Capítulo 03 - A primeira confusão

Os dias foram se passando e continuei exercendo o trabalho na loja com tranquilidade. O senhor Ernie saia de vez em quando, mas sempre que estava presente me ensinava algumas coisas básicas. Geralmente eu ficava responsável por anotar os pedidos dos clientes e fazer algumas entregas, tomando muito cuidado para não cometer nenhum erro. Perséfone estava sempre por lá, ajudando o pai com alguns produtos ou lendo alguns dos seus livros. Não conversávamos muito, e o clima era meio chato.

Um dia, o senhor Ernie resolveu piorar um pouco nossa relação.

- Berth, preciso que deixe alguns produtos para a cabeleireira. Posso contar com você?

- Claro.

- Ah, e quero que leve a Perséfone junto.

Perséfone, que estava misturando alguns líquidos, levantou os olhos minimamente e murmurou um não, desculpando-se por estar muito ocupada com algo importante.

- Eu quero que você saia um pouco, que tome um ar e que procure se divertir. Fiquei sabendo que estão montando uma grande feira na praça central. Você pode pegar o pagamento da entrega e ver se encontra algo que gosta.

- Sim, acho que tem a ver com o aniversário da rainha - completei, ansiosa para que Perséfone aceitasse a proposta e tivéssemos uma chance de nos divertirmos um pouco.

- Eu não gosto desses lugares, têm muitas pessoas.

- Qual o problema com as pessoas? - O senhor Ernie afastou os recipientes, livros e tudo que Perséfone usava nas misturas.

- Quer mesmo que eu responda?

- Não, eu não quero saber das suas besteiras. Você precisa viver.

- Eu já vivo muito bem através dos livros. Lá não temos quebra de expectativa, e se temos podemos ficar tranquilos por não ter sido com a gente.

O senhor Ernie entregou a caixa da entrega para Perséfone e parou de prestar atenção em suas reclamações. Revoltada, ela saiu da loja empurrando a porta com muita força. Apenas segui ela com um imenso sorriso no rosto.

De início, fiquei calada e sem fazer nenhum comentário. Ela estava usando um belo vestido azul claro de mangas longas e detalhes prateados no busto, a saia um pouco abaixo dos joelhos. Talvez, se fosse um pouco gentil, ela poderia me doar algumas roupas velhas. Aproximei-me sorrateira e com as mãos para trás, um brilhante sorriso estampado no rosto. Perséfone simplesmente falou sobre o cheiro insuportável das cerejas que apodreciam no chão.

- Você não quer mesmo ir na feira?

- Eu não gosto de eventos.

- Todo mundo gosta de sair um pouco. Está chateada com algo?

- Por que vocês são assim? Se veem uma jovem que não faz muitos amigos querem rotular ela, acham que tem algum problema. Ela pode não ter nenhum problema e ser apenas o jeito dela. Por que querem obrigar ela a mudar e seguir o que vocês acham que é certo?

- Eu só queria que você ficasse mais feliz.

- O meu ideal de felicidade pode ser diferente do seu.

- Eu sou feliz agora, mas vou ser mais feliz quando conseguir trabalhar confeccionando vestidos. Aliás, talvez você tenha algum vestido velho para mim.

Perséfone não respondeu, ficou reflexiva por um tempo e pensei que o meu pedido havia sido idiota e desconfortável. Comecei a observar a paisagem com mais cuidado, o verde prolongava-se brilhante e intenso, as borboletas voavam e alguns outros insetos como joaninhas e besouros passeavam pelo caminho de terra, sendo esmagados por nossos pés. As árvores estendiam-se majestosas, floridas e abrigando belos pássaros que piavam docemente, as folhas amareladas começavam a cair e manchavam a paisagem, indicando que o outono estava próximo.

- Eu não sei o que quero, na verdade. Me disseram a vida toda que ia cuidar da loja, então acho que é isso que vou fazer - disse de repente.

- Mas você não tem certeza que quer fazer isso?

- Não sei. Mas meus pais querem muito.

