Capítulo 3

O medo percorreu todo o meu corpo.

Eu olhava para a foto, me via, mas não reconhecia o lugar ou quem poderia ter tirado o retrato.

Vi Tadeu e Carlos se afastarem gradativamente, dando espaço não somente para os coveiros continuarem a trabalhar, mas também para a minha perturbação visível com o que acabara de acontecer.

Todos estavam perplexos, porém ninguém mais que eu. 

Respirei fundo... Uma, duas e na terceira vez, algo estalou em minha mente.

Olhei novamente a foto, dessa vez com muita atenção, reparando em todos os detalhes.

Roupa, cenário, o que exatamante eu fazia quando fui fotografada e de repente algo aconteceu.

A mulher da foto, não era eu. 

Nossa aparência era muito semelhante.

Tínhamos o mesmo tipo de cabelo, o mesmo peso, a mesma cor da pele, contudo não era eu quem estava sentada na cadeira comendo um pedaço de bolo na frente de um computador.

Era uma mulher que desconhecia totalmente e todo o meu pavor se tornou clemência.

Clemência por saber que a mulher da foto, não poderia imaginar que estava dentro do jazigo de minha família e clemência porque seja quem fosse, algo de terrível tinham feito espiritualmente contra ela.

Essa era a única explicação aparentemente. 

Minha respiração, foi voltando ao normal e uma tranquilidade me assolou.

Evidentemente estava feliz e aliviada por descobrir que não estava ma linha de frente.

...

-Ufa! Não sou eu.... Caramba, quase caí durinha no chão.

Tadeu e Carlos riram a distância, assim como os coveiros e comecei a ficar preocupada.

Aquela mulher da foto precisava saber o que estava acontecendo e a pergunta que me atormentava era como a encontraria?

Virei a fotografia em busca de qualquer informação ou data, porém para minha surpresa, cinco nomes estavam escritos entre cruzes.

Dois deles eram de homens e três de mulheres.

Imeditamente, soube que um desses nomes femininos poderia ser a da mulher da foto.

- Olha... Tem alguns nomes aqui atrás. - Disse para Tadeu e Carlos, mas os dois pareciam imersos em um cochicho mútuo.

Li algumas vezes para tentar decorar os nomes, mas sabia que assim que saísse dali, esqueceria imediatamente  e mesmo sendo impactante o que via diante de meus olhos, resolvi tirar uma foto.

Pelo menos com a foto da foto, meu objetivo seria procurar essas pessoas na internet.

Tirei meu celular da bolsa e fotografei ao menos cinco vezes, para certificar-me de que as teria quando precisasse.

A essa altura a exumação da minha avó já tinha sido terminada e seus ossos encaixotados e lacrados.

...

Caminhamos de volta em silêncio para onde Danúbia e mamãe nos aguardavam com toda a documentação.

Perdida em pensamentos conflitantes indagava-me constantemente se deveria procurar a pessoa ou não me meter nos assuntos espirituais dos outros, afinal o medo que tinha de mexer com tais coisas era tão grande quanto a vontade de saber quem era a mulher da foto.

Deveria ter esquecido a foto.

Fingido que nada aconteceu e deixar exatamente aonde ela estava, mas algo me dizia que tudo o que estava acontecendo não era apenas o acaso.

Pensei no quanto gostaria de saber que meu nome e minha fotografia haviam sido encontrados dentro de um jazigo e o tamanho que seria a minha covardia em não procurar a pessoa, fingindo simplesmente que nada aconteceu.

Certamente, me enquadraria no mesmo nível de maldade de quem havia feito a malignidade.

No entanto, não comentei com mamãe o ocorrido com a foto e achei que Tadeu ou Carlos por ventura falasse com Danúbia, mas isso não aconteceu, pois todos estivam reclusos em suas próprias perdas deixando para depois, os assuntos secundários.

.....

Mais ou menos duas horas de espera, Danúbia recebeu uma mensagem no celular, que vinha da cunhada dizendo que o corpo do irmão estava liberado para o velório e que estava a caminho para as despedidas.

Assim que foram informados o número da capela nos encaminhamos imediatamente para lá.

Eugênia e os filhos chegariam em breve e com certeza após dez anos sem os ver, infelizmente nos reencontraríamos em uma situação dolorosa.

