Capítulo 7: Fuga inevitável

                                                      7: Fuga inevitável

– E como vamos usar os explosivos? – Liriel perguntou enquanto vestia sua roupa preta.

– Nós vamos nos misturar e chegar aos Portões Cinzentos do distrito – Perryk ia explicando enquanto colocava as bombas, grandes bolas redondas e presas por cordas, de cores negras e cinzentas com um estranho pavio – Quando chegarmos aos portões, eu vou jogar elas pra distrair e nocautear os guardas.

– Isso eu entendi – Liriel bufou de impaciência – Me refiro a acender elas.

– O Agrur vai trazer uma tocha.

            A princesa balançou a cabeça, conformada com aquilo. Já era surpreendente que tivessem conseguido produzir bombas, dez no total, em tão pouco tempo. As mãos de Perryk exibiam algumas bolhas e cortes, e ela sentiu que deveria fazer ataduras para ele.

            O próximo passo da desesperada fuga era se misturarem à multidão, mas Perryk deixou claro que eles poderiam se divertir com os outros por alguns minutos enquanto Agrur fazia sua parte, antes de fugirem. Só não podiam chamar atenção demais, a princesa principalmente, que já estaria em evidência por estar toda coberta e vestida de preto. Perryk nem tanto, mas ele optava por esconder o rosto para quando tivessem de enfrentar os guardas nos Portões Cinzentos e correr para longe, talvez se escondendo na floresta que fazia fronteira com o feudo Narghangard. E infelizmente não podiam ficar escondidos por lá, chamariam muita atenção, como Perryk disse, mas mandariam recados ao senhor daquele feudo. E este, segundo o rapaz disse, faria com que outros feudos próximos ficassem sabendo e mantivessem a guarda alta para qualquer situação e que atacassem assim que um sinal fosse dado.

            Mas que sinal seria esse, ele não disse. Liriel suspeitava que nem mesmo o rapaz sabia que tipo de sinal, talvez estivesse apenas pensando com antecedência em outro plano.

            Quando estavam finalmente prontos, Agrur se despediu momentaneamente deles para ir buscar algumas coisas que Perryk pediu, além da tocha, e ele a princesa foram se misturar à multidão. E assim fizeram, tentando não esbarrar em ninguém que carregava taças de bebidas, e mesmo eles dois acabaram se servindo de cidra que conseguiram encontrar aparte de vinhos e conhaque.

            Assim ficariam, por alguns bons momentos, antes de serem forçados à cair na realidade novamente.

                                                           ----

            Das janelas mais altas do castelo do reino, Aggrive, Makrin e Nazariv observavam as ruas com um grande desgosto. Nunca antes haviam visto tanta vulgaridade reunida, num único lugar. Como rukianos que eram, desprezavam outras culturas, e demonstrações de festejos e semelhantes lhes eram abomináveis desde que não fossem de sua própria cultura e povo. Mas, ao invés de fazer os guardas pararem tudo, prendendo os festeiros e causando uma possível revolta, permitiram que continuasse, mas com guardas disfarçados entre o povo nas ruas.

            Aquela idéia absurda e ridícula fora de Aggrive, ou assim ela acreditava. Era fato que Makrin por vezes sussurrava alguma coisa de forma intencional para manipular as ações da irmã, mas ela nunca se deu conta de que isso acontecia com uma frequência preocupante. Ela sempre achava que tinha o controle da situação em suas mãos, e em muitas vezes, ela tinha o controle de fato e era dona das próprias idéias. Mas, se dependesse dela, a festa seria encerrada com sangue nas ruas de Yongard assim que começou. Por sorte o conselheiro do rei, agora da rainha, teve sucesso em deixar no ar a idéia de espionar as pessoas na festa ao invés de um ataque declarado. Isso teria sido realmente arriscado, das as circunstâncias do humor da população, que já não engolia a história de que a princesa estava desaparecida e que isso justificava as ações violentas dos guardas da rainha. Qualquer ação que fosse além do que já acontecia teria resultado numa catástrofe, para dizer o mínimo.

