Capítulo IV

Naquela manhã eu senti um cheiro bom no ar. Era comida feita em casa? Eu estava deitada em minha cama, com o sol da manhã batendo em meu rosto. Mas o cheiro era de almoço. Agora sim eu estava em apuros: atrasadíssima para a escola. Ainda bem que o primeiro horário era matemática e o professor não estava. Quem sabe eu conseguiria chegar a tempo das aulas após o almoço? Eram dez da manhã. Peguei minha mochila, ajeitei mais ou menos meu cabelo e percebi que eu estava com uma camisola. Soltei a mochila, peguei uma calça e uma blusa de frio de moletom, correndo para a sala. Minha mãe me olhou, abismada:

- Kate?

- Mãe! Você não tem que trabalhar? Eu estou atrasada para a escola!

- Kate, você está de atestado até a semana que vem. Você está com febre ainda, volte para a cama!

- Mãe, o que aconteceu!? – quando ela disse aquilo, eu realmente me senti mal.

- Você teve uma crise nervosa. No meio dos exames, você desmaiou de sono e acordou só agora. O médico fez perguntas e disse que foi devido ao stress dos acontecimentos daquele dia... – minha mãe respirou fundo ao dizer isso. Ela ainda não tinha superado, obviamente. – Fique calma, venha aqui, deite com a cabeça no colo da mamãe, vamos ver TV enquanto o almoço esquenta no forno.

Eu sorri. Finalmente algo que parecia bom no final das contas. Me deitei no colo de minha mãe e nós duas passamos uma tarde maravilhosa juntas. Após o almoço, jogamos cartas e eu sempre perdia porque não conseguia pensar direito. Desistimos das cartas quando eu não conseguia mais segurá-las com firmeza e eu voltei a me deitar. Vimos TV, alguns filmes de desenho animado e depois eu dormi mais.

À tardinha, subi as escadas. O dia parecia estar absolutamente normal quando, de novo, vi aqueles dois sentados em minha cama no momento que entrei no meu quarto. Daniel estava com uma tromba enorme e Elemiah, séria.

- Ah, achei que tinham me abandonado hoje.

- Nunca te abandonamos – disse Miah.

- É um martírio – disse Daniel.

- É, eu imagino – fitei-o com ódio. Segui até o armário para pegar alguma roupa: iria tomar banho.

- Kate... – a doce voz de Miah ocupou o quarto. – Temos o seu primeiro trabalho.

- Como assim? – virei-me para ela. Lembrei imediatamente dos trabalhos de Hércules, só não me lembrei da quantidade.

- Antes de tudo, Kate, quero que compreenda que o trabalho de um anjo é muito sério. Nós temos que cuidar de nossos protegidos, acima de tudo.

- Espera, se você acha que eu vou ficar cuidando da vida dos outros, está muito enganada. Muitíssimo enganada!

- Kate...

- Miah!

- Amanhã nós...

- Não! Amanhã nós nada! Eu morri anteontem. Você pode não saber, mas isso cansa. E cansa muito! Meu organismo precisa descansar, ao contrário de vocês que ficam vinte e quatro horas investigando a vida alheia.

- Kate, veja...

- Eu não vou olhar nada, eu não vou trabalhar de nada, eu sou uma adolescente inconsequente que não quer saber de trabalho além do trabalho temporário de férias, que aliás eu já fiz e é outra coisa da qual eu ainda não descansei e...

- Kate! – Daniel gritou. Eu não sei porque, apenas me calei. – Seu trabalho será cuidar de Jayden Trollier.

Fiquei branca como uma folha de papel A4. Fiquei completamente pálida. O sangue do meu corpo todo se esvaiu pelo ralo quando eu ouvi aquilo.

- Jayden... Trollier? Quer dizer... Jayden? Trollier? O Jayden Trollier!? O vocalista do Palante!?

- Eu sabia que ia dar nisso – disse Daniel, o rosto embriagado de tédio.

- Ahhhhhh!!! – gritei, enlouquecida!

Eu estava muito feliz. Quero dizer, muito feliz mesmo! Larguei tudo de lado e corri para a minha cama, agarrei-me no meu travesseiro e pulei em cima da cama gritando.

- Eu não acredito!!! Jayden Trollier! Jayden, meu Jayden!! Meu amado protegido!!!

- Desça daí – disse Daniel, ainda entediado.

Eu não parava de pular e, quando me deitei na cama, comecei a rolar de um lado para o outro, sem parar.

- Ahhhh, Jayden!! Mal posso esperar para ver você, meu amor! Meu único, verdadeiro e fiel amor! Eu irei cuidar de você tão bem que jamais irá querer outro anjo por perto! Jayden!!!

- Sua mãe – ele disse, rapidamente.

- Hein!? Ah! – sem querer caí da cama e minha mãe abriu a porta, esbaforida.

- O que houve, Kate!?

- Mãe! – levantei do chão, os cabelos entrando pela boca e completamente embolados, também grudados na testa.

- Filha!?

- Mãe! Eu te amo!! A vida é bela!!!

Corri e abracei minha mãe, tão forte que acho que entortei os aros do sutiã dela.

- Eu também, filha! Eu também!

- Ahhhh, a vida é bela! Oh, como a vida é bela! – eu fui girando até o banho e nem sei como consegui sair dele: fiquei cantando o CD inteiro do Palante do início ao fim e do fim ao princípio.

