Civilização dos monstros
Civilização dos monstros
Por: Pietro Pendragon
Capítulo 0

Introdução

Aos que estão a ponto de ler essa história, que fique claro. É uma obra de fantasia, com pequenos detalhes referentes ao mundo real. Muita coisa aqui foi usada como método narrativo, meramente usando-o como parte da realidade, mas não é real.

Se você, leitor, é incapaz de discernir ficção do mundo real, se você se ofende com qualquer coisa, se pretende ler para encontrar coisas “ofensivas”, “politicamente incorretas”, não leia. Deixe os outros se divertirem em paz.

Se está para ler esse livro com o intuito de passar o tempo, de apreciar uma fantasia, ótimo. Divirta-se. Se não, você não é obrigado a ler, sequer a comprar.

Aos que ficam, aproveitem.

Bem vindos à civilização dos monstros.

                                                            Capítulo 0

                         

O que acontece na escuridão, todos ficam sabendo

                              (Aqui não é Las Vegas, meu filho)



            O militar aposentado Gustav Boskonovich está fugindo. Como tudo isso começou, ele não tem idéia, só se lembra de que saiu de casa para ir ao mercado, voltou com as compras, e decidiu ir ao bar para divertir-se com alguns amigos que o convidaram horas mais cedo, no bar Presas Velhas. E conversa vai, conversa vem, um estranho entra no bar, não apenas “estranho” por ser novo e ninguém o conhecer, mas sua aparência, o seu cheiro denota alguma coisa errada com ele. O militar aposentado ficou observando, curioso, seu instinto de alerta gritando internamente. Os anos de militar tornaram-no uma máquina de identificação de problemas, e também, sua natureza, sua raça, o ajudaram a identificar problemas pelo faro.

            Sim, sua raça. O líder das forças armadas e do exército do país Nova Selene é um lobisomem. Não deveria ser surpresa, muitos lobisomens entram para o exército, há ainda muitos conflitos a serem resolvidos pelo bem da humanidade feral. E, agora, tecnicamente aposentado do exército, seu cargo político do ministério militarista de conflitos nacionais e internacionais, lhe garante certas regalias, como folgas, prestígio, lugares de honra na sala de cinema… E ele gosta desse reconhecimento, quase perdeu a visão durante uma guerra de pequena escala na região onde, anos atrás, era conhecida como Turquia, e hoje é apenas chamada de Ninho dos Mortos 1, pois não bastava apenas armas de fogo e bombas elétricas para destruir os ghouls. Armas biológicas foram necessárias, e elas fizeram muitos dos soldados, bons orcs, elfos, e mesmo homens-rato, adoecerem por tempo indeterminado. Alguns faleceram, mas outros ficaram deficientes. Não foi o caso de Gustav Boskonovich.

            Agora, sem saber como, Gustav está fugindo. Sim, fugindo, e essa é uma situação incomum a um lobisomem mestre de treinamento militar, de sangue russo. Ele se lembra vagamente do estranho, ele vestia uma completamente preta, fosca, com cinza que luzia como couro; o estranho também vestia um capuz, bizarro, que o cobria deixando apenas uma nesga do queixo aparecendo. Ele também não tinha um cheiro natural, parecia vagamente humano, mas era praticamente impossível precisar, ele exalava um odor pungente das roupas que, aos poucos, fez os lobisomens dentro do bar tossirem, espirrarem e vomitarem, a maioria acabou hospitalizada. Mas Gustav não podia pensar neles. Quando todos ao redor estavam debilitados e “fora de combate”, o estranho jogou uma esfera no chão, que se abriu tal como um brinquedo de mola, expelindo mais daquele cheiro, numa nuvem rosada e pútrida, e como se isso não bastasse, ela explodiu. Era como uma granada, mas funcionava num mecanismo de dispersão: pó de prata. Isso deixou todos os lobisomens presentes doentes, e o velho lobisomem militar estava realmente atordoado com tudo, não pôde lutar, precisou fugir, correr para fora do bar.

            Imaginando que os seguranças ogros do local fossem dar cabo do pretenso terrorista, ele pensou em correr para o hospital mais próximo. Entretanto, o estranho estava atrás dele, caçando-o. Gustav não podia farejar, seu nariz sangrava livremente, impedido de sentir cheiros por causa do odor nojento e irritante que o estranho exalava e havia liberado com aquela mini bomba de dispersão. Sua visão estava turva, por causa da fumaça, irritando seus olhos e trazendo a memória a situação de armas químicas no Ninho dos Mortos 1, e agora os efeitos das armas químicas voltavam com tudo para minar-lhe a visão. E ele corria, corria o melhor que podia, mesmo com os músculos arranhados e feridos pelas partículas de prata. Seus pulmões queimavam a cada respiração, devido à prata que ele havia inspirado. A situação estava realmente ruim.

