As folhas do Outono
As folhas do Outono
Por: Mikaela Saraiva
30 de Setembro de 2013

— Boa noite, meninas!

            O ar encheu-se com o doce Calvin Klein que entrou inesperadamente. As atendentes mais velhas, sorridentes, levantaram a cabeça, ansiosas para ver a jovial expressão do mais novo e simpático enfermeiro do hospital. Não que ele fosse o exemplo exímio da beleza grega ou do charme hollywoodiano, visto que não possuía nada de exuberante em sua aparência simples. Entretanto, a amabilidade que emanava e sua alegria quase surreal faziam-nas suspirar pelos corredores.

            — Boa noite, Adriano! — disseram em coro, amistosas, perdendo o mau-humor ocasionado por mais uma noite em plantão.

            O jovem sorriu e seguiu para a ala dos enfermeiros, pronto para pôr seu uniforme e cuidar dos enfermos na madrugada, atividade que realizava com satisfação e esmero. Trocou-se rapidamente e foi fazer a visita de rotina nas enfermarias e apartamentos para a avaliação dos pacientes.

            Era aquele cuidado humanizado que tornava Adriano o enfermeiro mais querido do hospital. Tinha somente vinte e seis anos, um recém-formado na área da saúde e um novato no local. Apenas ele conseguia exalar simpatia e doçura até o final da jornada de trabalho. Com apenas um sorriso, conquistava qualquer um.

*

            — Uma chamada, Adriano. Quarto 706. Paciente portadora de HIV com pneumonia.

            O rapaz deu uma rápida checada no prontuário, pegou os remédios na bandeja e dirigiu-se para o apartamento indicado. Deu rápidas batidas na porta e entrou. O espaço estava parcialmente escuro, iluminado apenas pelo televisor e pela iluminação das ruas, que entrava furtivamente pelas venezianas. Procurou pela paciente com o olhar e encontrou-a próximo à janela, observando com atenção a noite pelas frestas da cortina. A cadeira para acompanhantes permanecia vazia, indicando a completa solidão daquela enferma. Cumprimentou-a em um murmúrio, enquanto punha a bandeja na mesa que ficava ao lado do leito hospitalar:

            — Boa noite.

            A paciente virou a cabeça para observar os remédios. A luz da televisão incidiu sobre a fisionomia daquela desconhecida, sem, entretanto, revelar muitos detalhes. Adriano pôde, porém, ter um vislumbre dos cabelos negros, medianos, que lhe emolduravam a face encobertada por uma máscara branca e da franja longa que descia pela sua fronte, seguindo para o lado esquerdo do rosto. Viu, entretanto, o corpo esquálido escondido pela delicada camisola de estampa floral e, constatou quão apática a enferma estava por conta do mal contraído.

            — De novo? — o timbre denunciou o cansaço e o enfado que as constantes visitas dos enfermeiros a causavam.

            — Sim — respondeu, inserindo a medicação na seringa — Não podemos fugir da sua prescrição, não é mesmo? — e, terminando de ajeitar seus instrumentos, concluiu — Poderia se sentar aqui, por favor?

            A enferma suspirou, fazendo com que os cabelos negros balançassem. Sentou-se em sua cama, estendendo o braço já furado pela agulha que transferia o soro, enquanto punha a franja para detrás da orelha. Silenciosa, limitava-se a somente observar o remédio sendo injetado. Olhava de maneira curiosa a pressão que o enfermeiro fazia no êmbolo da seringa, o líquido transparente violando suas veias. Adriano sorriu com o olhar incisivo dela e, almejando quebrar o silêncio, perguntou:

            — Por que está acordada a essa hora?

            — Insônia. — ela respondeu imperturbável — Não consigo descansar neste hospital.

            — Isso não é de se admirar, acredite. — o enfermeiro verteu seu olhar para a paciente — Mas logo, você estará fora daqui, tenha certeza.

            Ela deu de ombros.

            — Que bela maneira de se comemorar um aniversário... — afirmou, rindo de forma irônica — Ganhei de presente uma pneumonia com direito a uma romântica noite no hospital. Quer comemoração mais excitante?