Quando cheguei no meu quarto, eu estava em alfa, porém meus anjos não pareciam nada satisfeitos.

- Um dia você ainda vai parar num hospício se continuar agindo assim – ralhou Daniel.

Olhei para eles com o rosto confuso e os cabelos molhados.

- Kate, precisamos conversar...

Me troquei. Assentamos todos na cama, agora eu estava novamente de pijamas e os olhei, com os cabelos molhados e segurando minha escova de cabelo ainda. Eles sentaram-se à minha frente, um em cada lado da cama. Daniel estava sempre ao meu lado esquerdo.

- Kate, eu preciso lhe explicar algumas coisas sobre a Sociedade dos Anjos.

Eu não disse nada, apenas esperei.

- Cada pessoa deveria ter dois anjos da guarda. Eu digo que deveria porque não é isso o que acontece. Após uma série de guerras e conflitos, houve uma grande mudança na sociedade angelical.

- Ok, pule a parte chata – eu disse, mas me calei imediatamente quando vi o rosto repreensivo de Miah.

- Eu gostaria imensamente de pular o que você chama de “parte chata”, mas não é assim que as coisas funcionam na vida real.

“É verdade... Teoricamente, na vida real, eu nem deveria estar vendo vocês...” – pensei. Eles me repreenderam com olhares malignos. Afinal, qual era a diferença entre falar e não falar as coisas se eles conseguiam sentir o que eu pensava? Miah continuou:

- Depois de muito derramamento de sangue, finalmente conseguimos implantar um sistema que funciona. O sistema é o que usamos até então, porém, preciso te explicar como tudo era antes. Já te dissemos anteriormente que as pessoas, quando estão em sua última encarnação, podem virar anjos ao morrerem. Antes a opção vinha diretamente da alma da pessoa, que fazia sua escolha, mas isso fez com que houvesse uma superpopulação de anjos, pois as pessoas queriam, desta forma, prolongar suas vidas. Esta superpopulação de anjos atingiu um ápice que não deveria ter atingido, de modo que havia muito mais anjos que pessoas a serem protegidas. Além disso, o outro problema é que a maior parte dos anjos não possuía treinamento de como cuidar de seus protegidos. Desta forma, os anjos foram separados em três grupos: os anjos da guarda, os anjos da adversidade e os anjos caídos.

- Eu sou um anjo da adversidade – disse Daniel. – Meu trabalho é fazer os seres humanos se movimentarem por meio das dúvidas que inserimos em suas mentes.

- Eu sou um anjo da guarda – Miah voltou a dizer. – Meu trabalho é cuidar para que as decisões que os seres humanos tomem não os levem à extinção de sua espécie.

- E os anjos caídos? – perguntei. Dessa vez eles não fizeram cara ruim, então decidi que iria fazer apenas observações inteligentes dali para frente.

- Os anjos caídos... – disse Miah. Daniel ficou com o rosto um pouco irritado. – São anjos que não possuem “trabalho” algum. Bem... nessa época, os anjos caídos eram os anjos sem talento que sobraram na separação angelical.

- Que coisa horrível! – soltei a frase sem querer. Daniel olhou para mim e disse:

- Naquela época, nosso líder não sabia o que estava fazendo. Nessa separação de classes, não podíamos escolher que tipo de anjos seríamos e muitos anjos da guarda companheiros de anjos caídos desceram à terra para ajudar suas duplas.

- Então, naquela hora que você me disse que eu era uma pessoa de sorte...

- Sim, me referia a você ter a oportunidade de escolher o tipo de anjo que você vai ser – disse Daniel, com uma voz meio falha.

- Então agora as coisas mudaram? – perguntei.

- Mudaram – disse Miah. Ela e Daniel trocaram olhares e eu entendi que a mudança não era boa. – O novo líder agora fixou cinco datas para o nascimento de pessoas aptas a serem anjos. No dia da morte dessas pessoas, os anjos encarregados dela perguntam se a pessoa quer fazer o treinamento para serem anjos.

- Na verdade, nós anjos da adversidade temos que fazer com que a pessoa não aceite.

- E nós, anjos da guarda, temos que fazer com que a pessoa aceite a tarefa. Infelizmente, por acaso do destino ou por medo, as pessoas mudaram muito e, agora, geralmente não aceitam e morrem. Mas quando as pessoas aceitam, ressuscitamos a pessoa para que se torne um anjo terreno, ou seja, um anjo entre os humanos. Enquanto isso, treinamos os anjos terrenos.

- E qual é o meu caso? – perguntei, curiosa.

- Você aceitou o treinamento – Miah deu um sorriso largo.

- Não, eu não aceitei! – me defendi.

- Não comecem com isso de novo! – disse Miah, antes mesmo que Daniel abrisse a boca para me contrapor. – Escute, Kate... sabemos que você pediu um tempo para pensar, mas nós não podíamos te dar esse tempo. Você teria que escolher na hora, mas suas palavras deram a entender que você queria continuar vivendo, então...

- Então vocês burlaram a lei do céu – acusei.

- N-não! – Miah se defendeu, gaguejando, enquanto Daniel parecia concordar comigo.

