Aquilo cheio de garras

Cora ignorou os alertas de seu corpo – coração acelerado, os pelos arrepiados dos braços, o leve tremor das mãos – e levantou-se, determinada a não permitir que contos de assombração a intimidassem. Ela não iria se dispor a engolir a narrativa que lhe empurravam goela abaixo, mas admitia que algo não estava normal, mesmo para os seus padrões.

Viu Tony desdobrar o papel e revelar um mapa, ele era antigo e tinha várias marcações, embora fosse fácil encontrar a mais recente. Cora olhou por cima do ombro de Tony até identificar o lugar onde estavam e seguir a linha até a casa que Vince se referira. Se tratava de um local rural, não muito longe, que exalava cheiro de armadilha. 

Ela estalou a língua e se afastou.

— Pra onde você vai? – Tony perguntou.

— Respirar um pouco. – se limitou a responder, caminhando sem olhar para trás e entrando na mata que a estrada que percorriam cortava. Andou até sentir que havia colocado uma distância considerável entre si mesma e a situação em que havia se colocado.

Sentou em uma pedra e apoiou o rosto nas mãos. Encheu os pulmões de ar, segurou o máximo que pôde e expirou devagar pela boca, fez isso quantas vezes foi necessário até estar segura de seu autocontrole novamente.

Cora aprendeu cedo técnicas para combater ataques de pânico. Jamais conseguiria sobreviver sozinha no mundo se não fosse capaz de lidar com eles. Apesar de se envergonhar disso, Cora não negava que ela não passava de um interior frágil rodeado por uma carapaça feia e espessa.

Se pôs em pé mais uma vez, tomada agora por uma agonia pujante, andou de um lado para o outro, sentindo os galhos e as folhas secas se quebrando e desmanchando sob as solas de seus sapatos. Sentia-se encurralada, sem nenhuma rota de fuga segura por onde pudesse escapar dessas “responsabilidades” que caíram em seu colo sem a sua permissão.

Responsabilidade, sim, pensou Cora, que, por mais que quisesse abandoná-los à própria sorte, não tinha em si a indiferença necessária pra isso. Eram uma complicação a mais na sua vida já tão bagunçada. Por vezes, Cora gostaria de ter nascido má e insensível, como um punhado de pessoas que conhecera, até mesmo tentava agir como elas para ver se a repetição fazia a vontade se tornar verdade, mas não conseguia. Cora ainda se importava.

Interrompeu sua caminhada inquieta ao ouvir um som vindo do interior da mata, o que lhe pareceu ser uma rajada de vento, mas, olhando em volta, não viu seus rastros e nem o movimento das copas das árvores reagindo a ela.

Sentiu os pelos da nuca se eriçando com a sensação vívida de estar sendo observada. Uma parte pequena e otimista de Cora quis acreditar que havia sido seguida por Tony, que era teimoso demais para obedecer instruções simples. Entretanto, essa seria uma solução fácil demais e o lado otimista de Cora costumava se enganar com frequência.

Lentamente, tentando fazer o menor barulho possível, Cora segurou o cabo do revólver que ainda levava consigo e esperou.

Outra rajada. Viu de relance um vulto passar por sua visão periférica, tão rápido que no tempo que ela demorou para sacar a arma e apontar, ele já havia desaparecido, como se nunca tivesse estado ali.

Às suas costas, a movimentação se fez presente novamente e Cora virou-se, frenética, tentando ao menos ver o que ela estava enfrentando dessa vez, mas, mais uma vez, não tinha nada.

— Que droga! – murmurou. Pensou em correr de volta para a estrada e buscar ajuda, entretanto, somente a ideia de dar as costas para aquilo lhe dava calafrios na espinha. 

Ao invés de fugir, Cora se encostou em uma árvore e se preparou, vigiando todos os lados por onde poderia ser atacada.