            Então, os três rukianos permitiram que o povo mundano tivesse sua festinha suja, em todos os distritos, e manteriam vigilância silenciosa acima de todos os outros. E enquanto vigiavam, acertavam os detalhes de outros planos.

– Recebi o pombo com mensagens do nosso assentamento ao norte do deserto de Sazzadrav – Nazariv comentou – Zinbrar é a cidade de onde o acampamento está mais perto, e é fácil fazer negócios por lá.

– Não há uma regulamentação de comércio, não é? – Makrin perguntou.

– Não – Nazariv confirmou – É uma cidade de comércios escusos e ladrões, quase sendo totalmente sustentada por contrabando de temeperos e coisas do tipo. Por alguma ironia, a cidade não sucumbiu a si mesma.

– Hmf... – Aggrive resmungou em seu canto, desgostosa – Uma cidade de selvagens que precisam ser salvos de suas atividades imundas, tal como esses idiotas em Mekkingard.

– Paciência, irmã – Makrin falou com voz calma e condescendente – Em breve vamos ter poder para enviar missões de Yaharerg até eles, e quem sabe, no mundo todo.

– A mensagem do pombo tinha mais informações – Continuou Nazariv – O nosso primeiro regimento de fiéis chamou outros dois grupos pra começar a ocupação de Mekkingard, pelo centro do reino, Yongard. Devem chegar em poucos meses.

– Poucos meses! – Aggrive rosnou de desdém ante aquela informação – Talvez nem tenhamos poucos meses, e esses idiotas acham que temos esse tempo de lambuja?

– Irmã, tenha um pouco mais de calma, por favor – Makrin disse, o olhar de censura de sempre – Podemos mandar uma mensagem para que se apressem, mas não pense que suas necessidades estão em jogo. É o nosso plano de conquista, de invasão interna e de semear nosso povo ao redor do mundo, não um capricho seu.

– Sei disso, sei disso – Ela respondeu com mais desdém – Mas fui eu quem teve de agüentar um imbecil pretensioso no trono por todos esses anos sem ter acesso ao cofre do reino, e sua maldita peste de filha. E agora, sem aquela pestinha desgraçada da Liriel, não terei acesso! A menos que possamos recuperar a maldita extraviada.

– Os guardas irão achá-la, cedo ou tarde, minha irmã – Makrin respondeu com certa pompa, um sorriso arrogante em seus lábios surgindo devagar.

– E por que tem tanta certeza disso? – Ela perguntou, incomodada.

– Ora, digamos apenas que Nazariv fará um trabalho extra por agora, não é, rapaz?

– Com certeza... – O filho de Aggrive respondeu enquanto saía do local, indo se vestir ocultando completamente suas feições.

            As roupas eram típicas daquele povo, daquela terra, e Nazariv torceu muito seu nariz adunco para elas, mas teve de vesti-las mesmo assim. O rosto estaria oculto por um lenço branco e azul, sem nenhum desenho exagerado ou exposto demais. Levava consigo uma faca, oculta em sua bota alta e uma garrafa contendo uma bebida de cheiro forte que era capaz de apagar qualquer pessoa que inalasse seu gás, espesso como fumaça de fogo, mas adocicado como o cheiro de açúcar sendo derretido.

            Nazariv se encaminhou aos portões do castelo, indo para a direção do Distrito Carmesim. Lá, com sorte, encontraria alguma garota bêbada o bastante para não questionar suas ações, longe dos olhares da mãe.

            E depois, é claro, faria seu trabalho.

                                                            ----

            Perryk procurava por Altruz e Grivian sem perder a princesa de vista, que estava dançando ao redor da grande fogueira acessa perto da fonte da praça do Distrito Cinzento. Queria ao menos explicar ao seu guardião porque desaparecera por tantos dias, e que teria de sumir por mais um tempo, sem nem saber se poderia voltar algum dia. “Eu poderia simplesmente mentir que não tive envolvimento com ela, se conseguir manter minha identidade em segredo e resolver esse caos todo, mas...”, ele pensava enquanto andava ao redor da festança e do último lugar onde vira Altruz e Grivian, “não, eu tenho de ser minimamente honesto, ao menos comigo mesmo. Não tenho nem certeza se posso confiar na princesa, pois eu sei que ela fez alguma coisa pra ter relações comigo, e no fim das contas é minha culpa por me deixar tão a vontade na presença dela”.

