Fernando Duarte:
Após deixar o restaurante, dirijo com pressa tendo o caminho iluminado pelas luzes amarelas dos portes. Seguro tão firme o volante do carro, sentindo o metal gelado contra a palma da minha mão, que sinto as falanges dos meus dedos doerem e as veias do dorso das minhas mãos saltarem.
De onde a minha mãe conheceu Laura? E por que diabos a minha mãe achou que seria uma boa ideia arranjar um encontro com essa pirralha irritante?
A frustração e a raiva se acumulam dentro de mim. Com raiva, desfiro um golpe no volante. — Porra! Por que tinha que ser logo ela? Ela era a última pessoa que eu queria encontrar. — Sussurro para mim mesmo.
Os faróis dos carros se misturam em um borrão de luzes, espelhando meu estado de espírito tumultuado. Minha respiração está tensa, e os pensamentos sobre Laura, sobre o meu passado, giram furiosamente na minha mente.
Ao estacionar em frente à casa da minha mãe, respiro fundo, saio do carro e aperto a campainha. Ana, o braço direto da minha mãe, libera a minha passagem. Ao entrar na sala, dona Cristiane aparece com um sorriso genuíno em seu rosto e os olhos brilham em expectativas.
— Como foi o jantar, meu filho? Laura é uma moça encantadora, não é? Vamos, conte tudo para a mamãe, vocês se deram bem, né?
Tento manter minha expressão impassível, mas dentro de mim, a raiva fervilha.
— Foi um saco! — Respondo sem rodeios, as sobrancelhas dela se arqueiam em surpresa. — Pare de tentar arrumar a minha vida.
— Mas, o que deu errado? Laura, ela é tão...
— Tão o quê, mãe? Conhece ela de onde? — Indago furioso. — A senhora não sabe absolutamente nada sobre ela!
— E por um acaso você sabe? — Ela retruca carrancuda.
Sei!
Quero responder, mas não acho que preciso relatar a situação em que eu e ela nos conhecemos e nem como ela gentilmente me agrediu só porque a chamei de dragão.
— Fernando, meu filho, eu me preocupo com você, você não pode se isolar para sempre, você ainda está vivo, mas age como se não estivesse, não pode ser assim, você precisa tomar um jeito e...
— Pare de tentar agir como se fosse uma psicóloga! — Grito irritado, fecho as mãos em punhos.
— Ah, meu filho — ela fala cabisbaixa. — Você precisa superar, não pode ficar para sempre preso no passado, aquilo não foi sua culpa, pare de si...
— Chega, mãe! — Falo exaltado, cortando-a. — Isso não é da sua conta, pare de se mete onde não é chamada, eu não preciso da sua ajuda.
Minha mãe não esconde a sua expressão magoada com o que eu acabei de falar, mas não me importo. Não posso permitir que ela invada esse território da minha vida, preciso manter as pessoas à distância, e isso a incluí.
Dou as costas para minha mãe e vejo Ana no canto da sala observado discretamente, consigo ver em seu olhar que ela desaprova o meu comportamento, mas foda-se.
Saio da casa da minha mãe com passos apressados e entro novamente em meu carro, começo a dirigir, agora a caminho da minha casa.
As palavras da minha mãe ecoam em minha mente: “Meu filho, você precisa superar.” No entanto, a voz, que outrora eu apreciava tanto, soa áspera e rouca, arranhando meus ouvidos internamente como garras afiadas, proclamando: “É sua culpa!” A voz agonizante me acusa, mas minha mãe intercede: “Não fique preso no passado; aquilo não foi sua culpa.” A voz agonizante não se silencia: “Você não merece seguir em frente!” No entanto, minha mãe persiste: “Você precisa seguir em frente, você está vivo!” A voz desafia: “Como ousa pensar em seguir em frente se nos matou!? Assassino!” A voz grita, ecoando a dor e o ódio.