Se concentrou em escutar qualquer aproximação. Desejou que aquilo não passasse de um momento de delírio de sua mente cansada, preferia descobrir estar perdendo a cabeça do que ser cercada e caçada no meio do mato como um animal.

Um galho se quebrou à sua direita, Cora prendeu a respiração e foi se virando devagar na direção do som. Conseguiu ver algo logo antes que desaparecesse atrás de um tronco. 

Era algo humanóide, mas não exatamente humano.

Ao ter essa certeza, o corpo de Cora congelou, sentiu a respiração prender na garganta e suas juntas recusarem a colaborar com o turbilhão em sua mente. Sabia que precisava fugir, sabia que o que via não podia ser verdade, mas se encontrava presa demais no pânico do momento para agir.

Com esforço, ela se abaixou, ocupando o mínimo possível de espaço para não chamar a atenção, torcendo para não ser detectada. 

Sua visão se turvou com lágrimas indesejadas e Cora lutou contra um soluço. Depois de ter cruzado com tantos monstros nesse mundo, Cora pensou que nada mais poderia assustá-la. Não daquela maneira.

Alguns instantes silenciosos se passaram até que a criatura se manifestasse mais próximo do que nunca, cercando-a. Agora sua forma era clara: tinha duas vezes a altura de um homem mediano e suas semelhanças com a estrutura física de um ser humano terminavam no fato de que a criatura possuía dois braços e duas pernas, pois sua pele parecia ser uma membrana fina coberta por um líquido escuro e viscoso e, onde deveria estar o pescoço por entre os ombros largos, não havia nada.

O monstro sem cabeça não tinha mais interesse em se esconder, rodeava Cora, divertindo-se com o pavor que provocava-lhe. Seus braços eram longos, muito longos, tanto que ele andava curvado para frente, de quatro. Mãos e pés eram cheias de garras.

A ideia de fechar os olhos, ficar parada e morrer passou pela cabeça de Cora. Imaginou o pesadelo de se viver em um mundo em que um ser como aquele existia e pensou que talvez fosse melhor deixar o destino seguir o seu curso e parar de lutar.

Seu tempo já era emprestado. Cora enganou a morte quando estava apenas no começo da adolescência e sua vida adulta não havia sido mais do que um adiamento do inevitável.

Cora se levantou devagar, se apoiando no tronco da árvore, sentindo sua aspereza na palma de suas mãos e na pele exposta de suas costas. Iria morrer e tudo ao seu redor estava mais claro, vivo. O suor escorrendo em seu corpo, a luz do sol que começava a se pôr e alcançava seus olhos por um certo ângulo por entre a copa das árvores. Até mesmo o som úmido e pegajoso que a criatura fazia a cada movimento.

Respirou fundo uma, duas vezes.

Cora não estivera pronta para morrer antes e não estava pronta agora. 

Sentiu o peso e o material da arma em sua mão, isso provavelmente não o mataria, mas o distrairia por tempo suficiente para fugir. Pensaria no depois quando o momento chegasse.

— Respirar um pouco. – Cora replicou, seca, antes de desaparecer no meio do mato e deixar Tony frustrado e chateado para trás.

Claro que ele entendia a necessidade dela de se afastar e reorganizar os pensamentos. Ele mesmo estava a um passo de ficar louco. Mas não era por isso que ele saia por aí sendo rude e tratando as pessoas com indiferença.

Bufou e mostrou o dedo do meio das duas mãos na direção por onde ela sumiu.

Que se dane, pensou.

Com ela distante, não havia muito o que fazer e Tony achou que seria mais produtivo aproveitar o tempo extra que tinham para analisar melhor o mapa e entender a rota que deveriam tomar. 

Bom, Tony não era o melhor leitor de mapas da face da terra, na verdade, o único mapa com que teve contato antes fora o do GPS e esse lhe dizia (literalmente) para onde ir, o primeiro passo seria aprender a ler.

Abriu o papel no capô do carro com cuidado e ficou olhando pra ele, desejando que as linhas fizessem sentido e ele pudesse ser útil pelo menos como navegador.