            — E hoje é o seu aniversário? — o timbre do enfermeiro mostrava interesse na conversa.

            — Bom, é meia-noite de primeiro de outubro. Fazendo meus cálculos... Sim, é hoje.

            — Poxa, meus parabéns! — desejou contente — Estimo suas felicidades e melhoras, é claro.

            — Agradecida.

            — Pronto — disse o rapaz, retirando a seringa do braço da enferma — Sua medicação já acabou por ora. Mais tarde, a copeira trará seu café da manhã, tudo bem?

            Ela sorriu.

            — Boa noite — ele se despediu.

            A moça se ajeitou confortavelmente na cama. Era perceptível que sentia sono – suas palavras não pareciam mais ter tanto sentido. O enfermeiro a esperou acomodar-se, ajudando-a a se cobrir. Vendo-a de olhos fechados, caminhou em direção à porta. Contudo, antes que saísse, a voz dela se fizera audível mais uma vez.

            — Ei, garoto, pode voltar aqui um instante?

            Garoto... Há quanto tempo não era chamado dessa maneira? Retrocedeu os passos, voltou para perto da cama, forçando a vista para enxergar alguns detalhes daquela face escondida. A pouca iluminação do televisor o permitiu ver apenas os cabelos negros espalhados pelo travesseiro branco. Os olhos dela prosseguiam fechados. Ela lembrava alguém.

            — Sua voz... Me parece tão familiar — ela comentou, afastando a máscara que protegia seu rosto, os olhos cerrados, pesados de sono.

            — Mesmo? — ele questionou por reflexo. Seus pensamentos e sua lógica se perdiam em uma imensidão de lembranças enterradas.

            — Muito — ela respondeu, espreguiçando-se — Lembra uma antiga folha... Da minha árvore.

            O enfermeiro respirou fundo. Por alguns rápidos instantes, o ar lhe faltou.

            — Você sabe... Por que as folhas... Caem durante o outono?

            Ele não conseguiu reprimir a pergunta. O coração acelerou no peito no instante em que percebeu as palavras saídas de seus lábios. Lembranças remotas, de um passado dividido entre o doce e o amargo, voltaram à sua mente. Lembranças que tentava resguardar em um local profundo de suas memórias, mas que, ainda assim, sobressaiam-se.

            — Por que? — perguntou ela, a voz falha.

            Adriano balançou a cabeça, mantendo-se em silêncio. Envergonhou-se de sua postura como profissional.

            — Mas eu sei porque — entorpecida, a moça não tinha mais controle sobre suas palavras. Escutava-o de uma realidade distante — Eu ensinei isso... A alguém...Que eu amava.

            Estava estático e surpreso demais para ousar dar qualquer um passo a caminho da saída. Além dele, existia apenas uma pessoa naquele mundo que conhecia a resposta para aquela questão. O coração aumentava os batimentos cada vez mais, o fôlego se perdia. Temeroso, ousou encarar novamente o prontuário, reunindo coragem para reler com atenção o nome da jovem – a sonolência do plantão o fazia ignorar certos detalhes.

            — Jade Morgan?

            Ouviu um longo suspiro, enquanto ela se remexia na cama, virando-se para o outro lado, dando-lhe as costas.

            — Estou aqui — a moça respondeu em um sussurro.

            Em questão de segundos, todo um passado que ele tentou esquecer voltou à mente – toda a história, mais uma vez, diante dos seus olhos. Acreditou que nunca mais a reencontraria, não sabia como ela estava, passou quase dez anos sem notícias. Parecia um milagre.

            Uma lágrima lhe rolou pela face.

            Você sabe, Fergus, por que as folhas caem durante o outono?

            Cuidadosamente, aproximou-se da cama. Debruçou-se sobre a moça adormecida, indo ao encontro de seu ouvido. Respirou fundo, inflando seus pulmões com o perfume suave que ela emanava. Acariciou-lhe a face, seus dedos percorrendo delicadamente cada cavidade de seu rosto. E, quando se sentiu pronto, falou:

            — Prazer, Jade Morgan. Me chamo Adriano, mas, se precisar, grite por Fergus. É assim que eu atendo.