- Às vezes a expectativa vem com pressão, e isso estraga o que mais gostamos. Ainda bem que ninguém colocou expectativas em mim.

Entramos no salão em que faríamos a entrega. Era apenas uma sala com umas meninas que faziam penteados exorbitantes ou aplicavam cremes no cabelo. Também havia algumas maquiagens. Uma das garotas que trabalhava pediu para esperarmos enquanto chamava a nossa devedora.

Perséfone começou a resmungar, foi quando duas garotas entraram desejando bom dia e acenando para todos os presentes. Uma delas é a protagonista da história de Perséfone (não a antagonista). Ela teve a oportunidade de contar a própria versão, e todo mundo do vilarejo concordou com ela.

Amália era uma bela jovem, esbelta e alta com longos cabelos castanhos ondulados que caiam até a cintura, olhos cinzas e profundos, pele de porcelana e pequenos lábios rosados. Seus longos cílios curvados, as maçãs do rosto protuberantes, tudo nela era digno de uma legítima donzela, inclusive a parte de ser uma pobre injustiçada pela vida.

Fora abandonada pelos pais na porta de um comerciante da região, ninguém sabia sua real origem. Seu pai adotivo era, no geral, bondoso com ela, mas possuía outros quatro filhos e passava muito tempo viajando. Os quatro filhos do comerciante, claro, eram postos em primeiro lugar e recebiam do bom e do melhor que o pai podia oferecer, enquanto Amália se conformava com o que sobrava. Eu não tinha ouvido histórias sobre seus irmãos a maltratarem, e para alguém adotada por caridade ela se vestia infinitamente melhor do que eu, mas se vai acreditar ou não no que ela contar, você irá decidir quando ler a versão dela.

A outra garota era uma de suas irmãs, Zoe. seu rosto era rechonchudo e os olhos grandes, o nariz pequeno era levemente arrebitado e os cabelos loiros estavam extremamente assanhados e desalinhados. Ela tinha sua beleza, mas seu vestido era listrado verticalmente em azul e branco, e um grande bandô amarelo se estendia bem no meio da saia muito longa, completamente desarmônico. Não parecia má, apenas desengonçada e nervosa.

Uma das mulheres que estava de saída começou a conversar com Zoe, enquanto Amália ficou atrás dela sorrindo com o olhar um pouco baixo.

Essa foi a primeira vez que vi Perséfone arranjar confusão, e consequentemente me envolvi porque saí em sua defesa.

Não sei porque a defendi naquele momento, já que ainda não éramos tão próximas. Acho que concordei com ela, e meu instinto sempre dizia que não era uma boa ideia deixá-la sozinha em certas coisas. Perséfone era incompatível com venenos perigosos, pessoas, padrões de pensamento e gatos.

- Zoe, devia ter me dito que viria - disse a mulher que começou o assunto, uma senhora de uns 50 anos cujos gostos de vestimentas também eram duvidosos.

- Bem, foi de última hora.

- Querida, suas bochechas estão muito gordinhas, não cuidou das olheiras e já estava na hora de consertar o cabelo.

Essa frase, foi essa pequena, horrenda e julgadora frase que causou a explosão. E mesmo depois da faixa na cabeça continuei com a opinião de que Perséfone estava certa.

- Consertar o cabelo? O cabelo dela está com defeito, por acaso? Está quebrado?

- Perdão?

- Eu perguntei se o cabelo dela está quebrado! Oh, minha nossa! Devíamos chamar um técnico para ver qual das peças emperrou - disse com sarcasmo, imitando uma voz de preocupação exagerada. Em seguida, virou-se para Zoe séria e continuou -, talvez quem esteja com defeito foi quem te disse isso, um grave defeito no cérebro. Agora, como podemos consertar?

- Perséfone, você está exagerando - disse ao ver que todos estavam se levantando e a olhando com raiva. Zoe parecia aturdida, sem entender como tudo começara. Amália apenas se afastou e baixou a cabeça o máximo possível.