Também desejou um copo de café bem quente com creme.

Suspirou.

— Você gosta muito daquele garoto, não é? O ruivinho. – Miranda comentou, do nada, se aproximando. Tony estava tão atordoado que quase havia se esquecido da presença dela.

— O quê? – ele ouviu bem da primeira vez, mas não era um assunto do qual ele queria falar, especialmente com ela.

Tony estivera disposto a confiar nela no começo. A Miranda que salvaram no primeiro dia parecia ser uma mulher atenciosa e gentil, ela havia demonstrado interesse genuíno no que tinha acontecido com eles. Essa outra face de sua personalidade parecia sempre pronta a soltar um jato de veneno ou um soco.

— Ah, não se faça de idiota. Vocês nem ao menos sabem disfarçar. – ela deu uma risadinha e se encostou no carro, provocando.

— Não é da sua conta.

— Não, é claro que não. – Miranda acenou e, depois, caminhou devagar em volta de Tony, na clara intenção de encurralá-lo. — Mas ele parece bem preocupado com você.

— Não tem como não se preocupar com essa situação toda. Você não?

A sentia encará-lo, mas se recusava a olhar de volta, não morderia a isca dela, mesmo que não soubesse exatamente qual era o jogo dela.

— Você sabe que a gente não precisa esperar, né?

— Tá falando do quê? 

— Eu disse… que podemos ir embora antes que a esquentadinha volte.

— O quê- Por quê? Não! – ele finalmente desistiu de tentar ignorá-la e se virou pra ela, indignado. — Qual é o seu problema?

— Se você acha que a Cora vai sair do caminho dela pra te levar até esse lugar estúpido, então é mais idiota do que eu pensei. – Miranda fez como se fosse pegar o mapa, mas Tony não permitiu, puxando-o antes.

— Do que- o que você pensa que está fazendo? – Tony começou a dobrar o mapa como distração para a ansiedade crescendo na boca de seu estômago. — Você não escutou nada do que o Vince disse? A gente está junto nessa, não podemos nos separar.

Ela revirou os olhos.

— Eu só estou sendo realista, está bem claro pra mim que Cora não é de se deixar levar por essas bobagens de contos de fadas. Aliás, ela não é do tipo que se deixa levar por coisa alguma, acha mesmo que se usar as palavrinhas mágicas ela vai atender o seu pedido? – Miranda foi até a porta do motorista e a abriu. — Ou a gente vai agora ou não vai, pense um pouco, você sabe disso. 

Tony franziu o cenho, seria bem a cara da Cora ignorar tudo e ir para onde bem entendesse, entretanto, o que o confundiu mais na proposta de Miranda foi outra coisa: — Mas você disse que não sabia dirigir.

Ela pode não saber, mas eu sei. – disse ela, com uma irritação que não estava ali até segundos atrás. — Se quiser vir comigo, venha, não me importo.

A resposta dela não fez nenhum sentido para Tony.

— Ela quem? – quis saber ele, indo observá-la pela janela do passageiro, mas ela o ignorou, ocupada procurando alguma coisa entre o quebra-sol e o porta luvas.

— Dá pra acreditar que aquela vagabunda levou as chaves? – Miranda murmurou e tentou se abaixar sob o painel, mas a tontura não permitiu, obrigando-a a parar e descansar a testa no volante, respirando fundo. — Que puta vida de merda essa a minha.

— Sério que você ia fazer uma ligação direta? – perguntou Tony, se virando para o lugar por onde Cora desaparecera e torcendo para que ela voltasse e resolvesse esse problema. — Por que diabos você sabe fazer uma ligação direta?

Miranda virou a cabeça para encará-lo.

— Pelo mesmo motivo que você vai aprender a fazer uma agora. – ela se encostou no banco e chamou ele pra dentro. — Eu falo e você faz, não é difícil.