            Ele andou, andou e andou até esbarrar em Grivian, que se irritou e o reconheceu de imediato, mas foi forçada a ficar calada pois o rapaz colocou a mão na boca dela, fazendo-a emitir sons abafados e estranhos.

– Grivian, me fala onde é que está o Altruz...

– Ele foi pra perto do grande barril de cerveja preta que trouxeram da adega da pousada Tordo de Prata – Para responder, Perryk teve o bom senso de tirar a mão da boca da colega – Mas, droga, molenga, onde é que você esteve? E como é que aparece assim do nada?

– É uma longa história, talvez o Altruz te conte, mas eu não tenho muito tempo a perder, okay?

– Isso tem a ver com suas crises de raiva e força anormal?

– Sim, em partes, mas não tenho tempo pra explicar. Como eu disse, o Altruz vai explicar. Agora, pra que lado?

– Aquele – Ela apontou, e se virou para encará-lo, mas Perryk já havia sumido.

            Perryk andou até achar o distinto homenzarrão com uma grande caneca de cerveja preta na mão, rindo de uma piada que seus colegas contaram e se divertindo. Quando o viu, sorriu de imediato, mas os olhos de Altruz exibiam genuína preocupação.

            Com um gesto do rapaz, Altruz seguiu-o até um local minimamente afastado de ouvidos curiosos ou qualquer desavisado que pudesse ouvir mais do que deveria.

– Garoto! Onde se meteu? – A voz do ferreiro soava um pouco pastosa devido ao consumo de bebida – Eu achei que você é quem tinha seqüestrado a princesa Liriel!

– Em partes, é verdade... – Perryk respondeu com o olhar baixo.

– Me explique tudo, garoto – A voz de Altruz mudou de imediato ao ouvir aquilo. O tom autoritário que raramente usava estava forte e claro, e qualquer traço de bebedeira que ele tivesse sumiu graças à sua perspicácia – Me explique o que aconteceu e talvez eu não rache o seu crânio.

– É complicado, eu vou resumir.

            E ele explicou. Resumido, mas explicou, e contou a coisa toda de forma que não ficassem dúvidas à Altruz. O ferreiro ouvia tudo, a lucidez em seus olhos negros ficando mais e mais clara e atenta às palavras do rapaz. Mas, ao invés do que Perryk achava que tivesse prendido a atenção do ferreiro, outra coisa saiu de sua boca quando ele fez uma pergunta.

– Você quebrou uma caneca com as mãos nuas?

– Uh... Sim? – Perryk respondeu, incerto.

– O que mais? Você sente sua pele como impenetrável? Enxerga melhor no escuro? Consegue ver corações batendo?

– Como é... ?

– Apenas me diga, Perryk ­– Altruz pediu, a urgência em sua voz alertando ao rapaz de que algo sério estava em risco.

            O rapaz pensou naquela pergunta estranha. A pele, realmente, não se feria quando naqueles estados de fúria e força absurda, tanto que quando deixou as crianças baderneiras baterem nele, não ficou com cortes, ossos feridos, marcas na pele, sequer sentiu os golpes que recebeu. Mas enxergar melhor no escuro? Isso ele não tinha certeza, especialmente porque onde estavam havia boa luminosidade e não sentia a necessidade de procurar algo no escuro. Mas... Ver corações batendo? Que tipo de habilidade estranha era aquela e de onde Altruz tirou aquilo?

            Mas a impaciência do ferreiro o assustava, e decidiu tentar, olhando na direção da fogueira, para Liriel, que dançava alegremente ao redor de uma caixa decorada com outras garotas. Bastou um segundo de concentração para que sua mente e olhos fossem bombardeados pela escuridão pontilhada de estrelas vermelhas pulsantes. Quando voltou a si, viu: ele enxergava o coração das pessoas, batendo, bombeando sangue pelo corpo em linhas vermelhas macabras, e o som dos tambores que ouvia eram todos os batimentos cardíacos que circulavam por ali.

