Capítulo 2

Coloquei mamãe sentada para que pudesse recuperar o fôlego por ter subido a escada.

Prima Danúbia foi até o balcão de atendimento, antes de entrar na fila imensa que se fazia a nossa frente em busca de informações.

O primo Zeto por ter falecido em outro Estado, precisava ser transportado para a cidade em que residia, ou seja, o Rio de Janeiro e com isso a papelada de transporte do corpo era imensa e complicada.

A mulher Eugênia e os dois filhos do casal, já tinham resolvido os documentos necessários para o transporte do corpo.

Cabia agora, Danúbia resolver o enterro, que só seria possível se eu ou mamãe exumássemos o corpo de vovó Adélia.

- Alô! - O celular de Danúbia tocou antes mesmo que ela pudesse perguntar algo para a atendente. Enquanto eu, ocupava um lugar na fila, onde mais ou menos dez pessoas estavam a minha frente.

Mamãe no entanto, permaneceu sentada e bebendo água.

- Sim, Eugênia...Já estamos aqui. Noemia e Eliza vieram para ajudar a resolver o enterro. Fique calma.

Danúbia me olhou e balançou a cabeça, indicando que não estava com paciência para a cunhada e seus ataques nervosos.

Foi então que ao desligar o celular, se aproximou do balcão fazendo alguma pergunta da qual não conseguia ouvir, já que seu tom de voz era baixo e muitas outras pessoas falavam ao mesmo tempo.

Em seguida, veio em minha direção. Mamãe que estava atenta, logo se levantou juntando-se à nós duas.

- Eugênia disse que o corpo de Zeto chegou na cidade, mas que a funerária só vai liberar o velório com a papelada necessária.

- Então temos que resolver isso logo. - Disse mamãe objetivamente.

- Sim. O corpo viajou a madrugada inteira. Não tinha como resolver antes.

- O que é preciso fazer, prima Danúbia? - Perguntei ansiosa.

- Bom, estamos aqui na fila para pedir a autorização da exumação da dona Adélia que você ou sua mãe vai precisar assinar. Assim que eles derem essa autorização, você terá que acompanhar a retirada dos restos mortais de sua avó. Depois disso, vai voltar aqui para que eles mandem o comprovante da exumação para a funerária, alegando que o corpo pode ser enterrado. A funerária, então libera o velório.

Nossa! Eu estava cansada só de ouvir as etapas teóricas que precisaria concluir.

- Você sabe quanto custa para exumar? - Perguntou minha mãe Noemia para a prima.

- Ué?! - Disse espantada. - Se o jazigo é da família, por que temos que pagar a exumação? Não é só tirar o corpo? 

- Eliza... - Mamãe disse com amabilidade. - A exumação é um serviço a parte que o cemitério propõe. É pago, como o enterro, a geladeira e todo o resto.

- Pois é. Por causa disso, Eugênia está uma pilha de nervos. Zeto tem plano funerário, mas não cobre a geladeira, o transporte e nada do que precisou ser feito.

- O que cobre então? - Perguntei quase indignada.

- Acho que metade do enterro, pois tem uma parcela a parte que não entendi muito bem. Eugênia é quem sabe os detalhes. O que sei, é que a mulher está uma fera.

- Imagino... - Mamãe arfou, sentando novamente no lugar em que estava antes, dessa vez acompanhada por Danúbia.

Permaneci na fila em pé, olhando atentamente cada pessoa que entrava na sala em busca de informações.

Cada uma com seus problemas particulares e burocráticos.

Vi uma mulher assinar cerca de vinte papéis.

Gente chegando com documentos de cremação não resolvidos, outras para saber sobre gavetas, reclamações sobre atraso de velórios e muito mais.

Cada um no seu mundo, no celular, com olhos inchados, vermelhos, rostos abatidos, pessoas perdidas nos próprios pensamentos, se endividando para enterrar entes queridos e outras entrando em desespero por descontos que ainda sim, não eram o suficiente.

Eu não tinha ideia de quanto custava uma exumação ou como era feito, pensando apenas no estado de minha falecida avó.

......

Quando finalmente chegou a minha vez, a prima Danúbia logo voltou para o meu lado e com ela, alguns documentos emitidos pela própria funerária.