— De jeito nenhum! – Não seria certo deixar Cora para trás, não depois de tudo o que aconteceu. Ela podia ser rabugenta e mal humorada o quanto fosse, mas se arriscou para salvar Miranda sem pensar duas vezes e protegeu Tony quando a situação ficou difícil.

E, pior, se Vince e Travor estivessem certos, todos eles já estavam integrados na maldição. Tinham que ficar juntos. Tony acreditava nisso.

— Ela não dá a mínima pra você. Essa mulher não dá a mínima pra nenhum de nós. Ela só quer pegar o carro e vazar, você acha mesmo que ela levou essa história de faz de contas a sério? – Miranda tentou convencê-lo mais uma vez.

— Ah, e você levou, aham.

— É claro que não. – ela respondeu. — Mas pelo menos eu tenho um motivo pra ir com você pra esse lugar idiota. Ela não.

Tony não podia negar que esse era um bom argumento.

Olhou mais uma vez para a entrada da mata. Cora estava demorando. Bastante.

— Talvez tenha sido comida por um urso. Ou um lobo. – Miranda comentou, rindo, ela também olhava na mesma direção e Tony fez-lhe uma careta. Sentia-se involuntariamente tomando as dores de Cora, ultrajado com a maneira com que Miranda estava disposta a deixar para trás a pessoa que impediu que o pior lhe acontecesse, sem se preocupar com ela em troca. — Não seja chato, aposto que ela encontrou o arbusto perfeito para fazer o número dois. 

— Meu deus do céu, o que eu faço pra calar a sua boca!? – Tony reclamou, mas isso só pareceu diverti-la mais. 

Agora Tony estava realmente irritado, sentiu o peito queimar de ódio e, de repente, ele quis que o impacto na cabeça a tivesse matado da última vez, para não ter que escutar a voz dela ou olhar para aquela expressão condescendente em seu rosto.

Claro que Tony já sentira ódio antes. Sua raiva era constante como o fluxo de um rio calmo que percorria por suas veias. O tempo todo ali, mas o tempo todo controlado. Um sentimento que só era perturbado quando Tony olhava muito para dentro, quando parava para contemplar sua vida e percebia o quão insatisfeito estava com ela.

Mas o que sentia naquele momento era como uma combustão espontânea. Tanto que ele mesmo se assustou com o som de metal e percebeu que havia socado a lataria do carro.

— Oh, oh. Calma, garoto. Foi uma piada, só isso. – Miranda, que já estava bem encostada, cobriu os olhos com o antebraço e escorregou ainda mais no banco, se preparando para um cochilo. — Já que você não vai pra nenhum lugar sem a sua dona, me avisa quando ela fizer o favor de aparecer.

Tony abriu a boca para responder quando o barulho de um tiro soou do meio das árvores. Dessa vez, nenhum pássaro levantou voo, nem mesmo os corvos que os vinham acompanhando.

Miranda levantou o braço por tempo suficiente para trocar um olhar com Tony e voltou para a sua posição. 

— Bom, parece que eu estava certo sobre o urso. – ela disse, mas Tony mal lhe deu atenção, entrou correndo pelo mesmo caminho que Cora tomara, com o coração pulando no peito. 

A primeira imagem que surgiu em sua mente foi a do corpo inerte de Cora naquela terra úmida, tendo ela colocado uma bala na própria testa ou na boca. A imaginou com o peito aberto e a arma na mão, o dedo ainda pousado sobre o gatilho.

Mas que diabos, pensou consigo mesmo, sem entender como seus pensamentos deram essa volta. Ela não faria isso, Tony tinha certeza de que havia alguma outra explicação, algo muito pior e mais preocupante.

Parou de correr escorregando nas folhas secas e se sentiu um idiota por achar que poderia ajudá-la caso alguma coisa acontecesse, pois mal havia se enfiado por entre as árvores, já se sentia perdido, completamente desorientado. 

A quietude do lugar era consternador. Nenhum som natural podia ser ouvido, nem o farfalhar das folhas, nem as aves, e mesmo o impacto de seus pés sobre o solo parecia abafado e distante.