            Altruz viu a expressão de surpresa no rosto do garoto, balançando a cabeça como se concluísse algo há muito esperado.

– Chegou a hora, então.

– Espera, o que? – Perryk perguntou.

– Vai aos Portões Cinzentos, não é?

– Vou, mas do que você tá falando?

– Entenda, garoto: seus pais sabiam que isso ia acontecer, cedo ou tarde. E quando deixaram você, comigo, deixaram também uma coisa que me disseram de que você iria precisar, caso o momento chegasse. Eu acho que chegou. Eu vou lá buscar, e te ajudar na sua fuga, então pegue a princesa, tire-a daqui, e volte quando tiver despertado.

– Espera, o quê? – Mas Altruz já estava correndo de volta para sua casa com seu corpo musculoso scolejando, deixando Perryk confuso e olhando pela multidão para achá-lo e perguntar o que era aquela coisa toda. Acabou esbarrando num estranho, que o olhou com certo receio – Desculpa, eu não estava olhando por onde ia.

– Tudo bem – Disse o estranho, contrariado – Me diga pra que direção fica o Distrito Carmesim, eu acho que me perdi.

– Ah claro... – Perryk ia responder de imediato quando notou duas coisas: a primeira era que ele escondia o rosto, tal como Liriel fazia com suas roupas pretas. Mas usava um estranho lenço, azul e branco, ao redor da boca. A segunda coisa precisou de um pouco mais de concentração: os batimentos cardíacos dele estouravam como pedras sendo chacoalhadas dentro de uma caixa de madeira, o que seria comum naquele ambiente festivo, mas algo alertou ao rapaz que aquele era um batimento cardíaco de raiva. Perryk precisou pensar rápido e deu uma direção errada de propósito – Você segue pela calçada cinza que vai em direção ao sul, aí você vira na padaria do Pônei Gordo.

– Obrigado – E se foi.

            Aquilo pareceu estranho, mas Perryk estava em estado de alerta às descrições de Liriel: branco e azul eram as cores da rainha, o emblema do cão azul sobre fundo branco. Aquele lenço, então, parecia muito suspeito àquela altura. “Guardas disfarçados, eu faria a mesma coisa, mas não tão óbvio”, ele pensou, enquanto se aproximava de Liriel com pressa.

            Quando conseguiu chamar a atenção dela puxando-a pelos ombros, a princesa notou a apreensão em seus olhos.

– O que aconteceu?

– Guardas – Ele disse – Disfarçados, no meio das pessoas. Vamos.

– Portões Cinzentos?

– Sim.

– E o Agrur?

– Deve estar lá, e Altruz também.

– O quê? Por quê?

– Te explico quando chegar, agora vamos.

                                                                       ----

            Alguns minutos depois, andando o mais depressa que puderam, Liriel percebeu que uma luz de tocha seguia a ela e Perryk ao longe, de forma irregular como se fosse um grande vaga-lume. “Só pode ser o Agrur”, ela pensou, enquanto andava ao lado de Perryk para chegarem aos Portões Cinzentos. Ele explicou brevemente o que acontecera, quando foi tentar se despedir de Altruz e acabou recebendo revelações pela metade de um jeito agourento. Os pais dele sabiam que sua madrasta tentaria usurpar o trono de Mekkingard? Isso era muito bizarro, mas ela suspeitava que a “premonição” deles se referia aos estranhos poderes que o rapaz demonstrava vez ou outra.

            Fosse como fosse, o guardião do rapaz, o ferreiro, sabia de algo que nunca dissera a Perryk, e agora, dizia que traria algo para ajudar na fuga, ou que quer que fosse.

            Quando, enfim, chegaram aos Portões Cinzentos, havia pelo menos seis guardas por ali, que ignoraram-nos e voltaram a beber de seus cantis, provavelmente algum licor destilado que Aggrive gostava e disponibilizava aos seus subordinados. Os dois se esconderam atrás de um beco, com caixas e caixas empilhadas de forma irregular pelo canto da construção (parecia ser uma loja) que lhes davam brechas por onde podiam enxergar. Liriel olhou para cima e notou que Agrur estava muito acima deles, esperando com sua tocha flamejante para que pudesse descer. Não demorou muito para que até Altruz chegasse, encontrasse os dois e ficasse olhando-a com certo receio.