Ela apresentou para a balconista que pegou os papéis e em seu computador digitou coisas tão rápidas quanto a velocidade da luz, para logo depois ir até a copiadora e a impressora.

Com uma agilidade incrível, tirou várias cópias dos documentos recebidos e impimiu outros tantos voltando para o seu lugar, na nossa frente do outro lado da mesa.

- É a senhora quem vai fazer a exumação? - A atendente perguntou sem olhar nos nossos rostos.

- Não. É ela! Filha da minha prima.

A moça unifromizada de azul marinho, muito bem maquiada e de coque no cabelo me olhou entregando-me um papel.

- Assine aqui por favor.

Assinei duas folhas e em seguida, fui bombardeada de mais informações.

- Você vai levar esse papel para o cemitério, onde já estão te esperando para fazer a exumação. Vai ver uma guarita assim que entrar. Os coveiros vão te guiar até o local e vão efetuar o trabalho. Depois, esse papel precisa ser assinado pelo supervisor e trará de volta para cá, certificando que a exumação foi feita e que ocorreu tudo bem. Você entendeu?

- Sim... 

Eu tinha entendido, mas não podia negar... Estava atordoada com a quantidade de coisas para fazer antes mesmo das onze da manhã.

- Como vai ser o pagamento? - A atendente me questionou.

Prima Danúbia foi até mamãe que rapidamente, tirou o cartão de crédito da bolsa me entregando, dizendo que era para dividir em pequenas parcelas, se fosse possível.

- O valor é de dois mil e quinhentos reais.

- Por uma exumação? - Exclamei tão alto que quase todo mundo me olhou.

- Sim. - A atendente parecia inabalável.

- Mas não é só para o tirar o corpo? - Eu estava totalmente surpresa e não percebi quando mamãe se aproximou.

- Passa esse cartão logo, Eliza - Falou entre os dentes.

- Você ao menos parcela esse valor? - Perguntei com a raiva pulsando dentro de mim. Achava um absurdo pagar pelo o que já estava enterrado.

- Sim. Em dez vezes. Vai querer? - A audácia da atendente quase me fez agredi-la, porém diante da situação, precisei controlar-me, afinal aquilo não era um fast food.

Eu não podia procurar outro lugar pelo simples fato de ter sido mal atendida ou por ter achado o serviço ruim.

- Por favor, parcele. - Disse com fogo nos olhos.

Mamãe quando viu que a situação estava sob controle, voltou para a cadeira que estava sentada e aguardou.

Passei o cartão, digitei a senha e  quando o comprovante saiu conferi na minha notinha o valor e as parcelas exatas.

A atende mal humorada ficou ainda mais irritada com a minha desconfiança e petulância.

É obvio que não estava com raiva dela.

Só achava um absurdo pagar para exumar minha avó Adélia depois de dez anos, pois como parte do jazigo que era da família, acreditava que o serviço tinha que estar incluso no preço que era pago mensalmente ao cemitéro pelo falecido primo Zeto.

- Pronto. Guarda isso mãe. - Entreguei-lhe o cartão gold.

- Eliza... - Chamou a prima Danúbia que estava agora na porta da sala com dois homens.

- Sim! 

- Esse aqui é o Tadeu amigo do Zeto e esse é irmão de Eugênia, Carlos.

Apertei a mão dos dois homens com idade similar de cinquenta anos. Ambos muito bem vestidos e aparentemente inconformados com a perda de Zeto.

Logo depois, eles foram cumprimentar minha mãe, que os conhecia de longa data.

- Noemia que coisa boa te ver! - Exclamou Tadeu.

- Verdade! - Mamãe os abraçou como se fossem velhos amigos.

Fiquei feliz ao ver que mamãe mantinha uma relação boa com aquelas pessoas, mesmo que os anos tivessem os separados.

- Eliza, querida.. - Disse prima Danúbia.

- Sim...

- Eles vão te acompanhar até o cemitério. Você se importa? Sua mãe disse que você nunca passou por isso. 

- Claro ! Vai ser ótimo ter companhia.

Todos riram da minha reação tensa, mas no fundo agradecia a sorte por duas pessoas que  nunca tinha visto na vida me acompanharem na exumação.