            Ele não viu aqueles olhos abrirem, não pôde ver os orbes azuis dilatados por aquela revelação. Não, não conseguiu, faltou-lhe coragem para isso. Saiu do quarto, o rosto encharcado. Mais uma vez, o passado.

*

            Luke o esperava ansiosamente, a língua de fora, o olhar sedento por carinho e atenção. Acariciando o pelo do Pastor Maremano de dois anos, Adriano entrou no apartamento, puxando o cachorro para o quarto – tudo o que mais queria era a fiel companhia do amigo peludo. Enquanto retirava uma blusa de algodão preta, a peça íntima verde e a calça frouxa azul do guarda-roupa, escutava Luke brincar com a bolinha verde que continha um pequeno guizo dentro. Antes de ir ao banheiro, encheu a tigela do cachorro de ração.

            Terminou o banho em pouco tempo, precisava dormir – seu corpo e sua mente, exaustos, imploravam por aquele merecido descanso. Todavia, antes de caminhar para a cama, foi impulsionado a puxar a última caixa escondida no armário velho e cheio de entulhos, que ficava no minúsculo escritório. O coração, de forma invariável, disparava no peito.

            O cheiro de mofo era forte e irritante. A primeira coisa que surgiu no depósito de papelão foi a blusa do Nirvana – presente dos amigos no seu 16º aniversário. Sorriu enquanto estudava a peça surrada – era o seu traje favorito naqueles remotos tempos. Em seguida, mais objetos: palhetas de guitarra, cartinhas de amigas e ex-namoradas, bolas de gude, carrinhos, inutilidades em geral. Procurou com mais afinco até encontrar, ao fundo da caixa, a encadernação negra.

            Retirou-a, a respiração acelerava. Abriu-a e logo o envelope azul apareceu. As fotos continuavam ali, eram a prova concreta de seu passado. Inúmeros jovens expostos, sorridentes, alguns cujos nomes não mais lembrava. No entanto, não importava. A única coisa que valia a pena no seu trabalho era o desenho da quarta fotografia, mais precisamente a imagem da garota.

            O sorriso dela era tímido, porém o olhar era selvagem e desafiador, por mais que fosse anuviado pela tenra maquiagem. Os olhos azuis intensos brilhavam. O cabelo ondulado, longo e negro, estava elegantemente organizado em um meio rabo de cavalo, uma pequena franja corria por sua fronte. Olhos pequenos, repuxados num formato delicado. Lábios rubros, finos e bem desenhados; nariz pequeno e arrebitado, pele alva, vestido preto gracioso. Atrás, a dedicatória, com um trecho de Wish You Were Here, do Pink Floyd:

How I wish, how I wish you were here

We're just two lost souls

Swimming in a fish bowl,

Year after year,

Running over the same old ground.

What have we found?

The same old fears

Wish you were here[1]

“Nunca me esqueça”

            Mais adentro do envelope, a corrente de minúsculos elos prateados, com um pingente delicado de folha pendurado. Enroscou o colar nos dedos, no pulso e, segurando a foto, deixou a caixa no chão com suas lembranças, dirigindo-se para a cama – a outra mão segurava a encadernação. Deitou-se e, reunindo coragem, abriu o protótipo de livro.

            Embora aquele texto não saísse de sua mente um momento sequer, amava lê-lo novamente, mesmo que não o fizesse há tempos. Respirou fundo e começou, outra vez, a ler a bela e elegante letra ali escrita.

            Era uma tarde de início de inverno. A maioria das folhas já havia caído e as árvores estavam nuas, desprovidas do verde que mantinham durante a primavera e o verão, e do amarelado que havia ganhado no outono. A neve já descia do céu e depositava, calmamente, sua brancura e maciez gelada sobre o solo. Os ventos intensos congelavam nossos ossos, permitiam ver nosso hálito se projetando no ar e obrigavam-nos a sair agasalhados de casa, caso não quiséssemos passar mal de tanto frio. 