– É ela, garoto? – Perguntou o ferreiro.

– É, é sim – Perryk respondeu – É a princesa Liriel Feskridt.

– À seu dispor, alteza – Altruz tentou uma reverência desajeitada, sentindo-se pequeno de repente.

– Não precisa disso, senhor – Liriel se sentiu sem jeito perante aquela demonstração de respeito – Seus trabalhos são ótimos, aliás.

– Agradeço pela gentileza, princesa... Mas... Era você com quem esbarrei na noite em que saí para beber?

– Sim, eu mesma – Liriel se encolheu um pouco de vergonha.

– Eu devia ter imaginado... Aquela moeda de ouro que achei com o emblema do leão solar só podia ter vindo do castelo...

– Podemos, por favor, nos concentrar aqui? No plano? – Perryk pediu com grande impaciência – Altruz, você disse que tinha algo que meus pais deixaram pra você no dia que alguma coisa maluca acontecesse comigo.

– Sim, sim, é claro – E o ferreiro puxou de sua bolsa uma caixa de madeira, entalhada com motivos tribais, e pintada com cores que pareciam ser vermelhas e negras. Junto com ela vinha um pedaço de papel dobrado e uma esfera vermelha.

– O que é... – Perryk ia perguntar quando Altruz abriu o papel.

– Me disseram, seus pais – Ele começou a explicar – Eles me disseram que você teria de seguir esse mapa pois há algo que eles deixaram para trás, pra você. Você teria de seguir certas trilhas até chegar num local, designado no mapa. Quando chegar lá, vai achar a chave que abre a caixa. A esfera, por outro lado, não sei para que serve.

            Enquanto conversavam, Agrur desceu devagar para o local onde estavam escondidos, e observou silenciosamente enquanto os três terminavam de acertar aquela situação.

            Quando parecia que não havia mais nada a dizer, ele se pronunciou.

– Prepare as bombas, Perryk.

– Certo... – Ele começou a buscar pelos projéteis negros de sua bolsa de couro com grande pressa – Ah, Altruz, o Agrur fala.

– Eu sei, ele me contou quando eu estava buscando as coisas em casa. Fico feliz de saber que você tem uma faca pra se defender e defender a princesa.

– Que ótimo... – Perryk bufou, entregando os explosivos para o ratagarto enquanto ele os acendia um a um.

– E agora? – Liriel perguntou, ansiosa, vendo aquelas coisas fumegarem de forma perigosa.

– Isso – Respondeu o rapaz de um jeito medonho.

            Para o horror de Liriel, Perryk enfiou as bombas acesas na sacola, junto com todo o resto dos explosivos que tinham, e arremessou a sacola de couro na direção dos Portões, surpreendendo os guardas que não entenderam o que era aquilo até ser tarde demais. Houve não uma, mas várias explosões que assustaram e nocautearam quase todos os guardas, a fumaça fedorenta que exalavam se espalhando pelo ar como gás tóxico e causando crises de tosse dolorosa de se ouvir. Era quase como se os guardas estivessem tentando vomitar seus pulmões, e pensar nessa imagem horrenda causou calafrios de nojo em Liriel.

            Infelizmente não teve muito tempo para pensar nisso, pois Perryk agarrou sua mão, indicando com a outra mão livre de que deveria tampar o nariz e a boca com o braço, e fechar bem os olhos, confiando nele para guiá-la até a saída. Quando assim o fez, ele disparou correndo, com Agrur seguindo os dois e Altruz observando-os escondido até sumir pelo beco para voltar para casa.

            A princesa sentiu seu corpo passar perto de alguns corpos, a fumaça quente e venenosa lhe dando coceiras pela pele protegida por tecido leve, e seus pés então sentiram a mudança de terreno, de pedras planas e bem cortadas numa calçada, para terra macia, com grama e pedrinhas aqui e ali. Continuaram correndo com os olhos fechados e rosto protegido por mais alguns metros, até pararem de ouvir as tosses dos guardas, crendo estar em segurança atrás de uma grande árvore larga como uma torre.