            Durante a fuga, ele imaginou que, a essa altura, a polícia teria sido notificada. Infelizmente, não havia esperanças de que ele pudesse ser encontrado. Ele estava correndo na direção oposta a cidade e cada vez mais longe das áreas “decentes” e civilizadas, num lapso de instinto de fuga, que acabou deixando-o irritado por ter sido tão imprudente. E, ele poderia jurar que agora, no bar, o alvoroço seria enorme, e pelo menos umas dez pessoas lá estariam ligando para a polícia.

            “Quando eu pôr as mãos nesse metido a terrorista aspirante a Van Helsing, eu vou arrancar o fígado dele, isso se a polícia não pegar ele, isso se chegarem pra me ajudar…”, ele resmunga, enquanto corria. Uma vez lobisomem, sempre lobisomem. Você não pode simplesmente sentir medo de algo, sendo da raça dos licantropos. A fúria queima em seu peito, uiva em seus sonhos, sua natureza exige coragem. Mas não se pode fazer nada quando o inimigo conhece suas fraquezas. Entretanto, prata é a mais comum, aquele cheiro é que era a novidade. Nunca antes Gustav havia imaginado que algo assim existisse, e, portanto, foi pego “desarmado”.

            Sua fuga levou-o a uma região pobre da cidade, e ele tinha de esquivar-se de detritos, pedaços de madeira e concreto espalhados pelo chão, pulando latas de lixo e se fazendo valer de suas habilidades acrobáticas sobre-humanas. Contudo, o estranho o seguia. Um lobisomem, por ter no mínimo, a força de 30 homens, consegue correr mais rápido do que 30 homens também. Uma velocidade dessas pode chegar, a aproximadamente, 50 quilômetros por hora, com direito a arrancadas de energia na corrida que fazem inveja aos melhores carros já feitos. Mas esse estranho era tão rápido quanto. Talvez fosse um vampiro, é claro. Vampiros e lobisomens raramente se deram bem, mas já faziam mais de vinte anos desde o último grande conflito, e agora, havia uma relativa paz. As duas raças rivais apenas evitavam contato, e só.

            Ele não estava pensando bem, seu cérebro estava falhando, e começou a tropeçar com mais frequência. “Isso é mau… Muito mau”, ele pensava, enquanto corria e ofegava, sentindo dores como se estivesse queimando de dentro para fora. E durante a corrida, o estranho atirava. Ele estava armado do que parecia ser uma pistola. 40 com munição para perfurar kevlar, Gustav presumia, pelo som dos tiros. Mas algo o enervou nisso, pois uma arma com balas comuns não faria efeito. “O filho da puta deve estar usando balas de prata…”, ele concluiu. E prosseguiu com sua fuga.

            A essa altura, o velho lobisomem imaginava que alguém teria chamado as autoridades, a polícia, as forças armadas do exército, qualquer coisa: ninguém toleraria um ataque terrorista desses, de forma tão fria e calculista. Ele mesmo o teria feito se não tivesse perdido o celular durante a fuga descontrolada.

            Ainda fraco, Gustav acabou se enfiando numa trilha de um terreno baldio, e deu de cara com uma fábrica abandonada, e enquanto parava um pouco e ouvia, percebeu que tinha obtido uma vantagem contra seu caçador misterioso. O velho lobisomem permitiu-se respirar, tentar deixar seu vigor de cura agir sobre seu corpo. Mesmo com seus 65 anos, o velho lobisomem militar era uma montanha de músculos e força: seu porte físico fazia inveja nos moleques humanos que ficavam a ver vídeos ridículos de celebridades desmioladas para tentar ganhar massa muscular. Mas não estava funcionando: a prata minou seu fator cura, sobretudo a carga de stress na corrida descontrolada e na falta de tempo para recuperar-se.

            E justamente quando começava a sentir-se bem, ele ouviu o som de um pente sendo carregado numa arma, e voltou a correr. Pulou por cima da enorme cerca, indo em direção ao labirinto abandonado das áreas internas da fábrica “fantasma”, imaginando que seu inimigo perderia tempo cortando a cerca, escalando. Errou: o assassino pulou por cima dela tão facilmente quanto ele, e agora, o lobisomem militar precisava contar com a sorte. Sorte era tudo o que teria, enquanto ele derrubava uma porta com um golpe custoso de seu ombro esquerdo, erguia a porta amassada e usava-a como um escudo improvisado, e já ouvia os tiros atravessando a folha de alumínio grosso da porta velha.