— Cora! – gritou por ela, suando frio, olhando em volta, sem nem ao menos saber o caminho por onde veio. — Cora!

Ouviu passos distantes, apressados.

— Corre, Tony! – escutou a voz dela antes de vê-la, dando a volta em uma rocha e correndo à toda velocidade na direção dele. — Levanta e CORRE!

Por puro instinto, Tony desajeitadamente se colocou de pé, com a adrenalina pulsando nas veias. Também por instinto, Tony quis esperar que Cora o alcançasse antes de disparar de volta para a estrada, mas, logo atrás dela vinha uma criatura impossível, horrenda. 

Dentes. Haviam dentes onde eles nunca deveriam existir.

Por entre os ombros daquilo uma boca se abria, expondo um buraco que não parecia ter fim com carreiras e mais carreiras de dentes desnivelados e afiados.

Ficou paralizado, com um grito preso na garganta, até que Cora o puxou pelo braço e Tony teve que se esforçar pra não cair novamente e não olhar para trás. Não podia olhar pra trás de jeito nenhum.

Não estavam longe, Tony não se embrenhado tanto à procura de Cora e não demorou para que as sombras das copas das árvores se abrissem para a luz do sol alaranjado do final do dia.

June estava com dor e entediado, daria qualquer coisa por um analgésico e uma boa noite de sono. De preferência uma que durasse até que essa fase maluca passasse. Nessas condições, June não se importaria se Miranda tomasse o controle e sentisse todo esse desconforto em seu lugar.

Só nessas horas, June não reclamava de dividir o corpo com outra pessoa.

O carro vibrou de leve como se um caminhão viesse pesado subindo a estrada e June observou a progressão do chacoalhar dos itens soltos dentro do carro, desde o brinde do último posto de gasolina balançando no retrovisor até os copos descartáveis rolando embaixo dos bancos. Como eles haviam juntado tanto lixo em tão pouco tempo era um mistério.

A vibração foi aumentando de forma irregular e a despreocupação de June foi sendo substituída por desconfiança.

— Mas o que diabos…? – olhou para trás e não viu nenhum veículo se aproximando. 

A sensação mudou de repente, menos um tremor e mais um tamborilar, cuja batida parecia ressoar no estômago de June como se passasse por uma sequência de pequenas quedas livres. 

Do outro lado, das árvores, o som de passos apressados se aproximando chamou sua atenção. 

— Miranda! – Tony vinha gritando seguido por Cora. — Liga o carro!

June franziu o cenho, confuso demais para reagir com rapidez, sem saber exatamente a que ele supostamente deveria reagir. Mas a resposta veio rápido, pois mal Tony alcançou a maçaneta da porta da motorista, June viu o que estava fazendo a terra vibrar.

— Puta que pariu! Entra! Entra! – gritou de volta, ajudando-o a entrar, desesperado. — O que que é isso!? Que merda é essa!?

— Cora! – ele ignorou June, com o corpo metade para fora, agarrando Cora pelo antebraço e puxando-a para dentro pela janela mesmo quando percebeu que ela tentava abrir a porta emperrada. — Vem!

Cora soltou uma série de palavrões e começou a se espremer e se contorcer para dentro.

June não sabia se conseguiria dar a partida no carro sem as chaves, não alcançaria os cabos embaixo do painel sem desmaiar e, mesmo se conseguisse, a movimentação de Cora e Tony brigando por espaço na parte da frente não ajudava em nada.

O fato de que o monstro estava bem ali em cima deles o apavorava demais para ser capaz de clarear a mente o suficiente para tomar uma atitude.

— Ai meu Deus! Será que dá pra fazer alguma coisa? – Tony olhou para June por cima da cintura de Cora, que tentava ir direto para o banco de trás da melhor forma que podia, mas ainda assim amassando e empurrando todo mundo pela frente. 

