Capítulo 2

O dia clareou, mais frio que o dia anterior e Heitor mal conseguiu abrir os olhos devido à luz do dia que escorregava dentre a janela redonda e pousava sobre suas pálpebras. Coçou o cabelo perfeitamente alinhado que, mesmo depois do sono, acordara com o topete completamente submisso. Ergueu o tronco e notou algumas vozes vindas do andar de baixo onde, provavelmente, Antonella conversava com alguma visita.

Meio sem jeito pela sonolência vestiu sua jaqueta de couro-brigiano e sua boina inseparável e partiu degraus abaixo, rumo à cozinha. As vozes foram subitamente ofuscadas pelos ruídos dos degraus e madeira velha, mas logo voltaram à tona quando o garoto surgiu do corredor.

— Querido, você tem uma visita. — Antonella, que agora cortava algumas cebolas sobre o balcão, fez um aceno com a cabeça para que Heitor olhasse à volta.

— Dona Valentina! — Disse o menino — A senhora está magnífica! E não pude deixar de notar as belas lantejoulas em seu cabelo.

A fala de Heitor soou completamente irônica, mas Valentina não pareceu notar. Levantou do pequeno sofá e, com a xícara de chá mate ainda em mãos, explodiu em sorrisos.

— Ora! Um belo rapaz, dona Antonella. Que venha o dia em que... — Heitor não ouviu mais nada, não podia desafixar os olhares de um pequeno saco sobre a mesa-de-centro, com toda a certeza eram mais doces. A velha logo notou e sentou-se com um sorriso só gengivas: — Vamos, coma tudo que puder!

Antonella fechou a cara, e Heitor conseguiu ouvir os sons da faca com que cortava cebolas aumentarem.

— Ele vai acabar pegando uma cárie, dona Valentina!

— Bobagem, deixe o menino...

Heitor saltou sobre o segundo sofá e caiu sentado, com os braços erguidos feito um urso espreitando um pobre esquilo. Antonella agora cortava algumas cenouras como quem queria cortar a mesa e Valentina bebericava a xícara de chá de olhos levantados para ver Heitor.

— Heitor, querido — O rosto de Antonella envermelheceu-se de raiva ao ouvir Valentina imitá-la, mas a velha não deu atenção — Acredito que você está tendo uma facilidade muito grande para se adaptar...

O menino ergueu os olhos enquanto abocanhava umas minhocas de goma-de-mascar.

— Não deveria?

— Claro que deveria! Mas estive pensando, sabe? Caso tenha qualquer dificuldade ou queria simplesmente conversar vou dar uma passada aqui todas as manhãs, tudo bem?

Antonella deu um grito ao ouvir isso, puxou o avental que estava usando e embrulhou seu dedo.

— Você o quê? — Ela disfarçou estancando o dedo cortado.

— Claro que pode! Se você puder trazer alguns destes...

— Claro, claro... — A velha sorriu e votou os olhares para Antonella que fazia uma expressão de raive dor ao mesmo tempo — Bom, já vou indo. Tenham um ótimo dia!

A mulher que mais parecia um poste levantou-se e seguiu com extravagantes movimentos de cintura até a porta, abriu-a e voltou um sorriso malicioso para Antonella que mordeu os lábios.

— Essa mulher! Eu não quero ela aqui todos os dias!

— Mamãe, ela é muito gentil e...

— Ela está te comprando com doces, menino!

O sol marcou presença uma hora depois, quando Heitor e sua mãe partiam de carruagem para a padaria, a neve continuava fofa, mas o frio não parecia tão ameaçador do lado de dentro, o cocheiro era o mesmo velho mudo que os trouxera dois dias atrás. Antonella não parecia mais zangada e o sorriso generoso paralelo aos olhos azuis cintilantes se tornaram mais aparentes.

O menino podia ver a paisagem esbranquiçada de neve ao longo do trajeto, uma mulher muito gorda aparecia à porta para recolher o jornal e um canzarrão preto farejava aos seus tornozelos. Mais à frente um velho de cabelos grisalhos passava de carroça com a bagagem cheia de sacos de lã, provavelmente para entrega. A velha que Heitor fizera a entrega ontem caminhava devagar pela calçada, carregando um saco de batatas e com uma garota puxando o punho de suas vestes, Heitor lembrou o nome das duas: Janeth Joel e sua neta: Angelina. Heitor se viu admirando a beleza da menina, seus cabelos pretos combinavam de maneira extravagante com seus olhos castanhos claros e o tempo pareceu, por um momento, tão monótono. Talvez Romana não fosse lá a cidade mais excitante para se morar, não que em Florença (a cidade em que morava em Brigada) fosse, mas começara a sentir falta dos jipes desfilando pelas estradas asfaltadas. Sentia-se agora um verdadeiro caipira.

— Vamos, hoje o seu Omar não pode vir agilizar algumas coisas. Então... — A mulher sorriu e Heitor notou que sob o sol seus olhos pareciam mais vivos. — Nós por nós.

— Omar?

— Um velho amigo da mamãe, querido.

E, falando isso a porta da padaria fechou-se às suas costas.

— Agora, vai organizando as prateleiras que eu já saio com a primeira fornada. Preciso que as leve à biblioteca. — Vendo o olhar do garoto a mãe rapidamente acrescentou: — Quatro quadras daqui.

— Tudo bem.

O menino partiu para a cozinha, de onde tirou diversos bolinhos de caramelo e uns pães-de-mel exageradamente enfeitados e levou-os até a vitrine, voltou e recolheu algumas bombas-de-chocolate e uma trufa de maracujá que se esforçou muito para não devorar. Momentos depois o rosto de sua mãe surgiu sobre o balcão:

— Aqui, leve aos seu Héctor, na biblioteca. Vai, vai! — Disse sorrindo e dando tapinhas carinhosos os ombros do menino.