- Até mesmo anjos da guarda têm seus momentos de fúria, certo Miah? – Daniel se aproximou de Miah e lhe acariciou a cabeça, uma mão em cada lado, os dedos passando por entre os cabelos encaracolados e loiros dela. Envergonhada, ela escondeu o rosto, ficando cabisbaixa. Daniel continuou a falar – Miah é praticamente uma revolucionária.

- Não-é-isso! – ela ergueu o rosto imediatamente, falando de modo pontual, irritada. Daniel ofereceu-lhe um sorriso bobo.

- Ah, é sim! Naquela manhã, Miah estava conversando com a Cúpula Angélica, já discutindo os argumentos possíveis para lhe dizer naquele dia.

- Então tudo estava predestinado – fiquei abismada.

- Temos um oráculo. Obviamente, o futuro muda com base nas escolhas de cada um, porém não foi o que aconteceu nesse dia. Você realmente tentou morrer.

- E quase consegui – comentei, a esmo.

- É. Nós ainda tentamos te salvar. Você teria morrido se não fosse sua última encarnação e você não estivesse predestinada a se tornar um anjo. Mas, voltando ao assunto de Miah se rebelando contra a Cúpula Angélica...

- Pare com isso, Dan! – Mia pegou um travesseiro meu e jogou na cara de Daniel. Aquela foi uma das poucas vezes que eu o vi rir. – Não é nada disso! O que acontece é que hoje temos poucos anjos. Recrutar apenas cinco dias por ano em última encarnação não produz anjos o suficiente para cuidarmos da humanidade inteira! Além do mais, o treinamento leva bastante tempo. A minha ideia era fazer um programa onde o novo anjo faria dupla com o mais experiente, e assim ambos aprenderiam com os erros e acertos um do outro.

- Não aceitaram a proposta, disseram que isso geraria anjos grosseiros – explicou Daniel.

- Oh, você é fruto do teste desse projeto? Uma cobaia! Daniel, eu não sabia... Coitadinho, virou um anjo grosseiro – eu disse, rindo dele.

- Ah, eu vou deixar essa passar porque, infelizmente, meu trabalho não é matar você – Daniel me fitou com um olhar macabro. Eu continuei rindo.

- Propus outra coisa... – disse Miah. – Que todos os humanos destinados à última encarnação sejam aceitos como anjos para treinamento ao invés de humanos nascidos apenas em determinados dias.

- Não aceitaram também, dizendo que isso iria acabar gerando uma quantidade grande de anjos, assim como antes – ele explicou.

- Tentei argumentar de volta dizendo que a quantidade de anjos não iria mudar, já que os anjos caídos estão recrutando estas pessoas que não nasceram nestes determinados dias uma vez que que, após a morte, suas almas ficam perambulando por aí, procurando algo que lhes falta... e nunca encontram.

- E porque há determinados dias? – questionei.

- Porque os humanos nascem em dias regidos por certos arcanjos. Mas nessas cinco datas, os humanos que nascem não são regidos por nenhum anjo, de tal forma que eles podem escolher qual será o anjo da guarda deles.

- Então, cada dia tem um anjo da guarda específico? – eu estava determinada a saber tudo sobre o assunto.

- Sim, dependendo do dia que você nasce, há um arcanjo regente. As características da pessoa também mudam, seguindo aquelas do anjo do dia. Há dias em que as pessoas podem escolher qual será este arcanjo e o dia em que você nasceu é uma das cinco datas em que isso acontece.

- Já entendi porque eu sou esse caos todo: eu não tenho exemplo angelical fixo a seguir... – suspirei, triste.

- Não se preocupe. Pessoas que nascem nestes dias estão destinadas a grandes feitos – disse Miah, tentando me animar.

- Mas nem sempre estes grandes feitos são coisas boas – comentou Daniel, acidamente. – O que aconteceu no dia da sua morte foi que Miah estava irritada pela falta de anjos e... reviveu você. Assim, o pacto foi selado: você vai ser um anjo assim que acabar seu treino.

Olhei para Miah. Ela estava com o semblante culpado. Eu nunca esperaria isso dela. Fiquei... abismada.

- Ah, como eu adoro quando o anjo bom na verdade é malvado e o protegido descobre! – disse Daniel, deleitando-se com a situação, jogando os braços por trás da nuca, esticando as costas. – Só nos resta saber se você será um anjo da guarda, da adversidade ou... um anjo caído.

- Quer dizer que depois de tanto trabalho na escolha, ressurreição e tudo o mais, eu posso me tornar um anjo caído?

- É. É como se fosse uma condenação – disse Daniel.

- Eu não quero! – me desesperei. Agora que não tinha mais volta, eu não queria ser uma pária da Sociedade Angelical!

- Fique calma, Kate. Com o nosso treinamento, com certeza você entrará para a Sociedade dos Anjos. Você só tem que seguir nossos conselhos e absorver as lições que lhe daremos – Miah sorriu.

Agora eu me senti um pouco calma. Meus olhos voltaram-se novamente para Jayden, colado na minha parede, e todo sentimento ruim foi embora instantaneamente.

- Certo. Bom, e quando eu vou fazer esse trabalho de proteger o Jayden?

- Logo – falou Daniel.

- Mas não tão depressa – disse Miah. – Você precisa treinar bastante.

- E quando eu começo?

