Sete meses atrás:
Laura Martins:
— Isso! — Digo num sussurro entusiasmada, fecho a mão em punho e ergo como uma pequena comemoração de vitória ao sair da sala do RH da empresa: Jewelry. Esse nome não é nem um pouco criativo, se traduzir vai ficar: joias, mas quem sou para julgar.
Agora que a minha carteira foi assinada, eu finalmente posso procurar uma casa para alugar e viver a minha vida à minha maneira. Apesar de eu já estar com vinte e quatro anos, só fazem três dias que sai/expulsa da casa dos meus pais, de lá só levei essa camisa de mangas curtas que visto com essa calça surrada e essa sapatilha que está com os calcanhares furados, e uma roupa de dormir. Apenas isso.
Durante o dia eu fico a perambular pela cidade a procura de emprego, durante a noite caço abrigos que ainda tenham uma vaga para eu dormir. Não tem sido fácil, a última vez que comi foi a dois dias, peguei o resto de um lanche na lixeira dum restaurante. Bem, um dia após sair da casa dos meus pais, já revirava o lixo, mas até que o lanche estava bom, na casa dos meus eu só podia comer uma vez, eles diziam que se eu comesse mais, eles passariam fome e que não tinham nenhuma obrigação de sustentar uma de maior desempregada.
Enfim, essa não é minha única motivação, eu ainda não consegui consertar todos os cacos do meu coração, nunca vou esquecer a cena mais nojenta que já presenciei na minha vida... bem no meu quarto... na minha cama... dentro dos meus lençóis...
Chacoalho a minha cabeça para afastar essas lembranças. “Isso não é hora de pensar no passado, é hora de ficar animada e ergue a cabeça.” — Falo em pensamentos.
— Aí! — Gemo de dor ao bater a minha cabeça na parede macia e caio de bunda no chão. — Merda! — Murmuro e massageio a região que sofreu o impacto da queda, olho para onde bati, mas para a minha surpresa, é uma parede de músculos cobertos por um terno preto sob medida. — Ei cara, olha por onde anda! — Reclamo enquanto me levanto, com as mãos abertas bato na minha roupa para tirar a sujeira que grudou em mim.
— Aqui não é lugar para mendigos — a parede de músculo diz, com raiva no olhar ergo minhas vistas em direção a ele e por um instante quase esqueço que esse babaca me derrubou no chão e nem ofereceu a mão para me ajudar a levantar. O que tem de bonito, tem de idiota.
Apesar do brilho penetrante dessas safiras azuis, os seus olhos destilam frieza e um vazio de dar medo; no entanto, seu charme não passa desapercebido, sobrancelhas espessas e escuras contornam seu olhar sério e hostil, a barba por fazer acrescenta um toque jovial à sua imagem, enquanto a boca rosada, larga e carnuda completam o quadro facial. É lamentável que toda essa beleza se restrinja apenas à aparência externa, chega ser um desperdício.
— Com certeza um mendigo tem mais educação que você! — Retruco recuperando a minha razão. — Derrubar uma dama no chão, não pedir desculpa e nem sequer a ajudá-la a se levantar, é um perfeito ogro — alego petulante, mas quem começou com as ofensas foi ele, então aguente agora, oh belo ogro.
— Não estou vendo nenhuma dama, só uma pirralha maltrapilha! — Ah, ele continua me ofendendo, fazendo a raiva crescer ainda mais dentro de mim.
— E eu só vejo um ogro feio! — Grito exaltada.
Certo, de feio ele não tem nada, ele aparenta ter uns trinta anos, mas não adianta de nada, no mundo, a beleza externa não é tudo, pelo menos, não no meu mundo.
— Com quem você acha que tá falando, menina? — Questiona-me de cara feia, tentando intimidar-me, comigo isso não funciona não, garotão.
— Com um ogro mal-educado que saiu direto do pântano! — Respondo atrevida.
— Sua fedelha... — ele xinga-me com a voz rouca me fazendo arrepiar, o gelo nos seus olhos dá lugar a chamas azuis de ódio saídas direto do inferno, sinto meus ossos começarem a tremer enquanto ele aproxima-se de mim, com passos firmes e ameaçadores, mesmo eu tendo uma língua atrevida, sou extremamente medrosa, dou passos para trás, para a minha salvação uma mulher de meia idade fica entre mim e o ogro que parece querer cuspir fogo.
Observo a senhora de costas, ela está usando um terninho elegante, o cabelo é curto, um pouco grisalho, na altura dos ombros e ela usa saltos médios finos.
— Fernando, meu filho, estão todos te esperando na sala de reuniões, você não pode se atrasar — a mulher fala de forma suave, a expressão no rosto do ogro volta a ficar neutra me deixando aliviada, ele acena a cabeça para a mãe e dar as costas sem nem olhar para mim, ainda bem, estou nova demais para conhecer o céu.
É melhor eu aproveitar essa chance, viro de costas e ergo a perna, afim de dar o primeiro passo, mas, uma mão toca no meu ombro fazendo com que eu pare o movimento.
