fácil com um dinossauro, mas não era o caso; suas escamas variavam de tamanho e tom conforme a parte do corpo, e a cauda era grande e serpenteante com espinhos enormes na ponta; o avantajado pescoço terminava em cabeça cuneiforme cheia de chifres e espinhos protuberantes sobre as têmporas, abaixo do queixo, na nuca e em outras partes; a bocarra, repleta de afiados dentes, evidenciava um carnívoro. Tinha três pares de membros, um traseiro e dois dianteiros, sendo um destes um par de asas enormes! Eram parecidas com as de morcegos ou de pterossauros pré-históricos, mas bem maiores em proporção. Os outros membros, grotescos e musculosos, tanto dianteiros quanto traseiros, terminavam em garras, esculpidas pela natureza com a finalidade de serem letais.

Pelas imagens captadas, busquei nos arquivos qualquer coisa que se assemelhasse àquilo e a resposta foi estarrecedora: “dragões”. Seres que assolaram o imaginário humano por milhares de anos, que povoaram histórias fantásticas de escritores e roteiristas, fazendo parte de muitas culturas antigas, adorados por algumas, odiados por outras e temidos por todas!

Hipnotizado pela beleza da criatura, não consegui parar de observar todos os seus detalhes e, ao contrário das imagens de arquivos, o ser que eu via não era gordo com asinhas, tampouco uma serpente de cara monstruosa. Seu tórax e abdome eram musculosos, como todos os membros. Anoiteceu e continuei a contemplá-lo. Em um momento, ao aproximar todo o zoom, notei que olhava em nossa direção com grandes olhos de globos pretos, íris amareladas e pupilas cuneiformes como as dos gatos. A outra sentinela indagou-me por que tanto eu olhava para as montanhas e também tentou avistar alguma coisa, mas nada viu devido à distância que nos separava da cordilheira. Também por isso não vi motivo para alarmes e respondi que não era nada, passando a simular guarda alternando minha atenção para todas as direções. Entretanto, sempre que meu campo de visão cruzava com a criatura, prestava atenção nela mais uma vez até que não mais o encontrei.

Esquadrinhei o céu em todas as direções. Sim, o céu. Ele tinha asas e era provável que as usasse. Não podia perdê-lo de vista! Procurei por uns trinta segundos até que o encontrei voando tão alto que, a olhos nus, quase não seria possível vê-lo. Passou sobre o acampamento planando gracioso e veloz, asas totalmente abertas e corpo em riste com os outros dois pares de membros retraídos para trás juntos ao corpo, o que facilitou o cálculo das medidas.

A envergadura das asas passava dos impressionantes vinte metros, e dos “braços” chegava a oito; do focinho à ponta da cauda mais de doze metros! Só a cauda em forma de chicote tinha seis! As garras quase um metro e cada dedo era como uma espada mortal!

O outro guarda, curioso, perguntou o que eu procurava no céu e tentou, sem sucesso, ver o que eu via com clareza. Aos poucos a criatura espetacular se afastou e sumiu no horizonte. Aliviado, tornei a procurar os meus amigos tigres e os avistei na mata.

A clareira onde estávamos tinha braços finos de floresta que a invadiam, e a estrada cortava-a em uma das bordas. Acampamos perto da borda oposta à estrada e eu montei guarda na posição mais próxima das árvores.

Procurava no céu minuto a minuto, esperando que ele voltasse. A lua, alta e cheia, iluminava a noite na companhia de nuvens esparsas. Horas mais tarde, quando desistira de procurá-lo, eis que ele surgiu de dentro de uma nuvem voando alto como antes. Prestando atenção, percebi que voava em círculos. Quando completou duas voltas, ficou claro que, embora o círculo que descrevia no céu fosse enorme, seu centro coincidia com o acampamento. Concluí que era mais inteligente do que um animal qualquer e quando me dei conta de que nos observava afligi-me. Pensei em soar o alarme, mas o que eu diria? Ninguém o enxergaria a olho nu e, se fosse um alarme falso, eu perderia o crédito ganho com tanta dificuldade e ao custo de uma morte junto aos magos.

Foi um erro. Depois de mais duas voltas voou para o centro do perímetro que descrevia, ou seja, o acampamento. Tremi e tive um vislumbre: minha passividade custaria caro. Foi quando ele mergulhou para um ataque que seria mortal.