            E, em uma tarde como essas, saí a um parque novo com meu pai. Minha idade ao certo, não lembro, mas sei que já não era mais tão criança e também não havia chegado à pré-adolescência. Passeávamos de mãos dadas, indo em direção aos brinquedos que lá existiam – o verdadeiro motivo por eu ter saído de casa em um dia como aquele. Era a primeira vez que andávamos por tais bandas e, por isso, eu olhava para tudo com a grande curiosidade infantil existente em mim e com minha imensa vontade de descobrir as coisas novas ao meu redor. Aquele era um lugar diferente, cheio de segredos e detalhes a serem observados.

            Então eu vi. Vi com meus olhos tão inocentes e puros uma das cenas mais marcantes da minha vida e que ainda perdura – e perdurará enquanto eu viver – em minha mente. Uma árvore – a única, entre todas aquelas existentes no parque – ainda possuía uma folha amarelada presa em seu caule despido. Abismada com a cena – coisa que eu nunca havia visto antes nos meus poucos anos de vida –, parei de andar e puxei a mão de meu pai. Ele, curioso em descobrir o que teria chamado a minha atenção, perguntou o que houve. Apontei para a árvore de uma folha e gritei:

            — Ali! Olha!

            Ele sorriu. Em seguida, ajoelhou-se, tornando-se do meu tamanho, e perguntou:

            — Você sabe o porquê das folhas caírem no outono?

            Eu era uma criança, porém, esperta. Sabia que a resposta para aquela pergunta era óbvia demais.

            — Porque o inverno está chegando! — respondi, sentindo-me mais inteligente que meu próprio pai.

            — Errado — ele disse, ainda com seu sorriso.

            — O quê? — perguntei, em clara confusão. Aquilo não fazia sentido para mim e contradizia tudo o que, com tanto empenho, havia estudado na escola. Papai deveria estar confuso, apenas isso — Não entendi papai.

            — As folhas caem para dar lugar às novas que irão surgir na primavera.

            Nesse momento, o vento, um pouco mais forte, desprendeu a isolada folhinha de sua árvore, levando-a para o chão. Papai, segurando a minha mão, caminhou comigo até o lugar onde a folha havia caído e pegou-a, depositando-a na minha palma logo em seguida.

            — Os momentos da nossa vida são como essas folhas. Eles nascem, perduram por um tempo e caem. Porém, outros virão. Sempre temos a chance de recomeçar do zero, de perder nossas folhas velhas e dar lugar às novas e mais belas. Temos a chance de esquecer os momentos ruins, de deixá-los serem levados pelo vento e dar origem a novos que serão melhores. E, aqueles que caíram e nos foram bons, a gente guarda no coração. As folhas velhas nunca voltam às árvores que as originou.

            Mesmo que eu não tivesse muita idade e raciocínio para entender tudo que meu pai havia me dito, suas palavras ficaram guardadas em minha memória. Hoje, posso falar que as compreendo melhor que qualquer pessoa que já tenha escutado tal teoria. Afirmo isso, por ter sempre o desejo de guardar aquelas folhas velhas e secas – por mais que elas não tenham mais sua utilidade –, de querer sempre lembrar-me dos instantes que não mais voltam. Porque minha vida segue apenas uma ordem: a chegada seguida pela partida.

            No fim, todos se vão.

            A única forma acessível a mim de fazer determinado memorial foi confeccionando este diário, tal como um livro de magia, e passar para ele todas as folhas que ainda cairão da minha árvore.  O que farei com esta encadernação depois que terminar? Guardá-la no fundo de uma gaveta, talvez. Contudo, isto não importa. Por hora, me preocupo apenas em gravar minhas memórias em algum lugar. Não quero que o vento as leve.

            Quando adormeceu, estava abraçado às fotos e ao caderno, o colar enlaçado nos dedos, o rosto novamente molhado. Havia aberto o saco de lixo que continha suas folhas envelhecidas.

[1] Tradução livre: “Como eu queria, como eu queria você aqui/ Somos duas almas perdidas/Nadando em um aquário,/ Ano após ano,/Correndo novamente no mesmo campo velho./ O que nós achamos?/ Os mesmos medos antigos/ Queria você aqui”

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