— Qual o seu nome, menina? — A mulher, que agora sei ser a mãe do ogro, pergunta-me.
— Laura Martins — falo e fico de frente para ela. — E a senhora?
— Pode chamar-me apenas de Cristiane — ela afirma sorrindo e estende-me a sua mão. Que senhora gentil, sorrio de volta e apertamos as mãos.
— Você já conhecia o meu filho? Pareciam ser bem íntimos.
— Aquele ogro... hum-hum — pigarreio, não posso chamar o cara de ogro na frente da mãe. — Eu não conhecia o seu filho não, ele esbarrou em mim e me derrubou na entrada.
— Ah — a senhora sorrir, e por alguma razão, acho o seu sorriso suspeito. — Sinto muito. Você machucou-se?
— Agora eu já estou bem — comento sorrindo, apesar de acha-la suspeita, ela aparenta ser gentil. — Obrigada pela preocupação, eu já vou indo, tenha um bom dia!
— Para você também, querida, nos veremos mais vezes, sinto que você e o meu filho vão se dar muito bem — Ela declara e sorrir, eu sorrio amarelo e dou as coisas.
Assim que coloco os meus pés para fora dessa empresa, o vento b**e no meu rosto, respiro aliviada.
— Crus credos, nada contra a senhora, mas espero nunca mais ver aquele ogro na minha frente — murmuro e começo a minha caminhada.
Tempo atual: Fernando Duarte: No meu relógio marca 19 horas e 30 minutos, e a minha paciência diminui a cada segundo. Se essa mulher se atrasar um minuto sequer, estou fora. Eu nem queria está aqui para começo de conversar, só estou aqui porque a minha mãe ameaçou colocar fogo em sua própria casa. Impaciente, dedilho a mesa, viro o rosto para a janela e começo a observar os carros passando apressados pela frente do restaurante escolhido por minha mãe. Só mais trinta segundos... — Senhor Duarte? — Ouça a voz da recepcionista, se ela está aqui só pode significar uma coisa. Merda! Respiro fundo e controlo a raiva, só faltavam trinta segundos para que eu pudesse estar livre e usar a desculpa de que a tal mulher não apareceu me deixando no vácuo. Desvio minha atenção dos carros e olho para a moça que me chama. De baixo pra cima, observo a mulher que está ao lado da recepcionista. Dentro de um vestido tubinho de cor preta, os meus olhos percorrem o seu corpo, observando as curvas su
Fernando Duarte:Após deixar o restaurante, dirijo com pressa tendo o caminho iluminado pelas luzes amarelas dos portes. Seguro tão firme o volante do carro, sentindo o metal gelado contra a palma da minha mão, que sinto as falanges dos meus dedos doerem e as veias do dorso das minhas mãos saltarem. De onde a minha mãe conheceu Laura? E por que diabos a minha mãe achou que seria uma boa ideia arranjar um encontro com essa pirralha irritante?A frustração e a raiva se acumulam dentro de mim. Com raiva, desfiro um golpe no volante. — Porra! Por que tinha que ser logo ela? Ela era a última pessoa que eu queria encontrar. — Sussurro para mim mesmo.Os faróis dos carros se misturam em um borrão de luzes, espelhando meu estado de espírito tumultuado. Minha respiração está tensa, e os pensamentos sobre Laura, sobre o meu passado, giram furiosamente na minha mente.Ao estacionar em frente à casa da minha mãe, respiro fundo, saio do carro e aperto a campainha. Ana, o braço direto da minha mãe
Laura Martins:Pago a minha passagem e me sento no banco mais alto, o ônibus começa a se locomover, repouso a minha cabeça na janela, fitos as luzes urbanas se desdobrarem à medida que o ônibus segue para a estação. A minha mente começa a vagar de volta para o restaurante, os olhos do senhor Duarte, antes gélidos e sem vida, estavam cheiros de terror e desespero, nem pareciam pertencer a mesma pessoa. O que será que aconteceu para que ele ficasse nesse estado?Para!Já tenho problemas demais para ainda ficar tomando conta de problemas alheios.Resolvo buscar refúgio nos meus fones de ouvido, na playlist seleciono à música: Dias Melhores | Jota Quest; deixo-me levar pela melodia enquanto meu olhar se perde nas ruas movimentadas. “🎶Vivemos esperando dias melhores. Dias de paz, dias a mais, dias que não deixaremos para trás. Oh oh, vivemos esperando o dia que seremos melhores, melhores no amor, melhores na dor, melhores em tudo... 🎶”Baixinho cantarolo a letra,