Este o fez, seguiu pela calçada e em poucos segundos suas pernas já bambeavam sob o frio absurdo de Romana. Um garoto moreno passou como um jato em um pequeno trenó que Heitor teve certeza ser muito caro. O menino só fez sorrir para trás e Heitor pode ver os lábios do menino formarem um “foi mal”.

Exatas quatro quadras depois Heitor chegou em frente a velha biblioteca, ela não parecia muito frequentada, mas o menino se alegrou por vê-la. Era um amante da leitura e uma cidade tão fria parecia perfeita para um belo livro e um belo chocolate quente.

Deu um passo à frente, em direção à porta quando ela escancarou-se. Uma menina o fitou por alguns segundos e sem demonstrar reação alguma seguiu pela calçada com um livro sob o braço.

A menina era muito bonita, tinha os cabelos castanhos cacheados que paravam sobre os ombros; os olhos grandes, mas muito bonitos e um rosto fino e delicado.

Heitor sentiu o estômago embrulhar-se, voltou os olhares para a velha porta de vidro e notou que seu rosto estava tão vermelho quanto um pimentão. Ao primeiro passo notou que as pernas balançavam e dessa vez sabia que não era o frio.

Deu alguns suspiros para recompor-se e entrou na biblioteca, era muito mal iluminada e nas arandelas haviam demasiadas teias de aranhas que pareciam estar ali já faziam séculos. Não parecia haver ninguém e Heitor acho uma boa oportunidade para procurar um bom livro. Contornou duas das quatro fileiras de estantes e leu títulos do tipo: “Como cozer suas próprias meias” e “Beijos apaixonados”. Pensou em correr até a garota e entrega-la este livro e sorriu imaginando a reação dela. Mais à frente títulos do tipo: “O universo elegante” e “Príncipe Lewi e suas estrelas” e do outro lado um livro que lhe chamou a atenção: “Arte da conquista”.

— Um total de dois clientes, ora as coisas estão realmente boas para mim! — Disse uma voz irônica às costas de Heitor que pareciam vir de trás do balcão aos fundos. O garoto se virou e deparou-se com um homem muito velho, de pele escura e cabelos grisalhos; gorducho e com uma bigodeira também grisalha. — Vai comprar algum?

— Não, eu... eu trouxe uns pães. O senhor... bem, o senhor encomendou... — Heitor dizia espantado. Não esperava que Héctor fosse tão arrogante.

— Então está esperando...? — O velho gorducho estendeu a mãe e fez um gesto com os dedos para que Heitor lhe entregasse o saco. — Bom, se for só isso...

— De nada. — Murmurou o garoto enquanto se retirava da biblioteca. Ficara tão irritado com a ingratidão do velho que não quis pegar livro algum.

O frio voltou à tona quando o menino saiu da biblioteca, uma neve fina caía agora, e uma criança de cabelo ruivo-alaranjado que lembravam labaredas estava tentando montar um pequeno boneco de neve, mas frustrou-se quando deu dois passos para trás e enxergou algo parecido com um tijolo com olhos.

Heitor seguiu o caminho de volta à padaria, os músculos doíam de tão rígidos e os braços e pernas balançavam no ritmo de uma britadeira. Alguns minutos depois, já em frente a padaria, viu um velho montado em uma carroça, o mesmo que vira de dentro da carruagem quando estava vindo para a padaria. Conversava com um garoto muito branco, de cabelos pretos e olhos verdes-vivos. Puxava consigo um pequeno trenó e logo Heitor o reconheceu, aquele fora o menino que quase o atropelo minutos atrás, quando levava as entregas para a biblioteca.

O velho pousou os olhos sobre Heitor quando este passava pelos dois.

— Hey, Rapaz! Você não seria o filho de Antonella, seria? — O velho sorriu.

— Quem quer saber? — Heitor parara e colocara as mãos nos bolsos da jaqueta de couro brigiano que usava.

— Oh, desculpe! — O velho disse com um lado sorriso no rosto — Eu sou Omar, um velho amigo de sua mãe.

Heitor moveu os olhares de Omar para o garoto e o velho percebeu:

— Este é Afonso, faço umas entregas para o pai dele... — Disse dando tapinhas na carroça.

— Tudo bem? — Disse o garoto erguendo a mão para cumprimentar Heitor que apertou-a sorrindo.

— Minha mãe já falou sobre você, Omar.

O velho corou, deu um sorriso dessa vez envergonhado e levou uma das mãos para cima da perna.

— Me-mesmo?! E-eu fico m-um-muito feliz em saber. Fico mesmo. — Heitor olhou para Afonso que tentava segurar o riso até o velho continuar: — Bom, vou indo. Afonso, diga para o seu pai que os preços da lá estão subindo muito com essa nevada. Que ele revise estes preços...

Afonso concordou com a cabeça e Omar saiu berrando: “Heitor, diga à sua mãe que mais tarde eu passo aí! ”.

Os dois meninos ficaram ali, parados, observando Omar subir na próxima esquina e então Afonso disse:

— Cara, antes de você chegar o seu Omar estava justamente falando da sua mãe. É... parece que o velho tem uma quedinha por ela...

— Pelo que vi, um abismo.

Os dois riram e Afonso voltou a falar:

— Você tem quantos anos?

— Quinze, por quê?

— Ora! Seremos da mesma sala então. Deixa comigo... — Afonso agora estufava o peito — vou encontrar umas garotas para você.

— É tudo que eu preciso — Concluiu Heitor, ironicamente. E com um aceno Afonso despediu-se e Heitor voltou para a padaria do outro lado da rua.

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