5 – Atos belicosos de Lunae

Se aproxima como uma fera na noite. Pela primeira vez desde que nasceram, elas conhecerão a guerra

               Alika não foi para o navio como o almirante mandara. Ela conhecia Edward o bastante para saber que ele não negociava depois de o governo se negar a ser anexado ao reino, e o que acontecia em Lus naquele momento era prova disso. Ele planejava algo, provavelmente uma tática sórdida para obter vantagem.

               Sua suspeita estava certa. De longe, escondida atrás de um arbusto, viu Edward acompanhar Inaê até o fim daquele abismo e apontar uma pistola. Alika se levantou num pulo e correu na direção deles, sem saber o porquê de fazer isso, mas antes que desse dois passos, o tremor a jogou de cara no chão. Quando se erguia nos cotovelos para recomeçar a corrida, Inaê e Edward despencaram para o mar lá embaixo.

               A capitã ficou paralisada de choque por alguns instantes antes de correr para longe do farol. Seguiu o mais rápido que suas pernas permitiam para o Edifício Caramuru. Os policiais que ainda montavam guarda receberam-na apontando suas armas de pressão, mas mudaram assim que escutaram que algo acontecera a Inaê.

               Uma mulher que estivera ao lado da rainha quase o tempo inteiro apareceu ao ouvir a comoção e agarrou o pulso de Alika com a força de uma tenaz.

               -- Se um dos seus tiver feito algum mal à minha discípula, “crime de guerra” vai ser brincadeira comparado ao que farei a vocês.

               O rosto dela e dos demais ouvintes passaram de preocupação para horror, à medida que Alika contava o evento no farol. Um homem de cabelo preto bem ralo indagou à mulher, em desespero:

               -- O que faremos, senhorita Meri?

               -- Vamos para o litoral norte imediatamente. Chamem também os pais da princesa.

               Alika foi com Meri e o pequeno grupo de seis policiais, mas não que tivesse escolha, pois para todos os efeitos podia se considerar prisioneira de guerra. Pensando bem agora, não conseguia responder por que fizera tudo aquilo, seguir o almirante e correr direto para os inimigos e alertá-los sobre a princesa. Nada em suas ações fazia sentido.

               Com a manhã avançada, a maré baixara, e uma pequena faixa de areia salpicada de pedras de vários tamanhos que, a julgar pela cor avermelhada, eram pedaços da montanha, separavam o mar do penhasco. Se uma pessoa caísse lá de cima, tinha grande chance de acabar ali, mas não em um estado bonito de se ver.

               -- Separem-se para procurar – Meri comandou e eles se dividiram em duplas, sobrando apenas ela e Alika, a quem se dirigiu – Espero que seja boa em escalada.

               Felizmente Alika era, apesar de fazer um tempinho desde que galgara as montanhas de sua terra. As rochas espalhadas chegavam ao tamanho de uma casa, e os delfinos as escalavam numa velocidade surpreendente. Rapidamente se espalharam e desapareceram de vista.

               Meri esquadrinhava o ambiente, sentindo o desespero crescer, temendo encontrar a qualquer momento um corpo boiando, ou largado entre as pedras. Alika a acompanhava num ritmo mais lento, forçando-a a parar de vez em quando para que a estrangeira a alcançasse. Nessa velocidade não vou encontrar nada, pensou irritada.

               Subiu um uma rocha que lhe deu uma visão quase completa daquele trecho da praia, deserto. Não, algo branco se destacou na cor escura das pedras. Inaê!

               Meri desceu o mais rápido que podia, sem prestar atenção onde pisava, e parou abruptamente ao chegar em frente a Inaê, deitada como se estivesse dormindo, imóvel. Só conseguiu olhar desolada para ela. Quando pôde se mexer, os músculos rígidos, ergueu-a nos braços e a segurou no colo como fizera tantas vezes quando ela era criança. Ainda era tão leve.