            Quando sentiu a aproximação do inimigo a pelo menos cinco metros, decidiu que precisava lutar. Já era hora, estava encurralado e não tinha mais para onde fugir. “Se vou morrer, vou arrastar esse saco de bosta comigo pro inferno!”, Gustav pensou, entusiasmado com a possibilidade de matar alguém que cometeu crimes tão hediondos contra a paz. E assim que o assassino se aproximou o suficiente de um golpe, o lobisomem usou a porta amassada e esburacada como um porrete plano e improvisado, acertando o lado direito do corpo do oponente. Ele precisou parar de correr e se defender, virando instintivamente o corpo para dar às costas, afinal, ele precisava dos braços inteiros.

            Só que não deu muito certo para o lobisomem: seu algoz já estava recuperado e tirava da bainha do cinto uma longa faca que brilhava cruelmente na pouca luz da lua. Era lua crescente, não oferecia muito conforto, mas esse era o signo lunar de Gustav. Talvez ajudasse se houvesse mais feixes de luz, e poderia ter sido mais útil se as nuvens não o tivessem impedido de vê-la lá fora, durante sua fuga. Agora, era matar ou perecer em vergonha.

            O misterioso assassino chutava, socava, brandia a faca, em movimentos treinados do que parecia uma arte marcial, e a cada soco ou chute bem executado, faziam Gustav abrir sua guarda, liberando o estranho para dar golpes de faca, que cortavam a carne do lobisomem, queimavam, e o faziam urrar de dor. Tal sofrimento acabou por fazê-lo tombar de joelhos, exausto, vencido. Mas ele tinha de saber o por quê daquilo.

– Me diga… – Gustav ofegou, quase sem folego algum – Me diga, seu desgraçado… Por quê…?

            O estranho o olhou. Agora, era possível ver seu “rosto”: uma máscara de combate tático, com óculos infravermelho protuberantes como olhos de mosca, sua boca e maxilar visíveis eram pálidos e pareciam cobertos de linhas negras sob a pele. Ele moveu a boca numa expressão de escárnio, e depois sorriu, cuspindo na cara do velho lobisomem.

– Por que? Ora, que pergunta… Porque eu, nós, podemos fazer isso. E você não é o primeiro, tampouco o último… Voltarão para seus buracos, logo, logo…

            Aquela voz parecia esquisita, o lobisomem imaginou. O som era cortado e chiado, como uma gravação ou ligação, e o estranho mal movia os lábios. Só que Gustav não ia deixar barato tais insultos.

– Ora, venha cá lamber meu saco peludo, seu desgraçado filho da… – Sua voz foi interrompida, por um profundo corte na garganta, fazendo-o gorgolejar com o próprio sangue enquanto se afogava com sangue e bílis e morria.

            Horas mais tarde, as equipes de polícia investigavam um enorme corpo de licantropo no centro da cidade, próximo ao memorial de Uther Fenrirsson. O antigo herói de guerra era uma lenda na cidade, e seu filho sentia orgulho da imagem do pai. Agora, a praça com sua estátua, estava maculada com uma morte. O corpo estava sendo investigado pelo médico legista e investigador, John Loyd Watson, um jovem lobisomem com seus 35 anos. Subiu rápido na carreira, graças ao seu raciocínio rápido. À sua esquerda estava o delegado Dexter Pajarambe, um homem símio enorme cheio de músculos e de expressão carregada, devido aos problemas de ser o delegado. À direita de John estava Roy Terrence, o chefe de polícia do departamento do quinto distrito, um orc grande de pele morena e cabelo comprido, preso em duas tranças ao estilo nativo americano. Os três avaliavam a situação, enquanto os policiais Michael e Alejandro, dois lobisomens raríssimos da raça dos extintos “lobos da Tasmânia”, estavam andando ao redor, recolhendo o que quer que se parecesse minimamente com pistas do ocorrido.

– Isso é… Assustador – John disse, de repente, surpreendendo os colegas de trabalho – Vários cortes de faca, algumas perfurações minúsculas na pele… Resíduos de prata espalhados pela pele…

– Prata? Tem certeza? – O delegado perguntou, curioso – Quem em sã consciência faria uma coisa dessas?