Miah e Daniel olharam um para o outro, como de costume.

~~~~~~~~~~

Em instantes estava eu estava voando nas costas de Daniel, vestindo pijamas. As luzes da cidade passavam rapidamente e, quando eu menos esperava, Dan e Miah pararam abruptamente no ar, o que fez com que meu corpo refreasse nas costas do meu anjo. Ao olhar para baixo, contemplei o lago May. A altura me dava uma vertigem sem precedentes, infinitamente pior que numa montanha russa. Enterrei minhas unhas nas costas do colete de Daniel.

- Antes, libere suas asas – disse Miah.

- Como eu faço? Antes de qu... Ahhh!!

Com um movimento, Daniel voou para o alto e deu uma volta, como um looping da tal da montanha russa. Não sei o que aconteceu, mas no final do movimento dele, eu estava dependurada, me segurando por apenas um braço em uma das asas negras de Daniel. Ele se sacudia, tentando me jogar lá em baixo. Meus pés ficavam tentando subir, pisando em falso no ar, enquanto eu tentava segurar os pés de Dan, enlaçando-os com minhas pernas ou comprimindo-os entre meus joelhos. Eu gritava o tempo todo.

- Ahhhh!!! Pare!!! Parem com isso!!! Socorro!!!

- Tá louca!? Solta minha asa ou vamos cair os dois! – ele gritou de volta e continuava a se sacudir enquanto caíamos em queda livre como se fosse um bungee jump. Só que sem corda.

Eu nem sabia de onde eu tinha tirado tanta força pra ficar grudada nele segurando-me por uma só mão, mas a realidade era que eu não conseguia me soltar. Ele mandava eu largar, mas eu simplesmente não conseguia controlar minha mão enrolada e grudada nas penas negras dele.

E caímos bem dentro do lago May. A lua iluminava parcamente dentro d’água, mas afundamos tantos metros que eu não conseguia subir. Eu nadava para o alto, porém meu peso misturado à força da gravidade que me puxava desde lá do céu ia me levando cada vez mais para baixo. Eu achei que eu ia morrer de novo no lago. Talvez algum anjo caído me encontrasse enquanto minha alma penada andasse perdida por entre os prédios de uma grande cidade e eu pudesse aceitar me tornar um anjo caído para tentar estender minha vida por alguns instantes de novo. Agora eu entendia como os humanos pensavam quando o modelo angelical adotado era o antigo... Era instintivo do ser humano tentar prolongar a existência. Talvez por medo do que encontraria do outro lado da vida.

Uma mão pegou meu braço. No susto, engoli tanta água que meu estômago se encheu rapidamente. Quando eu pude ver, era Daniel, me puxando para a superfície. Planando sobre o lago, estava Miah, que olhou para nós dois, rindo.

- Vamos tentar de novo – ela disse.

- Ah, não mesmo! Eu não vou aprender igual passarinho! – reclamei, com razão! Pelo amor de Deus, o ensino deles era tão arcaico que só faltava eles me mandarem estender a mão à palmatória!

- Oh, só me faltava essa... – disse Miah, mas o que ela disse depois eu não consegui escutar, eu só conseguia olhar, abismada, como Daniel estava agora: de pé, sobre a água.

Para sair da água ele apenas apoiou as duas mãos na superfície da mesma, como se fosse a beira de uma piscina, e ergueu-se, sentando, depois se levantando. De pé no espelho d’água, dobrou as asas para checar se estavam completamente secas e passou um óleo, saído da base das asas, nas penas que tinham molhado.

- Que...! – me faltaram palavras. Ele, então, plainou ao lado de Miah.

- Vamos – Daniel me estendeu a mão e eu não aceitei.

- Que voar que nada! Eu quero é aprender andar na água!

- É mais complicado do que você imagina. Nem mesmo Miah consegue – disse Daniel.

- Mas eu vou conseguir! Eu sou capaz de grandes feitos! – eu disse, cega pelo sucesso de ter nascido em doze de agosto.

- Uma coisa de cada vez – disse Daniel, carrancudo, afundando a mão na água para pegar a minha e me ergueu voando até o céu novamente.

- Olha, eu faço de tudo pra aprender a andar na água. Ah! Eu sei fazer malabares! Quer aprender malabares? Eu tenho uma técnica para ensinar infalível. Aposto que você também deve ter uma técnica para ensinar como andar sobre a água. Não deve ser tão difícil se você abrir as asas e plainar enquanto anda na água, até pegar o jeito e...

- Cale a boca! – gritou Daniel, me soltando lá do alto, e eu caí mais uma vez.

- Ahhh!!! – gritei!

Queda e água foi o que aconteceu durante a noite inteira. Minha mãe se assustou quando eu cheguei em casa com os cabelos molhados.

- Kate, o que foi? – ela perguntou, me seguindo escada acima.

- Nada, mãe. Eu fiz testes pra entrar no clube de natação hoje.

- Mas você está de atestado!

- Resolvi fazer um exercício, sabe como é, é bom para a saúde e tal.

- Ah... – disse minha mãe, parando na escada atrás de mim, e nessa hora eu tive certeza de que ela estava desconfiando de alguma coisa. – Então, que ótimo que está se enturmando na escola... e como você foi no teste?

- Voar é mais fácil que fazer um crawl decente, acredite.

- Kat...!