Nesse momento de quase transe, as vozes aumentam, gritando que sou um assassino, que não mereço estar vivo, que era eu quem deveria estar morto. As memórias do passado distorcem-se diante dos meus olhos, as imagens de chamas, gritos e desespero tornam-se quase tangíveis. Sinto-me sendo arrastado de volta àquele momento fatídico, me causando sufocamento e fadiga.
O suor começa a escorrer pela minha testa. As luzes da cidade começam a se misturar, a boca seca e o meu peito aperta, as minhas mãos tremem sob o volante e por mais que eu o aperte, não é firme o bastante.
Ao aproximar-me de um semáforo, as luzes vermelhas se transformam em uma miragem surreal, e minha mente é arrastada para outro lugar. As vozes distorcidas ecoam novamente, mas agora, ao invés de gritos, são sussurros agourentos. Como se o fogo do inferno estivesse vindo em minha direção, pisco os olhos e o fogo vermelho se transforma no farolete do carro à minha frente, o veículo desvia do meu carro, seus faróis parecendo estrelas cadentes fugindo de uma colisão celestial. Eu, alheio ao mundo real, mergulho nessa visão distorcida.
O som de pneus girando no asfalto traz-me de volta. Novamente, estou à beira do precipício, o cruzamento das memórias e da realidade. Estou em um mar de luzes ofuscantes, como se o meu carro fosse um navio prestes a colidir contra as rochas.
Num instante de clareza aterradora, com o som de várias buzinas, percebo a realidade à minha frente. Meu pé pisa no freio com força, minhas mãos giram o volante desesperadamente. Consigo desviar dos outros carros por um triz, evitando a colisão iminente.
Quando a fumaça do quase acidente se dissipa, vejo-me à beira da estrada, o coração martelando no peito. O suor frio escorre pelo meu rosto, e as minhas mãos ainda tremem. Estou à beira do precipício psicológico. Respiro fundo, tentando recuperar o fôlego.
Esses fantasmas do passado, essas lembranças, estão sempre à espreita, prontos para me arrastar de volta para o inferno que vivi. Depois de longos dois anos, pensei que conseguiria superar, mais a cada dia, é uma luta para sair de casa e segurar o volante do carro.
A voz distorcida que me acusa agora é apenas um sussurro distante. As sombras do passado persistem, aguardando pacientemente o próximo momento de fraqueza. A vida continua à minha volta, mas dentro do carro, o eco da quase tragédia ressoa como um lembrete cruel.
— Maldição... — murmuro, sentindo a pressão em meu peito. Apenas eu sei o quão quebrado estou por dentro, mesmo que por fora eu aparente ser inabalável.
As sombras do passado continuam a me assombrar, não dando trégua às cicatrizes que carrego, mesmo já tendo se passado dois anos.
“Não ouse nos esquecer.” Escuto a voz novamente, pressiono os lábios e não consigo evitar as lágrimas de caírem, como se voltasse no tempo, deito minha cabeça no volante e caio no choro, os soluços machucam a minha garganta, sinto vontade de gritar, mas não consigo encontrar a minha voz, não tenho direito de ser feliz, eu sou o culpado, somente eu.
“toc-toc”, saio dos devaneios com o som de batidas no vidro do meu carro, ergo a cabeça e olho para a origem do som, estou delirando? Me pergunto enquanto olho para o rosto de Laura atrás do vidro fumê. Abaixo o vidro.
— O está fazendo aqui? — Questiono.