Em voo vertiginoso girando em parafuso com as asas semicerradas, colocou-se em rota de colisão com as tendas! Imaginei que se espatifaria ao chão e não havia lógica nenhuma naquilo. Não restava mais tempo para o alarme e mal consegui cutucar a sentinela ao meu lado, apavorado com a possibilidade do dragão esmagar várias pessoas, inclusive os senhores que poderiam me ajudar.

O outro guarda viu e esboçou soar o alarme no exato momento em que a criatura abriu as asas, alinhou o corpo para baixo, amorteceu a queda, abriu a boca e, dela, uma luz amarela brilhante surgiu! Cada vez mais intensa a luz explodiu para fora e para baixo na forma de um cometa de fogo, cuja cauda nunca parava de sair da bocarra!

A bomba flamejante atingiu o centro do acampamento, causando uma enorme explosão e apavorando qualquer um que a visse. Convenci-me que a criatura era má além de inteligente, e em uma fração de segundo antes de girar sobre os calcanhares e correr, vislumbrei-a pousando em meio às próprias chamas. Pensei que se suicidaria ali e tentei não afrouxar o passo enquanto fitava sobre meu ombro direito e notava que o dragão era imune ao fogo que ateava. Ele incendiou o acampamento inteiro e todos que nele se encontravam.

Acelerei o quanto pude sem olhar para trás e liguei todos os meus sistemas de segurança simultaneamente, o que incluía o inibidor de ondas e mais um recurso do meu traje sobre o qual ainda não falei: a rijeza. Trata-se de um sistema inteligente que põe os nanorrobôs em alerta para que seus sensores captem objetos em rota de colisão. Em uma fração de segundo as nanomáquinas conseguem saber onde será o impacto e aumentam a densidade do local o que, aliado ao inibidor de ondas, concede uma excelente proteção, mas consome muita energia.

Corri para a mata avistando os tigres ao longe com o modo de visão noturna e gritei para que fugissem, ao que não pensaram duas vezes: assumiram a forma quadrúpede e correram muito rápido selva adentro. Quando atingi dois ou três metros dentro da mata, parei e virei-me apenas para ver o acampamento inteiro sumir em meio às chamas. Labaredas enormes! Deviam alcançar mais de dez metros de altura! Eu sentia o calor que emanava a uns bons cem metros de distância, o que me levou a concluir que era muito mais quente do que o calor produzido por fogo normal.

Súbito, vi a criatura em perseguição às sentinelas do lado sul, oeste e norte que corriam para as árvores, buscando proteção na borda da clareira oposta a que eu me encontrava. Todas foram estraçalhadas em um rasante alternando as patas traseiras, fazendo um a um em pedaços e depois ele alçou voo mais uma vez, parecendo procurar os outros. Ao concluir que eu era uma das próximas vítimas, corri para a mata densa tentando me tornar um alvo mais difícil.

Poucos segundos depois, ainda correndo, ouvi o bater das asas atrás de mim, na borda da floresta, no ponto por onde eu adentrara. Em seguida, alçou voo e o ouvi lançando seu fogo mortal, agora na vegetação. Com uma olhada para trás, vi que os jatos flamejantes não vinham em minha direção, mas, muito rápidos, passaram uns dez metros à minha direita. A fera fez uma curva dez metros a frente, retornou passando a dez metros à minha esquerda descrevendo um semicírculo. Tudo isso sem parar de baforar como um gigantesco lança-chamas.

Entendi que construía uma prisão de fogo, pois me vi cercado nas laterais e na frente por árvores acesas. Virei-me para voltar e notei que ateara fogo atrás de mim também ao mesmo tempo em que tropecei em uma raiz e caí ao lado de uma árvore muito alta e grossa.

O fogo que a criatura emanava era, agora eu sentia, muito mais poderoso do que o normal. Ficou claro o porquê de se espalhar depressa, consumindo tudo rápido demais e fechando-se ao meu redor. O calor que eu sentia era infernal apesar do inibidor de ondas absorver boa parte dele, mas eu sabia que isso era momentâneo, pois logo eu ficaria torrado. E não havia nada a fazer! Em um lampejo de sangue-frio percebi o quão inteligente era a criatura que teve a perspicácia de construir uma jaula flamejante com o único objetivo de me matar. Um ser pouco inteligente se lançaria em perseguição.

Daí, o lampejo de frieza que me abatera passou e o desespero frente à morte certa tomou conta de mim mais uma vez. Levantei para correr sem pensar que não tinha para onde e ouvi um estrondo vindo de trás fazendo a adrenalina jorrar em meu sangue. Apavorado, olhei de relance e vi o enorme tronco rachar com o calor e cair em minha direção!

Em pânico tropecei outra vez, agora em uma raiz que me fez cair de joelhos e quando toquei as patelas no chão, ele cedeu fazendo-me despencar em um fosso de mais de cinco metros, escavado para ser uma armadilha. Supus pelas pontas afiadas me esperando no fundo. Uma delas entrou em minha coxa causando dor tão lancinante que ignorei o impacto da queda e gritei até doer a garganta!

Não fosse o inibidor, a criatura teria ouvido e não fosse a rijeza, eu teria sido crivado de lanças. Em mais uma fração de segundo o tronco caiu sobre o buraco, tapou-o quase por completo e deixou apenas um raio de luz lunar misturado com os clarões do fogo entrarem por uma fenda.

O enorme galho pontudo atravessou minha coxa direita desde a lateral externa acima do joelho até o lado da virilha. Sangue claro escorria confirmando que uma artéria fora perfurada e que a morte seria rápida, mas agora por hemorragia. Claro que carregava um kit de primeiros socorros que poderia dar um jeito no ferimento, mas o problema era tirar a estaca. Para piorar, tudo acima de mim ardia e o tronco podia cair para dentro a qualquer momento. Era o fim.

Tirei forças, eu não sei de onde, agarrei com as duas mãos aquele pedaço de madeira, por baixo e puxei devagar e continuamente sentindo a carne rasgar por dentro, causando uma dor terrível! Não parei de puxar e gritar, gritar e puxar, gritar mais ainda até que estivesse fora da minha perna.

O buraco onde eu estava tinha uns dois metros de diâmetro e o tronco acima de mim agora queimava pelo lado de dentro do buraco com crepitar ruidoso, favorecido pela entrada de oxigênio.

Fiquei atônito me esvaindo em sangue e esperando meu inevitável fim. Minha vida passou diante dos meus olhos enquanto ouvia a madeira estalar. Os pensamentos que primeiro me ocorreram foram sobre a gata selvagem que me encantara e me assustara com a mesma eficiência.

Súbito, o fogo cessou. Para minha sorte e surpresa o tronco transformou-se em carvão tão rápido quanto fora incendiado jazendo carbonizado com metade do tamanho que tinha.

Ainda ouvia o resto da mata crepitar lá fora e lembrei da conclusão anterior de que o fogo da criatura era muito mais quente e queimava muito mais rápido. Senti-me aliviado por saber que tinha uma chance e voltei a sentir as fisgadas de dor na perna dilacerada. Perdera muito sangue, precisava agir rápido e, com o cessar do fogo, a escuridão tomou conta.

Às cegas, peguei o kit de primeiros socorros, abri e, de dentro, emanou uma luz fraca suficiente para distinguir o comprimido misto de analgésico e anestésico. A dor era terrível e eu não tinha tempo: em um minuto o comprimido me daria uma pancada na cabeça e eu cairia em sono profundo. Caso acontecesse antes do próximo passo, seria o meu fim da mesma forma: sangraria até morrer enquanto dormia.

Saquei a pequena pistola injetora e, sob pressão, o líquido penetrou em minha pele em um ponto perto do ferimento. Repeti rápido o procedimento em vários outros pontos próximos das lesões ao longo da perna. O líquido, uma mistura de sangue artificial com nanorrobôs cirurgiões, injetados em uma forma de vida biológica, reconhecem o DNA e dividem-se em grupos que destroem as células que não contenham o DNA escaneado; expulsam partículas estranhas; estancam hemorragias; fecham feridas, curam hematomas, fraturas e quaisquer outros traumas. No meu caso, as maquininhas ainda captaram minhas informações no computador de bordo, aumentando a eficiência da cura. A hemorragia cessou em um minuto.

Finalizados os procedimentos e com a dor já controlada, tentei levantar, mas a fraqueza, o cansaço e o analgésico manifestaram seus efeitos. Senti tonturas, efeito combinado da perda de sangue e do comprimido, que fez meu corpo todo formigar. Voltei a sentar no fundo do buraco, ainda ensopado com meu próprio sangue. Mirei a fenda acima e não vi nem ouvi mais nada. Meus olhos se turvaram e eu apaguei.

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