Não deixei minha mãe terminar de falar, apenas fechei a porta do meu quarto na cara dela. Eu estava exausta.

- Foi uma ótima desculpa, Kate, já que todas as noites iremos treinar você pode dizer que todas as noites está treinando pra entrar no clube de natação – disse Miah, tentando me animar, mas ela não teve êxito.

- Eu estou de atestado! Ainda bem que minha mãe fingiu que não percebeu! – exclamei enquanto caía na cama, morta de cansaço. Ia ser uma longa semana até o sábado...

Naquela manhã eu senti um cheiro bom no ar. Era comida feita em casa? Eu estava deitada em minha cama, com o sol da manhã batendo em meu rosto. Mas o cheiro era de almoço. Agora sim eu estava em apuros: atrasadíssima para a escola. Ainda bem que o primeiro horário era matemática e o professor não estava. Quem sabe eu conseguiria chegar a tempo das aulas após o almoço? Eram dez da manhã. Peguei minha mochila, ajeitei mais ou menos meu cabelo e percebi que eu estava com uma camisola. Soltei a mochila, peguei uma calça e uma blusa de frio de moletom, correndo para a sala. Minha mãe me olhou, abismada:

- Kate?

- Mãe! Você não tem que trabalhar? Eu estou atrasada para a escola!

- Kate, você está de atestado até a semana que vem. Você está com febre ainda, volte para a cama!

- Mãe, o que aconteceu!? – quando ela disse aquilo, eu realmente me senti mal.

- Você teve uma crise nervosa. No meio dos exames, você desmaiou de sono e acordou só agora. O médico fez perguntas e disse que foi devido ao stress dos acontecimentos daquele dia... – minha mãe respirou fundo ao dizer isso. Ela ainda não tinha superado, obviamente. – Fique calma, venha aqui, deite com a cabeça no colo da mamãe, vamos ver TV enquanto o almoço esquenta no forno.

Eu sorri. Finalmente algo que parecia bom no final das contas. Me deitei no colo de minha mãe e nós duas passamos uma tarde maravilhosa juntas. Após o almoço, jogamos cartas e eu sempre perdia porque não conseguia pensar direito. Desistimos das cartas quando eu não conseguia mais segurá-las com firmeza e eu voltei a me deitar. Vimos TV, alguns filmes de desenho animado e depois eu dormi mais.

À tardinha, subi as escadas. O dia parecia estar absolutamente normal, quando vi aqueles dois assentados em minha cama no momento que entrei no meu quarto. Daniel estava com uma tromba enorme e Elemiah, séria.

- Ah, achei que tinham me abandonado hoje.

- Nunca te abandonamos – disse Mia.

- É um martírio – disse Daniel.

- É, eu imagino – fitei-o com ódio. Segui até o armário para pegar alguma roupa: iria tomar banho.

- Kate... – a doce voz de Mia ocupou o quarto. – Temos o seu primeiro trabalho.

- Como assim? – virei-me para ela. Lembrei imediatamente dos trabalhos de Hércules, só não me lembrei da quantidade.

- Antes de tudo, Kate, quero que compreenda que o trabalho de um anjo é muito sério. Nós temos que cuidar de nossos protegidos, acima de tudo.

- Espera, se você acha que eu vou ficar cuidando da vida dos outros, está muito enganada. Muitíssimo enganada!

- Kate...

- Mia!

- Amanhã nós...

- Não! Amanhã nós nada! Eu morri anteontem. Você pode não saber, mas isso gasta energia. E muita! Meu organismo precisa descansar, ao contrário de vocês que ficam vinte e quatro horas investigando a vida alheia.

- Kate, veja...

- Eu não vou olhar nada, eu não vou trabalhar de nada, eu sou uma adolescente inconsequente que não quer saber de trabalho além do trabalho temporário de férias, que aliás eu já fiz e é outra coisa da qual eu ainda não descansei e...

- Kate! – Daniel gritou. Eu não sei porque, apenas me calei. – Seu trabalho será cuidar de Jayden Trollier.

Fiquei branca. Fiquei completamente branca. O sangue do meu corpo todo se esvaiu pelo ralo quando eu ouvi aquilo.

- Jayden... Trollier? Quer dizer... Jayden? Trollier? O Jayden Trollier!? O vocalista do Palante!?

- Eu sabia que ia dar nisso – disse Daniel, o rosto embriagado de tédio.

- Ahhhhhh!!!

Eu estava muito feliz. Quero dizer, muito feliz mesmo! Larguei tudo de lado e corri para a minha cama, agarrei-me no meu travesseiro e pulei em cima da cama gritando.

- Eu não acredito!!! Jayden Trollier! Jayden, meu Jayden!! Meu amado protegido!!!

- Desça daí – disse Daniel, ainda entediado.

Eu não parava de pular e, quando me deitei na cama, comecei a rolar de um lado para o outro, sem parar.

- Ahhhh, Jayden!! Mal posso esperar para ver você, meu amor! Meu único, verdadeiro e fiel amor! Eu irei cuidar de você tão bem que jamais irá querer outro anjo por perto! Jayden!!!

- Sua mãe – ele disse, rapidamente.

- Hein!? Ah! – sem querer caí da cama e minha mãe abriu a porta, esbaforida.

- O que houve, Kate!?

- Mãe! – levantei do chão, os cabelos entrando pela boca e completamente embolados, também grudados na testa.

- Filha!?

- Mãe! Eu te amo!! A vida é bela!!!

Corri e abracei minha mãe, tão forte que acho que entortei os aros do sutiã dela.

- Eu também, filha! Eu também!