Laura Martins:Pago a minha passagem e me sento no banco mais alto, o ônibus começa a se locomover, repouso a minha cabeça na janela, fitos as luzes urbanas se desdobrarem à medida que o ônibus segue para a estação. A minha mente começa a vagar de volta para o restaurante, os olhos do senhor Duarte, antes gélidos e sem vida, estavam cheiros de terror e desespero, nem pareciam pertencer a mesma pessoa. O que será que aconteceu para que ele ficasse nesse estado?Para!Já tenho problemas demais para ainda ficar tomando conta de problemas alheios.Resolvo buscar refúgio nos meus fones de ouvido, na playlist seleciono à música: Dias Melhores | Jota Quest; deixo-me levar pela melodia enquanto meu olhar se perde nas ruas movimentadas. “🎶Vivemos esperando dias melhores. Dias de paz, dias a mais, dias que não deixaremos para trás. Oh oh, vivemos esperando o dia que seremos melhores, melhores no amor, melhores na dor, melhores em tudo... 🎶”Baixinho cantarolo a letra,
Laura Martins:“Tum-tum. Tum-tum.”O que é isso?“Tum-tum. Tum-tum.”De onde vem esse som? “Tum-tum. Tum-tum.”Esse som... ele vem... de mim?Sim!É o som do meu coração. E cada batida ressoa como uma trilha sonora particular, enquanto não consigo desviar os olhos dos dele, a frieza em seu olhar é como se fosse um muro, mas a sensação que tenho é que se trata de um muro de lamento e que implora para ser derrubado. A intensidade desses olhos gélidos me perfura, mas ao mesmo tempo, faz o meu coração acelerar ainda mais, deixando o som das minhas batidas ainda mais altas em meus ouvidos.Engulo em seco, involuntariamente, meu olhar desce para seus lábios. “Ele sempre teve uma boca tão bonita assim?” —Me questiono internamente, mordo o meu lábio inferior. Será que são macios? Quentes? A língua... será que... de repente e bruscamente, como se tivesse uma doença altamente contagiosa, ele me solta e se afasta. Cambaleio um pouco antes de retorna ao equilíbrio. Uma pontada de vergonha toma
Ainda, sete meses atrás:Laura Martins:— É feio encarar as pessoas comendo — falo incomodada, observando-o de soslaio. Não sei bem se ele realmente está me encarado, os olhos dele parecem vagos, mas o simples fato de estarem na minha direção já me perturba.— Não estava te encarando — ele diz e se ajeita na cadeira. — Coma logo, quero ir embora — resmunga, cruzando os braços e fixando os olhos nos meus.— A porta da rua é serventia da casa — debocho, levando outra garfada de macarrão à boca, nossa! Que sabor divino, o macarrão está tão delicioso, poderia repetir o prato várias vezes, mas, como não sou eu quem estar pagando, me contento apenas com essa porção.— Está me colocando para fora, de um restaurante que nem seu é? — O ogro pergunta, uma sobrancelha arqueada em incredulidade.— Você quer sair, eu apenas disse para que serve a porta, uai — retruco, não sei o porquê, mas algo me leva a ser groseira com ele... eu acho divertidas as reações dele. — Você já
Ainda sete meses atrás: Laura Martins: Observo os fleches de luz pelo vidro fumê da janela, um silêncio expeço paira dentro do carro, que ao parar no sinal vermelho, não consigo controlar a vontade de expiar o homem estranho – que eu denominei ogro – ao meu lado, o ogro realmente é muito bonito, os seus cabelos pretos desalinhados o deixam ainda mais charmoso, mesmo com o mar gélido nos seus olhos, ele ainda consegue ser o homem mais bonito que eu já vi, mas nunca irei admitir isso para ele. Nunca! Quem diria, se eu o visse cinco dias atrás, nem prestaria atenção nele, pois os meus olhos ainda estavam enfeitiçados pelo meu ex-namorado. — Se continuar me olhando assim, praticamente me devorando com os olhos, vou começar a achar que está interessada — a sua voz me tira dos devaneios, percebo, tarde demais, que estava encarando-o com a boca meio aberta. Pressiono os lábios um contra o outro numa linha reta e volto para parecer indiferente, mas sinto o meu rosto queimar de vergonha.