– Concordo com ele – Roy disse, entrando no pequeno debate – Estamos no século vinte e um, ninguém que tivesse amor pelos órgãos internos cometeria um crime tamanho… Usar prata, a menos que seja em casos extremos como fúria descontrolada, é um crime.

– Concordo com ambos, Dexter, Roy, no entanto – John respondeu, tranquilamente, apesar do medo nos olhos – As marcas de cortes e ferimentos apresentam um estado de queimadura impossível de não se reconhecer, já vi várias assim…

– Se refere aos grupos radicais que caçam lobisomens? – Roy questionou.

– Precisamente, Roy. A brutalidade das marcas, isso não parece coisa de um grupo desordenado e maluco, como os KKK dos humanos… Não, isso parece uma eliminação calculada.

– Está sugerindo que pode haver uma relação com o assassinato de Maximilliam De Laroux há cinco meses? – Dexter perguntou, agora realmente interessado.

– É o que parece. Não posso supor nada a respeito daquele caso, eu não estava envolvido. Mas vou inspecionar o cadáver, ou o que restou. Como foi mesmo que morreu o vampiro?

– Uma coisa horrível, estou dizendo: alguém usou uma atiradeira de palitos feitos de carvalho, grossos como pregos, depois usou uma bomba de alho, li os relatórios da necrópsia. Depois, pra encerrar a morte, o coitado foi afogado na tal “água benta” – Dexter respondeu, fazendo estranhas caretas. Talvez nojo, surpresa, difícil dizer. Em seus 30 anos de carreira, nunca antes vira algo assim, apesar da constante crueldade de casos anteriores que ele já enfrentou pessoalmente.

– Assustador… – Roy balançou a cabeça, desconsolado – Então, estamos aqui, analisando um cadáver de lobisomem, que, segundo uma análise detalhada, era o ministro militarista dos conflitos nacionais e internacionais, Gustav Boskonovich, de 65 anos, e que esse assassinato está relacionado ao do vampiro de 300 anos Maximillain De Laroux, um rico e influente exportador de perfumes. Por quê?

– É isso, Roy, que eu pretendo descobrir – John disse, com uma certeza que encorajou os colegas de trabalho.

            Naquele momento, os jovens policiais voltaram, trazendo um estranho pedaço de papel muito dobrado. E Alejandro disse:

– Encontramos isso aqui, estava escondido num monte de tecido que, presumo, foi cortado da roupa da vítima. Nós resolvemos trazer aqui, para que vocês vissem.

            Agradecido, John pegou o papel e, entendendo que fosse um bilhete, desdobrou-o várias e várias vezes, até que deu de cara com uma carta, um aviso, escrito num formato poético e doentio, com o sangue do lobisomem falecido:

Rosas são vermelhas

As violetas vão ficar enegrecidas

A impureza de sua sujeira será expurgada

Minha fúria será para sempre lembrada

A nossa velha glória voltará a reinar

Quando sua corja profana queimar

            Roy respirou fundo quando leu aquilo, depois de John lhe passar o papel. Realmente, assustador, mas não podiam fazer mais nada. E infelizmente, enquanto eles investigavam, os “abutres” da mídia já estavam circulando tudo, voando aqui e ali, com câmeras, lanternas de grande alcance, filmando tudo. “A essa altura, a família dele já sabe do acontecido, e o alto escalão do governo, também…”, Roy ponderou, irritado. Odiava ficar exposto, especialmente por jornalistas sensacionalistas, mas não podia fazer muita coisa. Enquanto olhava para cima, só percebeu o mal estar de John quando este apoiou-se em seu ombro, tonto.

– Pelos deuses, homem! O que há com você? – Ele perguntou, preocupado.

– Há um outro cheiro, muito fraco, mas forte o bastante pra me fazer passar mal por ficar exposto a ele tanto tempo… – John respondeu, dando ofegadas e parecendo que ia vomitar.

– Venham, vocês, vamos levar John daqui e esperar o caminhão do necrotério chegar. Michael, ligue para a família dele, vão precisar ser fortes, para organizar o velório…

            Michael aquiesceu, e Roy e Dexter levaram seu colega debilitado dali. Mal sabiam eles que, aquele corpo do velho lobisomem militar, ainda seria apenas um dentre vários. Só que não podiam fazer nada, não agora. Com uma última olhada para a estátua de Uther Fenrirsson, John respirou fundo e deixou-se conduzir para longe daquele cheiro venenoso. Seria uma longa noite de trabalho.

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