- Ahhhh, a vida é bela! Oh, como a vida é bela! – eu fui girando até o banho e nem sei como consegui sair dele: fiquei cantando o CD inteiro do Palante do início ao fim e do fim ao princípio.

Quando cheguei no meu quarto, eu estava em alfa, porém meus anjos não pareciam nada satisfeitos.

- Um dia você ainda vai parar num hospício se continuar agindo assim – ralhou Daniel.

Olhei para eles com o rosto confuso e os cabelos molhados.

- Kate, precisamos conversar...

Me troquei. Assentamos todos na cama, agora eu estava novamente de pijamas e os olhei, com os cabelos molhados e segurando minha escova de cabelo ainda. Eles se sentaram à minha frente, um em cada lado da cama. Daniel estava sempre ao meu lado esquerdo.

- Kate, eu preciso lhe explicar algumas coisas sobre a Sociedade dos Anjos.

Eu não disse nada, apenas esperei.

- Cada pessoa deveria ter dois anjos da guarda. Eu digo que deveria porque não é isso o que acontece. Após uma série de guerras e conflitos, houve uma grande mudança na sociedade angelical.

- Ok, pule a parte chata – eu disse, mas me calei imediatamente quando vi o rosto repreensivo de Mia.

- Eu gostaria imensamente de pular o que você chama de “parte chata”, mas não é assim que as coisas funcionam na vida real.

“É verdade... Teoricamente, na vida real, eu nem deveria estar vendo vocês...” – pensei. Eles me repreenderam com olhares malignos. Afinal, qual era a diferença entre falar e não falar as coisas se eles conseguiam sentir o que eu pensava? Mia continuou:

- Depois de muito derramamento de sangue, finalmente conseguimos implantar um sistema que funciona. O sistema é o que usamos até então, porém, preciso te explicar como tudo era antes. Já te dissemos anteriormente que as pessoas, quando estão em sua última encarnação, podem virar anjos ao morrerem. Antes a opção vinha diretamente da alma da pessoa, que fazia sua escolha, mas isso fez com que houvesse uma superpopulação de anjos, pois as pessoas queriam, desta forma, prolongar suas vidas. Esta superpopulação de anjos atingiu um ápice que não deveria ter atingido, de modo que havia mais anjos que pessoas a serem protegidas. Além disso, o outro problema é que a maior parte dos anjos não possuía treinamento de como cuidar de seus protegidos. Desta forma, os anjos foram separados em três grupos: os anjos da guarda, os anjos da adversidade e os anjos caídos.

- Eu sou um anjo da adversidade – disse Daniel. – Meu trabalho é fazer os seres humanos se movimentarem por meio das dúvidas que inserimos em suas mentes.

- Eu sou um anjo da guarda – Mia voltou a dizer. – Meu trabalho é cuidar para que as decisões que os seres humanos tomem não os levem à extinção de sua espécie.

- E os anjos caídos? – perguntei. Dessa vez eles não fizeram cara ruim, então decidi que iria fazer apenas observações inteligentes dali para frente.

- Os anjos caídos – disse Mia. Daniel ficou com o rosto um pouco irritado – são anjos que não possuem “trabalho” algum. Bem... Nessa época, os anjos caídos eram os anjos sem talento que sobraram na separação angelical.

- Que coisa horrível! – soltei a frase sem querer. Daniel olhou para mim e disse:

- Naquela época, nosso líder não sabia o que estava fazendo. Nessa separação de classes, não podíamos escolher que tipo de anjos seríamos e muitos anjos da guarda companheiros de anjos caídos desceram à terra para ajudar suas duplas.

- Então, naquela hora que você me disse que eu era uma pessoa de sorte...

- Sim, me referia a você ter a oportunidade de escolher o tipo de anjo que você vai ser – disse Daniel, com uma voz meio falha.

- Então agora as coisas mudaram? – perguntei.

- Mudaram – disse Mia. Ela e Daniel trocaram olhares e eu entendi que a mudança não era boa. – O novo líder agora fixou cinco datas para o nascimento de pessoas aptas a serem anjos. No dia da morte dessas pessoas, os anjos encarregados dela perguntam se a pessoa quer fazer o treinamento para serem anjos.

- Na verdade, nós anjos da adversidade temos que fazer com que a pessoa não aceite.

- E nós, anjos da guarda, temos que fazer com que a pessoa aceite a tarefa. Infelizmente, por acaso do destino ou por medo, as pessoas mudaram muito e, agora, geralmente não aceitam e morrem. Mas quando as pessoas aceitam, ressuscitamos a pessoa para que se torne um anjo terreno, ou seja, um anjo entre os humanos. Enquanto isso, treinamos os anjos terrenos.

- E qual é o meu caso? – perguntei, curiosa.

- Você aceitou o treinamento – Mia deu um sorriso largo.

- Não, eu não aceitei! – me defendi.

- Não comecem com isso! – disse Mia, antes mesmo que Daniel abrisse a boca para me contrapor. – Escute, Kate... Sabemos que você pediu um tempo para pensar, mas nós não podíamos te dar esse tempo. Você teria que escolher na hora, mas suas palavras deram a entender que você queria continuar vivendo, então...

- Então vocês burlaram a lei do céu – acusei.

- N-não! – Mia se defendeu, gaguejando, enquanto Daniel parecia concordar comigo.