No entanto, para mim era o funeral de um primo distante.

Para eles, era um pai, um marido, um irmão e um primo que merecia uma despedida cheia de homenagens.

....

Quando chegamos na capela indicada para o velório, a esposa e os filhos de Zeto ainda não tinham chegado, então nos acomodamos e apenas aguardamos.

Ao lado da capela onde estávamos haviam tantas outras abertas, com velórios que já aconteciam. 

Não sei porque, mas fiquei imaginando no quanto a morte era altamente lucrativa.

O cemitério arrancava das pessoas na hora mais triste de suas vidas, todas as economias  possíveis e isso ficou evidente na hora em que mamãe precisou passar o cartão de crédito.

Cheques, cartões, boletos...

A quantidade de gente desembolsando dinheiro para enterrar seus entes apenas nos poucos minutos que estive presente na secretaria do cemitério, era absurda.

Por um lado, era um excelente negócio.

Jamais cemitérios vão falir, pois jamais deixaremos de ter mortos para enterrar ou cremar.

Definitivamente, se tivesse um pouquinho de coragem, investiria em funerária ou crematório que funcionaria dia e noite.

...

Mamãe me cutucou com o braço e a olhei espantada.

- O que você está pensando que está sorrindo?

- Eu sorrindo? - indaguei sem graça.

- Eliza...Pelo amor de Deus, estamos nos cemitério... Do que você está sorrindo?

Eu não havia reparado que estava sorrindo. Por que estava sorrindo?

- Mãe, estava pensando em como a morte é lucrativa, assim como a prostituição.

- O que? - Mamãe me beliscou dessa vez, sem acreditar no que ouvia.

- Você está maluca?

- Não... Só pensando.

- Então não pense nessas besteiras. Prostituição ou morte? Parece maluca, menina.

Quando mamãe terminou de me repreender sobre meus devaneios, vimos três pessoas entrarem juntas na capela.

Duas mulheres e um homem.

Imediatamente reconheci a esposa do defunto acompanhada pela filha e logo atrás meu primo de terceiro grau, Cristiano.

Quando prima Danúbia se aproximou para cumprimentar a todos, os familiares simultaneamente se abraçaram expondo a força que teriam que ter naquele momento tão difícil. 

Porém algo não estava certo naquilo tudo.

Eu não sabia exatamente o que era, mas não haviam olhos vermelhos ou inchados, assim como lamentos para quem partia.

Eugênia, a esposa parecia muito mais velha do que realmente era.

Seu corpo magro, curvado, e o rosto abatido a envelheciam pelo menos vinte anos.

Fiz uma conta rápida de cabeça e deduzi que a cônjugue não tivesse mais que sessenta anos, mesmo aparentando ter setenta e cinco.

Eu não sabia se a morte do marido tinha lhe envelhecido em uma noite ou se eram apenas os anos abatendo-se violentamente sobre ela.

O seu cabelo grisalho talvez justificasse sua aparênci, mas não era isso.

O filho do casal, Cristiano estava irreconhecível.

Quando novo, era magro como a mãe e alto como o pai.

No entanto, agora ele estava pesando ao menos cento e trinta quilos e parecia um bicheiro.

Seu aspecto estava horrível. 

Na mão direita, usava duas pulseiras grossas de ouro que reluzia mais que a lâmpada mágica do Alladin.

No pescoço um cordão de prata parecia uma corrente de cachorro feroz.

No pulso direito, o relógio era tão grande que dava para ser confundido com uma bússula.

Suas roupas visualmente lhe diziam o quanto brega ele era.

A blusa larga e a calça jeans surrada entravam em conflito com o tênis vermelho, igual ao de um jogador de futebol.

O óculos escuro estilo Mib lhe dava uma sensação de poder, o que de fato não acontecia. 

Nas bochechas haviam várias espinhas e sua pele café com leite desbotada não combinava muito bem com o cabelo cheio de gel.

Olhei para Cristiano, sem conseguir disfarçar o meu constrangimento e por termos dezenove anos, mesmo que ele parecesse quarenta e dois. Era uma genética horrível.

Ele estava mais para aqueles caras com três divórcios nas costas que pagam pensão para mulheres diferentes, porém para nenhum filho.

Foi exatamente essa a pessoa que vi na minha frente, e não aquele primo que brincava comigo e com os demais quando éramos menores.

...

Já a irmã Lorena, também não era grande coisa e não estava muito diferente do irmão.

Seu cabelo crespo na altura dos ombros, parecia molhado de tanto creme ou gel, ainda não tinha conseguido distinguir.

O cheiro de pêssego do condicionador ou do perfume que usava inundou a capela, assim que ela entrou.

Ao contrário de Cristiano, ela não estava de óculos escuro ou repleta de cordões e pulseiras.

A simplicidade era acompanhada pelo abatimento de suas expressões.

A impressão que tive, foi de que Lorena, era a única que sofria pela morte do pai. 

Assim como a mãe, ambas frequentadoras fervorosas de igreja, Lorena vestia uma saia até o joelho, do mesmo tipo que Eugênia.

A única diferença estava na cor.

A blusa era de gola e cobria o peito e os braços até os pulsos.

Para o calor que estava fazendo, seria capaz de montar um bolão de apostas com mamãe para saber quanto tempo elas aguentariam ficar com tais vestimentas, apesar do céu nublado.

....

Enquanto, observava atentamente cada um deles tive a rápida sensação que não fui reconhecida.

Será que tinha mudado tanto assim em dez anos?

Portanto, prima Danúbia foi quem fez as honras.

Eugênia me deu dois beijinhos.

Lorena também me cumrpimentou e Cristiano não se aproximou.

Ele apenas acenou a cabeça, indicando que havia me visto e que era o suficiente para dizer "oi".

Sem entender nada, acenei reciprocamente e logo em seguida ele se retirou da capela, enquanto eu sentava ao lado de mamãe novamente.

...

Assim que o corpo chegou trazido pelo carro da funerária, um funcionário do cemitério disse que o velório terminaria dentro de duas horas e tão logo o corpo foi rodeado pelos familiares e amigos que chegavam gradativamente.  

Eu não sabia se Cristiano estava tentando lidar com a dor da perda do pai, porém mesmo depois do velório ter começado, ele não entrou na capela para se despedir.

As pessoas que prestavam as últimas homenagem a Zeto, envolveram o caixão de madeira.

Olhei rapidamente para o defunto, não queria proximidade ou despedidas com toques.

Respeitava a dor de todos, mas via tudo de longe sem o mínimo desejo de me aproximar do que estava acontecendo.

Tadeu e Carlos se juntaram a Cristiano desde o momento em que ele havia chegado.

O trio parecia muito íntimo e não eu sabia exatamente qual a relação dos três homens.

Tadeu falava quase sussurrando no ouvido de Cristiano, enquanto Carlos acendia um cigarro que para minha surpresa, fora dado para o sobrinho.

Achei aquilo tudo muito estranho. Era como se fosse uma cena de O Poderoso Chefão, porém  continuei quietinha, apenas observando.

De vez enquando eles me pegavam olhando em suas direções e rapidamente eu mudava o foco. 

Definitivamente, não me sentia a vontade estava com aquelas pessoas.

....

De repente uma mulher tão gorda quanto Cristiano apareceu diante de meus olhos.

Ela usava um micro shortinho branco, expondo nas coxas incontáveis celulites.

A blusa de cor preta tinha espumas nos seis e era colado no corpo obeso.

A alça nos ombros dava a impressão de que iria rasgar a qualquer momento sem conseguir sustenta o peso dos seios. 

No rosto, o batom vermelho e os olhos carregados de maquiagem preta faziam dela uma fugura incomum no lugar e na hora errada.

Ela estava de chinelo branco e mascava um chiclete de boca aberta.

Uma aliança no dedo anelar esquerdo contrastava com suas unhas verdes e alongadas. 

Confesso que por alguns segundos cogitei a ideia da amante e da esposa do defunto estarem no mesmo lugar.

Porém, logo minhas dúvidas foram esclarecidas.

Ela agarrou Cristiano pelo pescoço e deu-lhe um beijo de língua para ninguém colocar defeito, deixando todo mundo constrangido.

Mesmo quem não queria ver, não conseguiu evitar olhar.

O casal tinha um aspecto muito sombrio.

Tinha uma coisa estranha no ar e eu ainda não conseguia identificar.

Dava para perceber que a mulher era tão vulgar quanto a aparência esquisita de Cristiano e talvez fosse por isso que se completavam.

....

Alguns minutos depois, mais amigos do primo Zeto chegavam para se despedir e ao meu lado sentou um homem, que vi sendo abraçado por Eugênia e a Lorena.

- Posso me sentar aqui? - Ele perguntou.

- Claro. Por favor. - Cheguei para o lado dando-lhe espaço.

- Você é amiga também do Zeto? - Ele puxou assunto, com os olhos umedecidos.

- Sou prima. Quer dizer, ele era primo de minha mãe.

- Entendo... Sabe, estou inconformado com a morte dele.

Eu percebi que o homem queria desabafar e então deixei, já que não podia mais escapar.

- Danúbia disse que foi de repente. 

- Não. Não acredito nisso.

Olhei para aquele homem desconcertada.

- Como assim?

- Eu não sei, mas Zeto estava muito bem de saúde. Ele não infartaria de uma hora para outra.

Respirei aliviada, imaginando em minha cabeça, um possível assassinato. Bobagem!

Ali estava um homem triste pela perda de seu amigo e inconformado com sua partida.

- É assim mesmo. Uma hora a gente está bem e na outra puf. Morre.

O homem olhou para mim, franzindo a testa e perguntei-me mentalmente se tinha feito o comentário na hora errada.

No entanto, ele voltou a olhar para dentro do caixão, onde Zeto estava pálido e sem vida.

- Tenho por mim, que isso foi coisa da nora dele. 

- A esposa de Cristiano?

- Sim. Você a conhece?

- Não exatamente. Só sei quem é porque chegou e cumprimentou o marido.

- Pois é. Aquela víbora! - Ele disse a palavra víbora entre os dentes.

- O que quer dizer com isso?

- Ela não presta e só queria o dinheiro do sogro. Ela, o filho, a esposa. Acho que a única que se salva é Lorena, mesmo assim tenho minhas desconfianças.

Tudo o que aquele homem desconhecido estava jogando em cima de mim, era muito estranho, afinal não nos conhecíamos, apesar de começar a achar que ele era mais que amigo de Zeto.

...

Voltei meu olhar para aquela mulher que continuava agarrada no pescoço do meu primo, enquanto na outra mão consumia um cigarro atrás do outro.

Ela fazia questão de olhar de cima a baixo todo mundo que chegava no velório, inclusive as pessoas que cumprimentavam Cristiano passando por ela, como se fosse insignificante.

De qualquer maneira, seus olhos mostravam algo diferente. Não sabia explicar.

Tentava não olhar para ela, mas era difícil.

Algo me atraía para aquele ser humano medonho.

....

Quando o mesmo funcionário que antes disse termos duas horas para o velório, agora voltava para comunicar que era a hora do enterro e o homem ao meu lado que falava coisas que para mim, não faziam o menor sentido, levantou e saiu da capela.

Por mais estranho que pareça, não o vi mais. 

...

Do lado de fora, outros caixões estavam sendo levados para o cemitério.

Era um ambiente desolador. Muito choro, muitas lágrimas e muita gente tristonha.

Pessoas transitavam para lá e para cá e em momento algum vi a mulher de Cristiano cumprimentar a sogra.

Parecia que as duas não se gostavam. 

No entanto, apenas mantive-me longe, de olho em mamãe enquanto ao meu redor coisas que não compreendia começavam a acontecer.

Quando finalmente, o corpo de Zeto foi enterrado no jazigo da família Alves, as pessoas logo se dissiparam e para mim, já tinha sido o suficiente. 

Exumei vovó, encontrei uma foto dentro de onde meu familiares estavam enterrados, reencontrei pessoas que há muitos anos não via e conversei com um homem estranho que se quer acompanhou o corpo de Zeto ser enterrado.

Isso tudo antes mesmo das três da tarde.

Agora, tinha em mãos outra tarefa.

Encontrar a mulher da foto e contar-lhe o que havia acontecido para que pudesse tomar providências.

E mesmo sem saber no que exatamente me enfiava, não desistiria de encontrá-la facilmente. 

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