Tempo atual:Laura Martins:— Ei! Vai ficar me fazendo de cachorro? — Sua voz interrompe meus desvaneios, acompanhada de cutucões na minha bochecha.Fico momentaneamente atordoada, tento processar as suas palavras, mas eu não consegui entender.— O que... o que você disse? — Questiono, a minha confusão transparece na minha voz. Eu me pedir completamente com as lembranças do primeiro dia em que o vi.Ele me lança um olhar impaciente.— Para onde devo te levar? — Ele repete, com uma leve irritação na voz, me vejo obrigada a me recompor.— Ah, sim — respondo, tentando parecer mais segura do que realmente estou. — Bairro Valéria.— Valéria? Sério? — Seus olhos desviam da estrada para mim por um breve momento, suas sobrancelhas se arqueiam em descrença, mas logo retornam para a rua. — Por que você foi morar logo no bairro mais perigoso de Salvador?— Depois que se acostuma, nem é tão ruim — tento dar uma responder de forma despreocupada.Para a minha sorte, ele nã
Laura Martins: — Laura, o que aconteceu no restaurante? O meu filho chegou aqui transtornado! — a mulher começa. Lá vamos nós, penso me preparando para receber o esporro. — O nosso acordo era para você deixá-lo feliz e não ainda mais infeliz! — A voz da mulher ressoar familiar por trás da linha. De onde a conheço... de onde... já sei! É ela! A senhora elegante e gentil de terninho. Cristiane, é esse o nome dela, por que eu não me lembrei assim que vi o ogro? Será que foi o choque por ter sido justo ele? — Está aí? — Cristiane, a mãe do ogro, chama impaciente. — Si-sim! Estou sim — respondo, tentando suar calma, mesmo com o coração disparado. — Então por que não me respondeu? — Questiona. — Eu estava tentando me lembrar de onde conhecia a sua voz — explico e mordo o lábio com vergonha da minha lerdeza. — Você não lembrava que era eu? — Consigo sentir a surpresa em sua voz. — Desculpe — peço envergonhada, provavelmente o nome dela estava no contrato, mas eu só li a parte dos bene
Laura Martins:— Você! — exclamamos juntos, ambos claramente atônitos e, no meu caso, desesperada.Meu coração dispara em meu peito, ecoando um alarme surdo que parece preencher todo o espaço da sala de reuniões. Minhas mãos tremem tanto que mal consigo segurar a bandeja. Diante de mim, com os olhos azuis mais gélidos, que parece até congelar o ar entre nós, que eu já encontrei, está o ogro... não, o CEO da empresa onde trabalho, o mesmo homem em que a mãe me “alugou” para amar. Céus!Seu olhar sobre mim é uma mistura de surpresa e irritação, tão intensa que nesse momento, eu quero desaparecer.A única coisa que consigo fazer é encará-lo com uma expressão que eu só posso imaginar como uma mistura de choque e horror.Sinto os olhares curiosos de todos sobre nós, olho em volta e subitamente me sinto muito pequena. Sinto o peso de cada olhar, julgando, questionando. Procuro por uma rota de fuga, mas a realidade da situação me golpeia com força. Não tem como eu correr.— O que está fazend
Fernando Duarte:Não consigo me concentrar nos desenhos dos designs das novas joias apresentadas nos slides. Na minha mente só vem Laura, especificamente o dia em que nós encontramos pela primeira vez: Sete meses atrás:— Senhor, vim busca-lo — Ana informa por trás da porta.Ajeito o paletó, levanto da poltrona e seguro a maleta com alguns papeis dentro. Saio do quarto e Ana segue atrás de mim, de frente a porta de saída de casa, meus pés travam. Depois de dois anos, sendo perseguido pelas vozes, atormentado pelo passado, torturado pelas lembranças e me sentindo culpado, essa é a quinta vez que saio dessa casa; com o passar do tempo, até a luz do dia começou a me incomodar, ficar no escuro fazia as vozes se calarem.Mas a minha mãe, me tirou de dentro de casa. Ela e a minha irmã, agora sei que foi tudo armado pelas duas, no começo fiquei com raiva, mas agora me controlo melhor.Não quero sair! A minha mente e o meu corpo gritam, aperto com força a alça da maleta,