Laura Martins:“Tum-tum. Tum-tum.”O que é isso?“Tum-tum. Tum-tum.”De onde vem esse som? “Tum-tum. Tum-tum.”Esse som... ele vem... de mim?Sim!É o som do meu coração. E cada batida ressoa como uma trilha sonora particular, enquanto não consigo desviar os olhos dos dele, a frieza em seu olhar é como se fosse um muro, mas a sensação que tenho é que se trata de um muro de lamento e que implora para ser derrubado. A intensidade desses olhos gélidos me perfura, mas ao mesmo tempo, faz o meu coração acelerar ainda mais, deixando o som das minhas batidas ainda mais altas em meus ouvidos.Engulo em seco, involuntariamente, meu olhar desce para seus lábios. “Ele sempre teve uma boca tão bonita assim?” —Me questiono internamente, mordo o meu lábio inferior. Será que são macios? Quentes? A língua... será que... de repente e bruscamente, como se tivesse uma doença altamente contagiosa, ele me solta e se afasta. Cambaleio um pouco antes de retorna ao equilíbrio. Uma pontada de vergonha toma
Ainda, sete meses atrás:Laura Martins:— É feio encarar as pessoas comendo — falo incomodada, observando-o de soslaio. Não sei bem se ele realmente está me encarado, os olhos dele parecem vagos, mas o simples fato de estarem na minha direção já me perturba.— Não estava te encarando — ele diz e se ajeita na cadeira. — Coma logo, quero ir embora — resmunga, cruzando os braços e fixando os olhos nos meus.— A porta da rua é serventia da casa — debocho, levando outra garfada de macarrão à boca, nossa! Que sabor divino, o macarrão está tão delicioso, poderia repetir o prato várias vezes, mas, como não sou eu quem estar pagando, me contento apenas com essa porção.— Está me colocando para fora, de um restaurante que nem seu é? — O ogro pergunta, uma sobrancelha arqueada em incredulidade.— Você quer sair, eu apenas disse para que serve a porta, uai — retruco, não sei o porquê, mas algo me leva a ser groseira com ele... eu acho divertidas as reações dele. — Você já
Ainda sete meses atrás: Laura Martins: Observo os fleches de luz pelo vidro fumê da janela, um silêncio expeço paira dentro do carro, que ao parar no sinal vermelho, não consigo controlar a vontade de expiar o homem estranho – que eu denominei ogro – ao meu lado, o ogro realmente é muito bonito, os seus cabelos pretos desalinhados o deixam ainda mais charmoso, mesmo com o mar gélido nos seus olhos, ele ainda consegue ser o homem mais bonito que eu já vi, mas nunca irei admitir isso para ele. Nunca! Quem diria, se eu o visse cinco dias atrás, nem prestaria atenção nele, pois os meus olhos ainda estavam enfeitiçados pelo meu ex-namorado. — Se continuar me olhando assim, praticamente me devorando com os olhos, vou começar a achar que está interessada — a sua voz me tira dos devaneios, percebo, tarde demais, que estava encarando-o com a boca meio aberta. Pressiono os lábios um contra o outro numa linha reta e volto para parecer indiferente, mas sinto o meu rosto queimar de vergonha.
Tempo atual:Laura Martins:— Ei! Vai ficar me fazendo de cachorro? — Sua voz interrompe meus desvaneios, acompanhada de cutucões na minha bochecha.Fico momentaneamente atordoada, tento processar as suas palavras, mas eu não consegui entender.— O que... o que você disse? — Questiono, a minha confusão transparece na minha voz. Eu me pedir completamente com as lembranças do primeiro dia em que o vi.Ele me lança um olhar impaciente.— Para onde devo te levar? — Ele repete, com uma leve irritação na voz, me vejo obrigada a me recompor.— Ah, sim — respondo, tentando parecer mais segura do que realmente estou. — Bairro Valéria.— Valéria? Sério? — Seus olhos desviam da estrada para mim por um breve momento, suas sobrancelhas se arqueiam em descrença, mas logo retornam para a rua. — Por que você foi morar logo no bairro mais perigoso de Salvador?— Depois que se acostuma, nem é tão ruim — tento dar uma responder de forma despreocupada.Para a minha sorte, ele nã
Laura Martins: — Laura, o que aconteceu no restaurante? O meu filho chegou aqui transtornado! — a mulher começa. Lá vamos nós, penso me preparando para receber o esporro. — O nosso acordo era para você deixá-lo feliz e não ainda mais infeliz! — A voz da mulher ressoar familiar por trás da linha. De onde a conheço... de onde... já sei! É ela! A senhora elegante e gentil de terninho. Cristiane, é esse o nome dela, por que eu não me lembrei assim que vi o ogro? Será que foi o choque por ter sido justo ele? — Está aí? — Cristiane, a mãe do ogro, chama impaciente. — Si-sim! Estou sim — respondo, tentando suar calma, mesmo com o coração disparado. — Então por que não me respondeu? — Questiona. — Eu estava tentando me lembrar de onde conhecia a sua voz — explico e mordo o lábio com vergonha da minha lerdeza. — Você não lembrava que era eu? — Consigo sentir a surpresa em sua voz. — Desculpe — peço envergonhada, provavelmente o nome dela estava no contrato, mas eu só li a parte dos bene