O que fez June acordar para a ação, porém, foi o braço grotesco e viscoso da criatura, preto como piche, de onde escorria um líquido grosso e malcheiroso. Algo que lembrava a June comida podre e larvas de moscas. A mão gosmenta agarrou o tornozelo de Cora e começou a puxá-la para fora novamente.

— Puta merda. – A imprecação de June se perdeu na cacofonia de gritos de Cora e Tony. 

A imagem de Tony segurando e empurrando com toda a força o que parecia ser o pulso daquele monstro, tentando fazê-lo soltá-la, e a imagem de Cora com os olhos injetados de pavor e agonia, se debatendo naquele espaço diminuto, provavelmente ficariam marcadas na cabeça de June para sempre. Aquele tipo de coisa não existia, não poderia existir.

June se juntou a Tony na tentativa de libertar Cora, mas quando percebeu que era uma luta sem sentido e que não importava o quanto Cora se agarrasse ao banco do passageiro com unhas e dentes, ela seria levada mais cedo ou mais tarde, June pensou rápido (ou não pensou) e pegou o revólver de uma bala do porta luvas.

Ele não era bom com armas.

Não era um guerreiro. 

June era o que se podia chamar de um amante livre. Seguia para onde seus instintos dissessem e aceitava os riscos que esse estilo de vida apresentava. Sabia se defender bem diante das monstruosidades que os homens poderiam fazer. Caramba, pensava ele, sou um homem vivendo por aí no corpo de uma mulher – e mais, dividindo esse corpo, mas, apesar das dificuldades, June aprendeu que era possível se acostumar com qualquer coisa.

Quase qualquer coisa. 

Quando disparou a arma, June se assustou com o barulho do tiro e do ricocheteio que o empurrou para trás e o fez soltar o revólver longe. A criatura chiou e, no instante em que o aperto dela afrouxou, Tony puxou Cora para dentro e se apressou para levantar o vidro da porta, como se essa barreira ínfima fosse capaz de detê-la.

— Fecha essa merda. – Tony ordenou para June, seu olhar era duro e ele parecia querer empurrar Cora mais e mais para dentro do carro, protetor.

Apesar de ter sido apenas um tiro, o monstro sentiu bastante, a região atingida em seu ombro borbulhava, como se fervesse e um jorro de líquido negro vazava do buraco. Ele se curvou por alguns instantes, mas se voltou para eles com ainda mais gana. Se jogou contra o carro e bateu em sua lateral com a mesma força de um veículo em alta velocidade.

June fechou os olhos com força, esperando que as janelas se rompessem e aquilo os consumisse por inteiro. Esperou que o carro virasse e eles fossem arrastados para a floresta e desaparecessem nas sombras. Entretanto, apesar do impacto, eles se mantinham ali.

O ataque deixou uma mancha escura como graxa no lado atingido e, quando abriu os olhos novamente, June não viu mais onde a criatura estava. 

Por alguns momentos, os únicos sons que podiam ser ouvidos eram o ofegar forte dos três – não parecia existir ar no mundo para encher os pulmões em pânico deles – e os gemidos fracos que escapavam por entre os dentes cerrados de Cora que, mesmo em um momento de emergência, era orgulhosa demais para demonstrar qualquer tipo de fraqueza.

Mas ela estava praticamente no colo de June e seria impossível para ela disfarçar sua fragilidade quando seus tremores eram tão fortes quanto espasmos.

— Cadê as chave? – sussurrou no ouvido dela, mas a única resposta que Cora foi capaz de dar foi olhar para ele com aqueles olhos arregalados, fora de si. June sentiu um arrepio involuntário. — Merda, deixa que eu procuro.

Ia procurar com cuidado nos bolsos dela, mas algo caindo sobre o teto do carro foi o suficiente para destacar a urgência da situação e tanto June quanto Tony começaram a vasculhar todos os lugares onde Cora poderia ter enfiado aquela chave.