- Até mesmo anjos da guarda têm seus momentos de fúria, certo Mia? – Daniel se aproximou de Mia e lhe acariciou a cabeça, uma mão em cada lado, os dedos passando por entre os cabelos encaracolados e loiros dela. Envergonhada, ela escondeu o rosto, ficando cabisbaixa. Daniel continuou a falar – Mia é praticamente uma revolucionária.

- Não-é-isso! – ela ergueu o rosto imediatamente, falando de modo pontual, irritada. Daniel ofereceu-lhe um sorriso bobo.

- Ah, é sim! Naquela manhã, Mia estava conversando com a Cúpula Angélica, já discutindo os argumentos possíveis para lhe dizer naquele dia.

- Então tudo estava predestinado – fiquei abismada.

- Temos um oráculo. Obviamente, o futuro muda com base nas escolhas de cada um, porém não foi o que aconteceu nesse dia. Você realmente tentou morrer.

- E quase consegui – comentei, a esmo.

- É. Nós ainda tentamos te salvar. Você iria morrer se não fosse sua última encarnação e você não estivesse predestinada a se tornar um anjo. Mas, voltando ao assunto de Mia se rebelando contra a Cúpula Angélica...

- Pare com isso, Dan! – Mia pegou um travesseiro meu e jogou na cara de Daniel. Aquela foi uma das poucas vezes que eu o vi rir. – Não é nada disso! O que acontece é que hoje temos poucos anjos. Recrutar apenas cinco dias por ano em última encarnação não produz anjos o suficiente para cuidarmos da humanidade inteira! Além do mais, o treinamento leva bastante tempo. A minha idéia era fazer um programa onde o novo anjo faria dupla com o mais experiente, e assim ambos aprenderiam com os erros e acertos um do outro.

- Não aceitaram a proposta, disseram que isso geraria anjos grosseiros – explicou Daniel.

- Oh, você é fruto do teste desse projeto? Uma cobaia! Daniel, eu não sabia... Coitadinho, virou um anjo grosseiro – eu disse, rindo dele.

- Ah, eu vou deixar essa passar porque, infelizmente, meu trabalho não é matar você – Daniel me fitou com um olhar macabro. Eu continuei rindo.

- Propus outra coisa... – disse Mia. – Que todos os humanos destinados à última encarnação sejam aceitos como anjos para treinamento ao invés de humanos nascidos apenas em determinados dias.

- Não aceitaram também, dizendo que isso iria acabar gerando uma quantidade grande de anjos, assim como antes – ele explicou.

- Tentei argumentar de volta dizendo que a quantidade de anjos não iria mudar, já que os anjos caídos estão recrutando estas pessoas que não nasceram nestes determinados dias uma vez que que, após a morte, suas almas ficam perambulando por aí, procurando algo que lhes falta... e nunca encontram.

- E porque há determinados dias? – questionei.

- Porque os humanos nascem em dias regidos por certos anjos. Mas nessas cinco datas, os humanos que nascem não são regidos por nenhum anjo, de tal forma que eles podem escolher qual será o anjo da guarda deles.

- Então, cada dia tem um anjo da guarda específico? – eu estava determinada a saber tudo sobre o assunto.

- Sim, dependendo do dia que você nasce, há um arcanjo regente. As características da pessoa também mudam, seguindo aquelas do anjo do dia. Há dias em que as pessoas podem escolher qual será este arcanjo e o dia em que você nasceu é uma das cinco datas em que isso acontece.

- Já entendi porque eu sou esse caos todo: eu não tenho exemplo angelical fixo a seguir... – suspirei, triste.

- Não se preocupe. Pessoas que nascem nestes dias estão destinadas a grandes feitos – disse Mia, tentando me animar.

- Mas nem sempre estes grandes feitos são coisas boas – comentou Daniel, acidamente. – O que aconteceu no dia da sua morte foi que Mia estava irritada pela falta de anjos e... reviveu você. Assim, o pacto foi selado: você vai ser um anjo assim que acabar seu treino.

Olhei para Mia. Ela estava com o semblante culpado. Eu nunca esperaria isso dela. Fiquei... Abismada.

- Ah, como eu adoro quando o anjo bom na verdade é malvado e o protegido descobre! – disse Daniel, deleitando-se com a situação, jogando os braços por trás da nuca, esticando as costas. – Só nos resta saber se você será um anjo da guarda, da adversidade ou... um anjo caído.

- Quer dizer que depois de tanto trabalho na escolha, ressurreição e tudo o mais, eu posso me tornar um anjo caído?

- É. É como se fosse uma condenação – disse Daniel.

- Eu não quero! – me desesperei. Agora que não tinha mais volta, eu não queria ser uma pária da Sociedade Angelical!

- Fique calma, Kate. Com o nosso treinamento, com certeza você entrará para a Sociedade dos Anjos. Você só tem que seguir nossos conselhos e absorver as lições que lhe daremos – Mia sorriu.

Agora eu me senti um pouco calma. Meus olhos voltaram-se novamente para Jayden, colado na minha parede, e todo sentimento ruim foi embora instantaneamente.

- Certo. Bom, e quando eu vou fazer esse teste do Jayden?

- Logo – falou Daniel.

- Mas não tão depressa – disse Mia. – Você precisa treinar bastante.

- E quando eu começo?

Mia e Daniel olharam um para o outro.

~~~~~~~~~~

Em instantes estava eu estava voando nas costas de Daniel, vestindo pijamas. As luzes da cidade passavam rapidamente e, quando eu menos esperava, Dan e Mia pararam abruptamente no ar, o que fez com que meu corpo refreasse nas costas do meu anjo. Ao olhar para baixo, contemplei o lago May. A altura me dava uma vertigem sem precedentes. Enterrei minhas unhas nas costas do colete de Daniel

- Antes, libere suas asas – disse Mia.

- Como eu faço? Antes de qu... Ahhh!!

Com um movimento, Daniel voou para o alto e deu uma volta, como um looping de montanha russa. Não sei o que aconteceu, mas no final do movimento dele, eu estava dependurada, me segurando por apenas um braço em uma das asas de Daniel. Ele se sacudia, tentando me jogar lá em baixo. Meus pés ficavam tentando subir, pisando em falso no ar, enquanto eu tentava segurar os pés de Dan, enlaçando-os com minhas pernas ou comprimindo-os entre meus joelhos. Eu gritava o tempo todo.

- Ahhhh!!! Pare!!! Parem com isso!!! Socorro!!!

- Tá louca!? Solta minha asa ou vamos cair os dois! – ele gritou de volta e continuava a se sacudir enquanto caíamos em queda livre como se fosse um bungee jump.

Eu nem sabia de onde eu tinha tirado tanta força pra ficar grudada nele segurando-me por uma só mão, mas a realidade era que eu não conseguia me soltar. Ele mandava eu largar, mas eu simplesmente não conseguia controlar minha mão enrolada nas penas negras dele.

E caímos bem dentro do lago May. A lua iluminava parcamente dentro d’água, mas afundamos tantos metros que eu não conseguia subir. Eu nadava para o alto, porém meu peso misturado à força da gravidade que me puxava desde lá do céu ia me levando cada vez mais para baixo. Eu achei que eu ia morrer de novo no lago. Talvez algum anjo caído me encontrasse enquanto minha alma penada andasse perdida por entre os prédios de uma grande cidade e eu pudesse aceitar me tornar um anjo caído para tentar estender minha vida por alguns instantes. Agora eu entendia como os humanos pensavam quando o modelo angelical adotado era o antigo... Era instintivo do ser humano tentar prolongar a existência. Talvez por medo do que encontraria do outro lado da vida.

Uma mão pegou meu braço. No susto, engoli tanta água que meu estômago se encheu rapidamente. Quando eu pude ver, era Daniel, me puxando para a superfície. Planando sobre o lago, estava Mia, que olhou para nós dois, rindo.

- Vamos tentar de novo – ela disse.

- Ah, não mesmo! Eu não vou aprender que nem passarinho! – reclamei, com razão! Pelo amor de Deus, o ensino deles era tão arcaico que só faltava eles mandarem eu estender a mão à palmatória!

- Oh, só me faltava essa... – disse Mia, mas o que ela disse depois eu não consegui escutar, eu só conseguia olhar, abismada, como Daniel estava agora: de pé, sobre a água.

Para sair da água ele apenas apoiou as duas mãos na superfície da água, como se fosse a beira de uma piscina, e ergueu-se, assentando, depois se levantando. De pé, dobrou as asas para checar se estavam completamente secas e passou um óleo, saído da base das asas, nas penas que tinham molhado.

- Que...! – me faltaram palavras. Ele, então, plainou ao lado de Mia.

- Vamos – Daniel me estendeu a mão e eu não aceitei.

- Que voar que nada! Eu quero aprender é andar na água!

- É mais complicado do que você imagina. Nem mesmo Mia consegue – disse Daniel.

- Mas eu vou conseguir! Eu sou capaz de grandes feitos! – eu disse, cega pelo sucesso.

- Uma coisa de cada vez – disse Daniel, carrancudo, afundando a mão na água para pegar a minha e me ergueu voando até o céu novamente.

- Olha, eu faço de tudo pra aprender a andar na água. Ah! Eu sei fazer malabares! Quer aprender malabares? Eu tenho uma técnica para ensinar infalível. Aposto que você também deve ter uma técnica para ensinar como andar sobre a água. Não deve ser tão difícil se você abrir as asas e plainar enquanto anda na água, até pegar o jeito e...

- Cale a boca! – gritou Daniel, me soltando lá do alto, e eu caí mais uma vez.

- Ahhh!!! – gritei!

Queda e água foi o que aconteceu durante a noite inteira. Minha mãe se assustou quando eu cheguei em casa com os cabelos molhados.

- Kate, o que foi? – ela perguntou, me seguindo escada acima.

- Nada, mãe. Eu fiz testes pra entrar no clube de natação hoje.

- Ah, que ótimo que está se enturmando na escola! E como você foi no teste?

- Voar é mais fácil que fazer um crawl decente, acredite.

- Kat...!

Não deixei minha mãe terminar de falar, apenas fechei a porta do meu quarto na cara dela. Eu estava exausta.

- Foi uma ótima desculpa, Kate, já que todas as noites iremos treinar você pode dizer que todas as noites está treinando pra entrar no clube de natação – disse Mia, tentando me animar, mas ela não teve êxito.

- Eu estou de atestado! Ainda bem que minha mãe não percebeu! – exclamei enquanto caía na cama, morta de cansaço. Ia ser uma longa semana...

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