               -- Se não cheguei a tempo, me desculpe, Inaê – falou baixinho. Alika se aproximou.

               -- Onde está o ferimento do tiro do almirante?

               Havia realmente um pequeno furo na camisa da princesa, mas sem sinal de nenhum sangue, ou de uma ferida.

               -- Espere aí – Meri deitou Inaê novamente no chão, sustentando seus ombros com um braço, e com o outro tirou um pequeno espelho do bolso. Posicionou-o sob o nariz da jovem, e vibrou ao notar que a superfície do vidro embaçara – Ela está viva!

               -- Mas como? – Alika calculou que a rocha onde estavam tinha pelo menos dois metros de altura. Não tinha como uma onda na maré baixa ter jogado Inaê ali em cima, muito menos a deitado naquela posição – E o ferimento dela?

               -- Não há ferida nenhuma – respondeu Meri, puxando a camisa de Inaê e revelando sua pele morena intacta – Tem certeza que o viu atirar nela?

               Alika fez que sim no instante em que o som agudo de um apito cortou o ar e dois dos policiais que vieram no grupo apareceram. Um deles exclamou ao ver Inaê:

               -- É a princesa?!

               -- Está tudo bem, ela está viva! – gritou Meri – Ouvi o sinal de vocês. Acharam alguma coisa?

               -- Um corpo de homem, vestido como marinheiro igual a ela – o outro indicou Alika – Deve ser o tal almirante, mas não está muito identificável.

               Uma equipe de pessoas vestidas de azul, que Alika percebeu serem paramédicos, chegou pouco depois, junto da chefe de polícia. Tanto Inaê quanto o corpo desfigurado de Edward foram levados, e Alika foi com a polícia, embora não soubesse para onde nem o que aconteceria quando chegasse.

               Apenas Meri ficou, tentando entender como era possível Inaê estar viva sem nenhum arranhão, como se alguém a tivesse posto ali, enquanto o almirante era destroçado pelas ondas contra as pedras. E o furo em sua roupa só podia ser de uma bala, mas onde estava a ferida?

               Perdida nesses pensamentos, não reparou que a água subira de nível até cobrir seus tornozelos. Voltou-se assustada para o mar, para encontrar os olhos lilases de um dragão encarando-a a dez metros de distância. Meri se manteve parada, esperando alguma reação, mas a cabeça negra escamosa apenas submergiu, e a água obedientemente retrocedeu.

*

               Inaê acordou só meia hora mais tarde, e não conseguia explicar como sobrevivera nem como se curara, porque o almirante realmente a tinha baleado.

               -- A capitã de mar-e-guerra está com sua mãe na sede da Força Policial – Dario informou quando Inaê acordou.

               -- Ela está presa? – perguntou Marisol, que veio correndo para o hospital assim que soube o que acontecera à irmã.

               -- Não. Não sabemos o que fazer com ela, normalmente seria prisioneira de guerra, afinal é uma oficial de alta patente da marinha inimiga. Porém, se não fosse por ela, nunca saberíamos o que aconteceu com Inaê – o pai assinava uma autorização para um enfermeiro – Vão para casa agora, as duas. Inaê precisa descansar, e estamos cheios de trabalho aqui no hospital.

               A princesa seguiu a irmã desanimadamente o caminho inteiro, amaldiçoando a ingenuidade que quase a matou, pôs a ilha em risco e custou uma vida. Depois de alguns minutos de caminhada silenciosa, Marisol sugeriu:

               -- Vamos passar na sede da polícia para ver essa capitã?

               Inaê concordou, precisava mesmo fazer umas perguntas a Alika.

               Quando se aproximavam do prédio da Força Policial, um estrondo altíssimo fez o ar tremer e quase derrubou as duas irmãs. Viram então uma parede da construção ruir como se fosse feita de cascalho e areia. A nuvem de poeira que se ergueu obstruiu completamente a visão de quem estava fora.