            Se sentaram, ofegantes, recuperando o fôlego e tentando ouvir quaisquer sons de caçada ou perseguição que pudesse representar perigo, e Agrur oferecendo a eles seus cantis de água.

            E, infelizmente, para o desânimo de ambos, eles ouviram.

                                                                       ----

            Quando Nazariv percebeu que estava indo em direção ao lixão da cidade, ficou furioso. A tal padaria não estava ali, e se existia uma padaria com aquele estúpido nome, estaria em outro lugar. O desgraçado que esbarrara nele dera informações erradas de propósito. Chamaria os guardas, os mandaria para o Distrito Cinzento e faria com que o miserável se arrependesse daquilo assim que pusesse as mãos nele.

            Mas não teve tempo, pois quando ia em direção a um guarda que ele reconheceu pelas cores brancas e azuis em um lenço que usava no braço, ouviu o barulho. Parecia um pequeno trovão, abafado, mas ecoante, e vinha exatamente da direção do Distrito Cinzento, do extremo, que só poderia significar dos Portões. Aquilo parecia errado, algo muito fora do normal pra uma comemoração, então tratou de falar com o guarda para que alertasse todos os outros guardas no local e que fossem para lá o mais rápido possível para a direção de onde o som de trovão foi ouvido.

            Mas Nazariv preferia voltar ao castelo e alertar a mãe e o tio, pois aquilo parecia errado. Com certeza tinha relação com a princesa fugida, e o tal estranho que dera informações erradas...

– Talvez ele tenha algo a ver com a fuga da princesa – Nazariv concluiu – Eu me lembro das feições do rosto dele, ou pelo menos o que deu pra ver. Tio Makrin vai ficar feliz de saber disso.

            Chegando novamente ao castelo, reportou tudo o que acontecera à mãe e tio, que se enfureceram com a situação, mas relaxaram ao saber que o rapaz mandou guardas na direção do estranho ocorrido.

– Que seja resolvido logo – Makrin falou, a voz cansada de falhas – Eu vou mandar pombos pra vigiar as passagens daquela direção, e teremos notícias em breve.

– Tenha santa paciência, Makrin! – Aggrive retrucou com impaciência – Pombas, ora essa! Deveria mandar os morcegos que levei tanto tempo reunindo no sótão da torre norte!

– Se você foi capaz de treiná-los, você mesma fará uso deles, e use a sua magia com eles, não dependa da minha – O irmão ralhou com Aggrive, deixando-a furiosa.

– Se não fosse por mim, você não teria acesso a todos os recursos desse maldito castelo e nunca teria acesso aos livros que aumentaram seu poder – Aggrive respondeu com o rosto vermelho de raiva.

– Será que podemos, por favor, parar com essa estupidez infrutífera e voltar ao que estávamos fazendo aqui? – Nazariv interrompeu a ambos, entediado com aquela discussão – Façam cada um a parte de vocês, investiguem o paradeiro da princesa. Eu vou trabalhar em encontrar o desgraçado que me deu informações erradas, eu tenho quase certeza de que ele está envolvido nisso e, se por alguma sorte a princesa escapou depois da explosão, é quase certo que vamos encontrá-lo também.

– E como chegou a essa conclusão, meu jovem? – Makrin perguntou com súbito interesse.

– É simples: que outro motivo um morador de Yongard, um nativo, teria para dar informações erradas pra alguém?

– Há a possibilidade de ele ter reconhecido as cores do seu lenço, usado para ocultar seu rosto – Aggrive comentou, sentido um pouco de culpa por isso.

– O que está feito, está feito – Mekrin suspirou – Agora podemos caçar a garota e não vamos assegurar que ela não seja ferida.

– Afinal... – Aggrive falou, a voz baixa enquanto saía – Aqueles que traem o reino deverão ser executados.

            A última coisa que Makrin ouviu da irmã naquela noite foi sua risada, ecoando pelos corredores como um cacarejo bêbado.

            As coisas iam de mal a pior para a casa de Madrolan, e a caçada pela princesa começara.

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