Garras surgiram no parabrisa, arranhando o vidro e deixando para trás riscos tão finos quanto aquelas garras eram afiadas e manchas de negrume oleosas. Sem conseguir romper a barreira, a criatura passou a bater impaciente em sua superfície, com tanta força que o carro subia e descia violentamente, fazendo June se sentir enjoado, sendo esmagado em uma lata de sardinha.

— Aqui, toma. – Tony teve a sensibilidade de pegar a mão de June, colocar a chave em sua palma e fechar seus dedos em torno dela. Se não fizesse isso, as chances de que a derrubasse e colocasse tudo a perder eram enormes. 

June achou que já havia sentido pavor antes, mas isso alterava completamente seus parâmetros.

Depois de errar a ignição algumas vezes, June finalmente conseguiu dar a partida e acelerar pela estrada. Pressionou o motor o máximo que aquela lata velha permitia, esperando que a velocidade e o movimento fossem suficientes pra tirar aquele parasita de cima deles, mas isso não adiantou. 

Tony xingava e esmurrava o teto como se isso fosse afugentar um ser que mais parecia ter saído de seus pesadelos. 

— Tira ela de cima de mim. – June disse a Tony, empurrando Cora pra ele, incapaz de se concentrar em dirigir, manter a cabeça no lugar e ter que desviar do corpo em choque de uma mulher praticamente jogada em cima dele.

— Jesus. – Tony a segurou, Cora agora encolhida em seu colo. — Como a gente faz pra se livrar dessa coisa?

— E eu já não teria feito alguma coisa se eu soubesse como!?

Nesse momento, June perdeu o tempo para curva fechada que vinha à sua frente e teve que virar o volante de uma vez, jogando todos violentamente para a esquerda, incluindo a criatura, que se soltou de cima do carro e bateu na proteção metálica da beira da pista.

— Ele ficou pra trás? – June perguntou, frenético, se segurando na direção do carro como se sua vida dependesse disso. Não queria tirar os olhos da estrada, porque, muito bem ele havia aprendido a dirigir, mas não tivera muitas oportunidades pra isso e essa não era uma de suas melhores qualidades, especialmente quando se encontrava no meio de um inferno como aquele.

— Eu… eu não sei. – Tony se contorcia tentando olhar e garantir que não estavam sendo seguidos. — Que merda, eu não sei, não estou vendo mais nada.

June acenou, sentia suor escorrendo sob seus lábios e a ferida na cabeça latejar como nunca. Piscou os olhos com força, se forçando a manter o foco.

— Que porra era aquela? – perguntou June.

— Como eu vou saber?

— Ela estava te seguindo, caramba! Como você não sabe?

— Não sabendo! – A frustração de Tony não significava nada para June, ele poderia se explodir e isso não lhe faria diferença, mas era culpa dele que toda essa bizarrice estava acontecendo. Era ele quem tinha alguma conexão com os dois lunáticos da chamada de vídeo, o mínimo que ele poderia fazer era dar alguma explicação. — Eu não faço a menor ideia do porque um bicho sem cabeça está perseguindo a gente, será que dá pra calar a boca um segundo e me deixar pensar?

— Ah, a criança quer pensar agora… – June murmurou amargo, reacendendo a raiva de Tony.

Se dependesse da capacidade de June para incitar uma briga, os dois ficariam ali batendo boca pelo resto da eternidade, mas foram interrompidos por um gemido doloroso vindo de Cora. Um gemido que ela não tinha tentado abafar porque perdera a consciência em algum momento entre o antes e o agora, o que o tornava estranho e preocupante.

— Confere a perna dela.

Tony não discutiu, rearranjou sua posição com ela em seu colo e se abaixou para olhar a região de seu tornozelo.

— Quando você acha que vai ser seguro parar? – Tony quis saber.

June bufou.

— Pra fugir daquela coisa? Acho que nunca, por quê?

— Preciso de uma resposta melhor do que essa. – ele respondeu, levantando a mão manchada com o sangue de Cora.

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