               Nada disso impediu Inaê de correr para lá, focada em encontrar a mãe e se certificar que ela estava bem. No meio da poeira, só dava para distinguir os contornos apagados de pessoas correndo. Num momento pisou em falso e quase caiu em cima de um rifle de pressão, e aproveitou para pegá-lo, caso desse de cara com algum inimigo.

               -- Mãe! Cadê você? – chamou, pisando cuidadosamente nos destroços que antes eram a parede.

               -- Inaê, espere! – ouviu Marisol às suas costas. Ela a seguira para dentro do prédio? Inaê agarrou um punhado de areia do chão e pôs na arma.

               -- Volte, Marisol, aqui é perigoso demais para você.

               A poeira começava a baixar, Inaê distinguiu uma pessoa bem perto de onde estava, usando uniforme da marinha lunae e com uma pistola na mão, arma de fogo igual à do almirante. E estava apontando-a para Marisol.

               Os pés de Inaê a impulsionaram para frente e ela atirou. O marinheiro se desequilibrou com o impacto e caiu, apertando o peito, onde fora acertado. A princesa chutou sua mão e a pistola voou para longe, se perdendo de vista no entulho. Só então ela olhou para o lunae e reconheceu Nalu, irmão de Alika.

               Ele também pareceu surpreso em vê-la, mas rapidamente se recuperou do susto e levou a mão ao cinto. Inaê apontou o rifle para ele de novo, subitamente tomada por uma ferocidade que nunca sentira antes.

               -- Não importa quem seja, não permitirei que machuque minha irmã! – vociferou.

               -- Eu digo o mesmo – Nalu respondeu no mesmo tom – Devolvam Alika e o almirante!

               Ouviram tiros perto e três soldados lunae chegaram por um corredor que levava aos escritórios, acompanhados por Alika. Nalu acenou para eles.

               -- Aqui! Levei um tiro!

               Um deles mirou Inaê com uma metralhadora enquanto se aproximavam. A jovem ergueu as mãos e explicou com mais calma:

               -- Era areia comprimida, não foi letal.

               E de fato, quando Nalu tirou as mãos e olhou o peito, não havia sangue nenhum.

               -- Vamos sair logo daqui – Alika exclamou. Um homem de cabelo grisalho olhou para Inaê e Marisol.

               -- Por que não levamos essas duas também? Uma delas é do governo, não é?

               -- Não precisamos descer ao nível de pegar reféns, já estamos com a minha irmã – Nalu olhou para o resto do grupo – Onde está o almirante?

               -- Está morto – Alika foi muito direta – Conto tudo quando voltarmos ao navio. Agora vamos!

               Eles obedeceram a capitã e saíram correndo dali. Inaê não atirou nem tentou impedi-los, seria um esforço inútil.

               Voltou o olhar para o prédio, que manteve a estrutura intacta apesar da parede destruída, mas o dano ainda prejudicaria o trabalho policial. De onde estava, Inaê viu a equipe paramédica chegar para socorrer feridos, e decidiu ajudar também.

               Enquanto revirava pedaços da parede, a princesa escutou um bipe repetitivo, que parecia vir debaixo de uma cadeira. Ao longo dos anos, Inaê já estivera naquele prédio vezes o suficiente para saber que não havia nenhuma máquina ali que fizesse esse barulho.

               -- Corra, Marisol! – agarrou o pulso da irmã e disparou o mais rápido que podia, gritando ao sair do prédio – Afastem-se! Tem outra bomba lá dentro!

               Mais um segundo se passou antes de explodir. A onda de impacto jogou as duas no chão, e metade da construção ruiu. Com a cabeça girando, Inaê se levantou e foi cambaleante checar os feridos que estavam mais próximos da sede. Mas não conseguiu se manter de pé e caiu de joelhos ao ver seu pai no chão, inconsciente, com a cabeça ensanguentada.

               Tão mergulhada em sua dor e desespero, não notou as tropas da marinha lunae invadindo a Ilha Delfim naquele momento de maior vulnerabilidade.

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