- Quem você pensa que é para gritar comigo?

- E quem você pensa que é para comentar sobre a aparência da menina desse jeito?

- Sou amiga da família, sua bruxinha deplorável e intrometida.

- Perséfone, vamos embora - falei. Mais gritos se seguiram. - Deixa a entrega aí e vamos.

- VOCÊ! - Perséfone apontou o dedo ameaçadoramente para o rosto da mulher, os clientes observavam a cena com espanto.

- EU!

- Você é uma velha doente que vai a farmácia comprar aqueles cremes de pele mentirosos e fórmulas de emagrecimento. E estaria tudo bem se você não incentivasse garotas como a Zoe a serem obcecadas com a própria aparência!

A mulher deu um tapa forte no rosto de Perséfone, deixando seus dedos bem marcados na bochecha dela. Seu rosto virou-se violentamente para o lado como reação a força do tapa.

- Você não pode bater em alguém mais velho! - Segurei o braço de Perséfone para tirá-la dali, percebido o que ia fazer. Infelizmente ela chutou a canela da mulher, o que causou gritos de indignação e terror, a proprietária veio em nossa direção com as mãos sobre a cabeça e pedindo calma.

Em alguns segundos, todos os presentes estavam encima de Perséfone gritando e jogando coisas. A proprietária via seus pentes serem arremessados, enquanto inutilmente tentava conter a confusão. Não consegui mais enxergar Perséfone no meio dos outros e rapidamente imaginei que estava encolhida abraçando os joelhos enquanto recebia chutes e cascudos. Preocupada, mas sem saber como ajudar, apenas subi na cadeira mais próxima e comecei a atirar pentes, presilhas e qualquer coisa não muito pesada que encontrei.

- Ei! Sai de cima dela! Me desculpe, mas com licença. DESCULPA, SAI DAÍ!

Milagrosamente Perséfone começou a se desvencilhar e ir em direção a porta, cheguei na rua primeiro do que ela e fiquei esperando na frente do salão, ansiosa para que saísse e pudéssemos correr dali. Um burburinho de curiosos se aproximava.

Eu poderia ter ido embora sozinha, ter pedido ajuda, mas não quis deixá-la sozinha em tal situação, então apenas cruzei os dedos e esperei. Antes dela sair, a proprietária me avistou, lembrou-se de ter me visto jogando pentes em seus clientes. Pegou com as duas mãos a caixa com as poções que havia encomendado, eu nem sabia onde tinhamos deixado ela no meio da confusão. Ela jogou em minha direção, acertando minha cabeça em cheio. Com os vidros dentro aquilo se tornara pesado, o que me derrubou com uma pontada no chão, minha visão ficou levemente turva mas juntei forças e comecei a tentar levantar, os curiosos que se aproximavam pisaram dolorosamente em meu tornozelo. Uma, duas, três vezes. Fiquei caída do mesmo jeito.

- AAARGH! PERSÉFONE!

Perséfone pulou por cima do meu corpo e correu o mais rápido que conseguia para longe, deixando-me para trás.

- PERSÉFONE ME ESPERA! - Por mais que tentasse não conseguia me levantar. As pessoas ainda xingavam dentro do salão. Ela já ia muito longe e com certeza não voltaria para me ajudar. Estava perdida.

Minha esperança se reascendeu quando senti alguém me pegar por baixo do braço e levar para longe. Nos escondemos atrás de um muro, em um beco ao lado em que costumavam jogar o lixo. A pessoa me encostou contra o muro e ajudou-me a sentar, ficando de joelhos na minha frente e examinando meu tornozelo.

- Você está bem?

- Amália?

- Eu sinto muito, talvez eu possa ajudar a fazer um curativo.

- Não, não precisa.

Amália limpou uma lágrima solitária.

- Eu estou bem. Juro.

- Eu odeio brigas e esse tipo de coisa. Você e sua amiga poderiam ter se machucado feio.

- Eu sei. Obrigada por me tirar de lá, agora eu preciso voltar para a loja.