- Filha, vou ficar aqui com a Danúbia te esperando. Até porque, depois vai precisar voltar para cá.

- Ok mãe. Eu já volto. - Disse dando-lhe um beijo e saindo da sala com Tadeu e Carlos.

..............

Descemos a escada enquanto ouvia Tadeu e Carlos tagarelarem sobre as últimas lembranças que tinham de Zeto, assim como as piadas que trocavam e as histórias que me faziam sorrir.

Passamos pelo pátio, pelo chafariz, novamente avistei carros entrando e saindo das capelas, demos a volta e pronto. Estávamos na parte de trás do cemitério, exatamente na guarita que a atendente mencionou. 

Bati na porta entrando cautelosamente e tudo estava vazio. Apenas alguns coveiros me olharam entrar e curiosamente vieram falar comigo.

- Oi menina, você quer alguma coisa?

- Ah sim. Preciso achar o supervisor dos coveiros para uma exumação.

Eles me olharam pedindo para ver o papel que estava em minhas mãos.

- Sim, claro ! Recebemos a instrução de que haveria uma exumação agora. Seu nome é Eliza, né?

- Sim, sou eu!

- A exumação é de Adélia Alves. - Ele confirmou olhando a papelada.

- Isso mesmo. Minha avó.

- Ok. - Ele se virou e gritou para dois homens que estavam mais afastados.

- José! Amilton! Venham aqui !

Os dois vieram quase correndo e logo receberam a localização do jazigo com numeração e corredor.

- Por favor, nos acompanhe. - Disse um dos funcionários.

Tadeu, Carlos e eu fomos andando atrás dos dois coveiros intitulados para fazer a exumação. Eles nos guiavam em total silêncio e com passos sincronizados.

Conforme fui andando, observava tudo ao meu redor, principalmente as imagens que ficavam em cima dos túmulos, indicando que alguém jazia naquele lugar.

Algumas eram de tanto sofrimento que chegaram a me impactar, como por exemplo a figura que simbolizava a morte sinalizando para que Jesus deitado pudesse passar. Como se dissesse levanta-te e anda-te ou coisa parecida.

Em outra, duas estátuas de freiras ajoelhadas, cada uma com a cabeça apoiada nas próprias mãos com expressões de lamento diante do túmulo.

Era como se além de protegerem o defunto, também estivessem inconformadas com a morte.

Eram tantas estátuas, que contavam inconscientemente histórias, que quase fiquei desnorteada e quando reparei, os coveiros indicaram que havíamos chegado até o jazigo dos Alves.

- É aqui ó!! - Exclamou um deles. 

Olhei para o jazigo da minha familia todo feito em mármore preto, sem arranhões ou qualquer pedaço quebrado nas pontas ou nas bordas.

Um material de alta qualidade tendo acoplada na cabeceira da tampa, uma cruz. 

Pela primeira vez, estava na frente do santuário em que minha família descansava e que certamente abrigaria várias outras gerações.

Olhei de perto e deparei-me com a foto de meu avô quando moço. Ao lado, também tinha de  minha avó aparentemente com a mesma idade do marido e uma terceira, do pai de Zeto que nunca conheci.

Três corpos. Três entes. Três familiares amados, enterrados e cuidados mês após mês. Ano após anos, por aquele que agora necessitava de descanso eterno, o primo Zeto.

Algumas perguntas me atingiam bem na boca do estômago.

Como nunca soube que tínhamos um jazigo? Ou que alguém cuidava de nossos mortos?

Talvez se soubesse antes, teria vindo conhecer, ajudar Zeto a cuidar e zelar pelos familiares e quando novamente meus pensamentos me levavam para outro lugar, fui trazida de volta, dessa vez por Carlos. 

- Eugênia disse que Zeto mandou fazer uma nova cruz.

Instintivamente, olhamos todos para a cruz acima do jazigo, sem saber exatamente quanto tempo isso acontecera, já que a peça de mármore por alguma razão estava inclinada para o lado dando a impressão de que caía.

Tive certeza de que nos perguntávamos mentalmente a mesa coisa: Como foi que aquela cruz inclinou para o lado?

.....

