Alma solitária.
Alma solitária.
Por: Saturno
Introdução

Introdução. 

Nua sobre a luz pálida do luar, completamente ensanguentada e exposta, ela andava a passos calmos sobre o mar de corpos, cantarolando. O ressoar tranquilo e angelical jamais entregaria o turbilhão que se escondia por trás de cada nota. 

"O lobo uiva na floresta à noite

Ele quer, mas não consegue dormir

Lágrimas de fome em sua barriga de lobo."

A Sátira daquele cantarolar soava ofensivo, principalmente para as tantas almas que ali agora fariam morada. Ela no entanto, não se importava.

O peso extra que ela carregava fazia com que suas passadas se tornassem ainda mais lentas. Seu corpo também pesava, seu estômago embrulhava e a náusea parecia se sobressair, suas entranhas se reviraram a cada novo passo, a cada vez que seus pés contornavam mais um corpo, mais um membro decepado, ou até mesmo vísceras e cérebros espalhadas. 

"Oh, está frio na toca dele

Seu lobo, seu lobo, não venha aqui

Você nunca pegará meu filho."

O que se sobressai, no entanto, era o cheiro pútrido do líquido pastoso que revestia a neve antes branca e pura, agora manchada pelo pecado da morte.

Era um cenário macabro, a extensão juntamente a uma pilha de cadáveres existia até onde os olhos pudessem alcançar. Resquícios de magia negra espalhados pelo ar denso também contribuem para todo o cenário. Haviam também as marcas das garras, evidências de como as vísceras espalhadas pelo ambiente haviam sido brutalmente retiradas dos corpos espalhados.

Ainda sim, de nada aquele cenário tinha a ver com seus regorjisos e mal estar. Havia sido uma árdua batalha, e mesmo com seu poder e força, ela não havia saído ilesa, Seu corpo, sua alma, seus poderes.

"O lobo uiva na floresta à noite

Uiva de fome e reclama

Mas eu vou pegar um rabo de porco.

Esse tipo de coisa se encaixa em estômagos de lobo"

Eram tantos corpos no chão, tantos mortos e sangue, e mesmo assim para ela ainda não era suficiente.

E ela sabia que se estivesse apta para andar sobre suas quatro patas, para ver sobre os olhos do seu lobo, para ver através da sua dor, da sua perda e culpa, o estrago seria ainda maior. Porque para ela não era suficiente, não estava nem perto disso, não depois de tudo.

O zumbido incômodo que a acompanhava embaçava seus sentidos, fazendo-a tropeçar sobre seus pés mais vezes do que era adequado naquela situação. A transformação de sua forma loba para a forma humana veio depois de tanto tempo a andar sobre quatro patas, agora ela mal sabia como se equilibrar em duas. Os cabelos longos e de cor prata arrastavam-se como um véu, intocável, esta parecia ser a única parte de seu corpo imaculada. Pois para ela, até mesmo a sua alma apodrecia.

Eternamente aquele lugar seria lembrado, como a tumba daquelas que sucumbiram diante de tua presença.

Ela não podia ouvir com clareza, mas podia sentir, a vibração do ambiente, os sons pungentes e dissonantes da floresta profunda e podia identificá-los, assim sendo capaz de detectar a posição exata de seus opressores, se, algum deles ainda estiver de pé.

O massacre aconteceu e cessou em um piscar de olhos. Algumas bruxas nem mesmo tiveram tempo de pronunciar seu nome, ou até mesmo ver seu rosto. A visão antes da morte, era sempre de um véu, longo e cinzento.

O véu que levava consigo a promessa de muita dor, solidão e morte.

Talvez ela fosse um monstro, não saberia se o fosse.

O tempo todo sem saber de fato o que se é, sem saber para onde voltar faz você ter questionamentos sobre a própria natureza. Não seria diferente com ela.

Ainda assim ela não se arrependia, a cada passo dado sobre os corpos moribundos ela sentia que sua sede por vingança estava sendo sanada.

Agachou-se sobre uma capa estendida sobre a neve, decidindo se cobriria por fim a sua nudez, concluiu por fim que não haveriam vestes suficientes nesse e no outro mundo que conseguiriam cobrir sua nudez, pois a nudez que a envergonha, a nudez que fazia com que ela se sentisse exposta nunca foi a nudez de seu corpo, era a nudez de sua alma que ela desesperadamente desejava cobrir. Uma alma tão manchada e agredida.

Ela só queria poder voltar aos dias em que as coisas eram leves e que o peito não gritava de dor, mas ela sabia que nem mesmo a magia mais profunda traria seus dias mais felizes de volta.

As lembranças eram amargas, seu olhar agora era carregado e suas passadas pesadas demais, ela só queria sair dali, correr para bem longe, seja lá qual fosse o seu destino a partir de agora.

E foi isso o que ela fez, ou pelos menos tentou.

O soar estridente de um choro naquela noite agourenta e macabra impediu-na de prosseguir, ela tentou com todas as suas forças ignorar, mas sua alma ainda clamava por um último ato de bondade, de salvação.

"Seu lobo, seu lobo, não venha aqui.

"Você nunca pegará meu filho"

O que ela não imaginava é que justamente esse choro traria de volta sua sanidade, que justamente esse choro seria sua rendição.

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