- Além do seu tornozelo sua testa está sangrando. Me deixe te ajudar a chegar lá.

Mais uma vez Amália me ajudou a levantar, e apoiada nela consegui dar pequenos passos trôpegos até chegarmos na loja

Ernie estava cuidando de uns arranhões nos braços de Perséfone, perguntando exasperado o que significava tudo aquilo. Quando entramos ele se dirigiu rapidamente a mim; surpreso por me ver num pior estado começou a agradecer aos céus por eu estar viva. Perséfone apenas levantou os olhos, assustadíssima como se tivesse visto um fantasma. Provavelmente se esquecera de mim no meio de toda aquela confusão.

Um pouco zonza, senti quando me sentaram em uma cadeira e Ernie me examinou rapidamente. Pediu que mantivesse a calma enquanto ia lá atrás preparar uma solução rápida.

- Você esqueceu de mim. - Encarei Perséfone, soando mais penosa que revoltada.

- Eu não esqueci de você. Eu precisava sair de lá. Como ia saber que ainda estava esperando pra apanhar?

- Você pulou por cima do meu corpo.

Perséfone piscou rapidamente e cruzou os braços, assumindo uma posição defensiva. Apesar dos arranhões meu estado era muito pior que o seu.

- E como foi que você entrou na briga!? Era problema meu!

- Estava te defendendo!

- Não preciso que me defenda!

Desviei o olhar dela, envergonhada e com raiva. Esperava ouvir pelo menos um "obrigada". Naquele momento pensei que teria sido melhor correr como uma covarde do que ter esperado por ela, que além de ter me esquecido me tratava daquela forma.

Amália permanecia de cabeça baixa, o olhar triste, bastante embaraçada pela situação.

- Obrigada pela a ajuda, Amália - enfatizei.

- Você concorda? - Perséfone perguntou.

- O quê? - Amália a encarou pela primeira vez.

Em paralelo, eram uma princesa e uma bruxa encarando-se olho a olho antes de suas vidas interligarem-se por completo. Eu estava lá vendo tudo, a personagem secundária embutida ao cenário, sangue escorrendo pela testa e o tornozelo torcido, vestido enlameado e baba escorrendo pelo canto da boca.

- Você concorda com a minha atitude?

- Eu não gosto de brigas.

- Mas não acha que foi errado o que aquela mulher disse com a sua irmã?

- Sim, claro. Mas elas se conhecem, não foi por maldade.

- São essas coisas que dizem sem maldade que encasquetam na mente, que prejudicam uma garota mais tarde, fazem ela se sentir insuficiente, errada...

O senhor Ernie voltou com uma faixa para minha cabeça e uma pomada, Perséfone parou de falar. Ela parecia entender bastante sobre esse assunto, e obviamente lutava muito por aquilo. Era indiferente as coisas mas armou uma briga por Zoe, alguém que ela mal conhecia. A única explicação é que o comentário maldoso que Zoe recebeu também afetou Perséfone de alguma forma, embora eu não soubesse como.

- Eu preciso ir para casa agora, espero que fique bem, Berth. Se eu puder ajudar de alguma forma pode falar comigo. Eu concordo com você, Perséfone, mas não teria resolvido da mesma forma. Até outro dia.

Um longo silêncio reinou após a saída de Amália, o senhor Ernie continuou cuidando da minha cabeça.

- Eu não vou perguntar o que aconteceu, agora preciso cuidar das duas; principalmente de você, Berth.

- Está tudo bem, senhor. Não precisa se preocupar comigo.

- Preciso sim. Você estava trabalhando pra mim quando se machucou, é o mínimo que posso fazer.

- Não foi sua culpa.

- Eu imagino de quem é a culpa, Berth. Mas não vou discutir isso agora. Se recuperem, e teremos uma séria conversa amanhã.

O olhar de Perséfone encontrou-se com o meu, após me encarar alguns segundos ela baixou os olhos. Não sei se é uma invenção minha, mas escolhi acreditar que foi o seu pedido de desculpas.

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