- Podemos começar? - Perguntou um dos coveiros, me fazendo assentir positivamente.

A tampa pesada de mármore foi arrastada para o lado com certa dificuldade pelos dois coveiros silmutaneamente, até que descobrisse totalmente o sepulcro.

Pelo visto, o mármore não era somente bonito, mas também muito pesado.

Imaginei grandes insetos saindo de onde estavam os corpos, igual ao filme A Múmia, estrelado pelos atores Brendon Freize e Rachel Weisz, porém o máximo que aconteceu foi o clarão de um dia nublado iluminar o que há dez anos estava fechado.

Carlos e Tadeu permaneceram ao meu lado, enquanto os dois funcionários do cemitério começaram a remover pedaços do caixão de minha avó.

Um deles precisou entrar no jazigo para que o trabalho fosse mais eficaz, fazendo minha mente borbulhar com inúmeras perguntas. Eu simplesmente não conseguia me concentrar em mais nada. 

Resolvi dar dois passos para trás, pois não queria sentir cheiro ou ver alguma coisa que pudesse me impressionar.

A distância em que estava permitia-me continuar a ver o que acontecia.

Os coveiros retirando apenas pedaços de madeira que se desfaziam ao ser pegos, nos alertava. 

Pensei no quão mesquinha fui, ao me irritar por causa do dinheiro que mamãe precisou pagar para a exumação, pois era evidente que entrar no jazigo, mexer em corpos que se decompunham ao longo dos anos não era um trabalho para qualquer indivíduo. 

Eu devo ter ficado imersa em meus próprios pensamentos de modo tão alienado, que quando Tadeu olhou para mim, logo se preocupou com meu bem estar.

- Sim...Estou bem. - Respondi com um sorriso falso, tentando disfarçar uma força da qual no momento não tinha.

Carlos também me olhou preocupado, porém a tarefa a nossa frente não parou.

O empenho e a dedicação dos coveiros em tirarem o que estava dentro do jazigo era surpreendente.

A rapidez, a praticidade, o mínimo de pudor ou desconfiança de que em algum momento fossem agarrados pelos pés e arrastados por aqueles que eram exumados não existiam.

Naquele momento, eles eram os verdadeiros heróis para mim.

De repente, vi um pedaço de pano sair de dentro do jazigo. O coveiro entregou ao seu companheiro de trabalho, um pedaço de roupa feminina velho, rasgado e detonado pelo tempo. Dentro da roupa surrada, havia um fêmur.

Coloquei a mão na boca, evitando que o meu choque fosse percebido pelos demais, porém em vão.

Um nó se formou em minha garganta, e eu soube que aquele osso era da minha falecida avó.

O outro coveiro, que recebia os ossos, colocava tudo dentro de uma caixa grande e branca. Era exatamente ali, que agora ficariam os restos mortais de vovó Adélia.

O trabalho não parava. Mais ossos, mais pedaços de roupa velha e quando não podia piorar... Um chumaço de cabelo louro.

Virei de costas sem acreditar no que via. Senti minhas pernas tremerem e meu coração palpitar aceleradamente quando novamente algo me chamou a atenção.

- Eeeii !! - Alertou o coveiro de dentro do jazigo. - Peguem aqui ! 

Ora bolas, o que exatamente ele queria que pegássemos? Eu não pegaria absolutamente nada que viesse de dentro daquela tumba, porém para minha satisfação, Tadeu se aproximou para ver o que o coveiro queria.

- Olha! É uma foto!

- Uma foto? - Indaguei curiosa e virando-me novamente.

Carlos também se aproximou, entretanto não me movi um centímentro.

Quando Tadeu levantou a fotografia para que eu pudesse ver, ainda sim, não conseguia saber do que exatamente se tratava, afinal o que uma foto estaria fazendo dentro do túmulo de meus familiares?

Dei passos vagarosos na direção dos homens, enquanto o retrato era passado de mão em mão. Quando enfim reparei na imagem, senti minhas entranhas se contraírem, um arrepio tomar conta do meu corpo inteiro e quase desmaiei.

A pessoa no retrato, era eu, sentava em algum lugar comendo um pedaço de bolo qualquer despretensiosamente e totalmente distraída.

........

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo