5. CONVERSAS VAZIAS

O homem, perplexo, faz uma pergunta à sombra da mulher:

 — Quem, ou o que, é você?

A mulher responde com uma voz feminina normal, levemente mais fina do que o convencional:

 —Nomes são fúteis quando se vive numa realidade onde as coisas deixarão de existir se medidas drásticas não forem tomadas com certa urgência.

Entendendo nada do que ela quis dizer, outra pergunta é posta contra a sombra, por parte do prisioneiro, cuja disposição é motivada pela curiosidade, por consequência, ele indagou:

 — O que você quer dizer com esse enigma? Realidade? Existir? Medidas drásticas? Vocês falam outra língua, ou minha interpretação dos fatos é péssima?

A sombra ignora mais uma vez os dizeres de sua “visita” ... Apenas complementa o que dizia antes:

 — A morte chega para todos, e com seu ser não será diferente.

 — Parem de falar merda e comecem a explicar tudo com mais clareza!

 — Se os cacos conseguirem chegar ao chão, então sua existência não será mais do que uma gota em um oceano inteiro.

Ignorado mais uma vez... A mulher parecia um espelho de tão centrada e “transparente”, digamos assim.

 —  Reflexos são apenas representações de nós mesmos em outro lugar, porém alguns acreditam que estes consigam viver uma vida também, só que diferente de tudo que já vimos, ou veremos daqui para frente.

Filosofias atrás de filosofias...

 — O que? Não... Seja mais objetiva com suas palavras moça, por favor!

 — Se eu tivesse como falar direto o que eu quero, acredita que já teria feito isso antes mesmo de te encontrar aqui?

O prisioneiro se cala e agora apenas escuta o que ela tem a dizer:

 — Muito bem então... Os avisos foram jogados em você, e agora, se não quiser ir atrás dos resultados por sua conta, é melhor que desista e deixe tudo se perder. As coisas se alteram quando se chega a esse lugar, e o tempo daqui consome muito do seu mundo verdadeiro. Logo a ampulheta da vida derramará o seu último grão e o ciclo terminará.

Uma ausência de som se instaura por todo o ambiente vazio.

Aqueles dois se remoíam em ansiedade, a fim de terem os devidos significados, ou entrega-los à um bem maior... Pelo menos essa é a opinião do narrador...

 — Como posso ser um herói se nem sei por onde começar?

Perguntas e mais perguntas...

 — Você será guiado para isso, se já não estiver sendo. Acredite na sua intuição, ela é de grande ajuda para facilitar as coisas.

 — Intuição... Perdi a minha faz tempo.

O homem murmurou para si mesmo ouvir.

 —  Moça eu queria te perguntar...

 — Seu mundo quer você de volta!

Interrompido pela sombra, V é empurrado pela mesma e lançado com extrema força para trás, voando para bem longe dela, não conseguindo nem gritar no processo de tão repentino que foi.

Depois de alguns segundos passados naquele vácuo, o encarcerado bate com toda força em uma espécie de barreira invisível, e cai com tudo no chão, do qual era bem resistente por sinal. Ao abrir os olhos lentamente, após algumas piscadas e de ter esfregado os punhos nos olhos, ele percebe que voltou para sua cela, aparentando se manter da mesma forma que antes de desmaiar, com todas as coisas em seus devidos lugares. Exceto pelo fato de um “probleminha” no grande espelho da parede do fundo, que, rachou-se em uma linha horizontal, bem no meio do vidro, dividindo-o em duas partes de forma simétrica. Ao olhar seu reflexo nele, cara-a-cara consigo mesmo, o rachado acaba por dividir o seu corpo em dois também, com sua cabeça, sobrevoando de certa forma, na parte de cima e seu tronco na parte de baixo do espelho.

V, ainda meio tonto por toda aquela bola de neve que aconteceu com ele, se senta na cama e começa a esfregar suas mãos por todo o seu rosto, para que acordasse de uma vez e tentasse pensar em alguma coisa. Essa sensação acaba por o lembrar daquela coisa na igreja, que acariciava sua face com aquelas mãos espinhosas e se deleitava com as rugas e a expressão de medo de seu “amado”. A visão perturbadora de seu pesadelo o atormenta, e ele decide se levantar, assustado e com seu corpo tremendo.

 Outros flashes vão reaparecendo na cabeça dele e, a cada um deles, a perplexidade aumenta dentro de si. O susto faz a respiração começa a ficar mais rápida e complexa, a dose de adrenalina sobe a um grande nível, o pânico toma conta dele e o choque e trauma que aquilo causou, mostra suas consequências em seu psicológico abalado e bagunçado.

Talvez tenha sido só um sonho péssimo, que aconteceria com qualquer um. Porém, o “pesadelo” foi muito mais real do que qualquer outro que já teve, e as marcas desse tormento deixariam cicatrizes por todo o corpo magrelo de V

O prisioneiro, em um pulo, vai até as grades da porta e clama o “nome” de N:

 — N! N eu preciso conversar com você por favor! Se eu te acordar me desculpa, mas é algo de extrema urgência! Foi terrível eu não sei o que aconteceu! N, por favor!

A voz grave e, antes cansada e rouca, agora desesperada e aflita de N logo atende ao chamado do companheiro aflito, dizendo:

 — V! Que bom que ainda está vivo! Achei que você não ia aguentar nem a primeira noite. Ainda bem!

V responde ao amigo com muita raiva em seu tom:

 — Ainda bem? AINDA BEM?! Porra N! Que merda aconteceu comigo? Aquilo que passei foi horrível, e você ainda diz que está tudo bem? E que história é essa de primeira noite? QUE MERDA DE LUGAR É ESSE?!

V respira fundo, se acalmando depois de jogar suas indignações para fora, e N começa a falar:

 — Olha V eu tentei te avisar sobre o que ia acontecer se a noite chegasse, porém, a nossa conversa acabou distraindo os meus pensamentos e, quando eu fui te explicar essa questão, já era tarde demais, me desculpa.

V volta ao seu estado de raiva e responde:

 — Que droga N! Como você me esquece de avisar sobre algo tão importante quanto ter o espirito traumatizada por um “pesadelo”, que mais parecia o inferno em si. Desculpas? Eu não quero desculpas. QUERO RESPOSTAS, PORRA!

N puxa um ar para seus pulmões e logo em seguida o deixa sair, voltando ao estado normal de seu timbre de voz (cansado e rouco de sempre), e assim, começa a contar as verdades que V tanto quer:

 — Olha essa prisão não é como as outras. Como eu já disse antes, somos os pecadores aqui e nós devemos pagar por nossos erros, mesmo que eu não tenho crenças fundadas nessas religiões, apenas utilizo como uma boa analogia. Um deus bondoso e misericordioso é inexistente aqui dentro, não, não, sem a menor sombra de dúvida.

 — De novo esse lance de analogias? Preferiria que conversassem normalmente...

Como uma crítica, o veneno dos dizeres do ouvinte das explicações é jogado contra o mais saudável cordeiro... Uma boa analogia a se fazer...

 —  Como já provavelmente te disseram, a liberdade de falar é ainda menor do que a de sair desse nosso cárcere, visto que podemos sobreviver se seguirmos as regras de ambos os jogos.

Palavras aos ventos, despejadas por alguém experiente perante as adversidades...

 — Isso tudo é um jogo pra você?

Em tom de ira, a pergunta é dissertada pelo prisioneiro 85.

 — Julga os atos assim? De um jeito errôneo como esse?... Nesse lugar, para sentenciar aqueles que cometeram um grave erro em suas vidas, decidiram impor uma política de torturas severas, da qual se você não ficar louco e se tornar outro desalmado dessa prisão, a loucura irá te dominar, e você, não querendo dizer que isso aconteça, pode acabar se matando no fim das contas, por não suportar mais nem mais um segundo nessa perdição. Por isso eu estou tão feliz em te ver aqui vivo.

 — Porra!

Um soco é desferido contra a porta, golpe dado por V, cujo som pôde ser ouvido da cela ao lado.

 — Torturas? Isso é desumano! O governo deixou isso passar?

 — Acredita neles meu caro? É um mentindo mais que o outro e o outro tomando poder de outro... Uma bagunça generalizada.

 — Sistemas de defesa dos direitos humanos... Nada?

 — HA! Direitos humanos... Conta outra V! Dependemos só de nós quando chagamos ao fundo do poço. O auxílio vem de nossas pernas, para nos levantarmos, e a perseverança gera frutos.

 — Pensei que fosse pessimista N.

O companheiro de cela demora alguns segundos para de fato dar uma conclusão concreta, mas logo a fala:

 — Desejaria otimismo a todos... Pedi para que fosse em frente, que tivesse força para não desistir. Entretanto, ao invés de te inspirar, acabei por deixar uma enorme pressão em suas costas. Me desculpe, fui ingênuo ao acreditar que conseguiria superar este obstáculo.

 — Tudo bem... Eu acho.

 — Sei que é difícil perdoar.

 — Sim... Agradeço o apoio moral.

 — Disponha camarada.

N faz uma pausar para respirar, e continua:

 — Bom... Como eu estava dizendo... As torturas foram implantadas legalmente na conduta dessa prisão e, com isso, os presos sofreriam punições durante as noites de todos os dias que ficariam aqui. O problema era conseguir torturar vários presos ao mesmo tempo. Necessitaria de um extremo número de guardas para tal fato, e tortura física só iria deixar os prisioneiros com mais raiva dos responsáveis pelo lugar, o que, de forma inevitável, culminaria em uma rebelião, e mesmo que os soldados fossem bem treinados, controlar uma multidão de bárbaros em fúria demandaria muito esforço.

 — Daí o sistema foi criado... Houve suborno por partes dos representantes?

 — Se teve, é um fato que ainda preciso descobrir.

 — com certeza teve... Empresários ricos podem ser podres, mas até eles possuem emoções humanas.

 — Desculpa quebrar a sua expectativa e esperança, porém, eu preciso te contar o que acontece aqui.

 — Já vi demais N... Pode dizer.

Certeiro como uma flecha disparada pelo melhor arqueiro do vilarejo... Sinto que V ainda progride, apesar das perguntas recorrentes.

 —  Para contornarem situação de possíveis rebeldes, a inteligência do lugar teve a brilhante ideia de pôr em prática um sistema de alta tecnologia, que eu não faço ideia de como funciona tão bem, que lê os seus pensamentos mais conturbados, principalmente, de arrependimentos passados, e os transforma em pesadelos terríveis e tão realistas, que o seu corpo que está na cela acaba expressando algumas reações que você tem no pesadelo.

V se indaga com o que N lhe diz, e pergunta a ele:

 — Ou! Segura sua explicação só um segundo, e me responde uma coisa: Como que a cela lê os meus pensamentos e consegue decifrá-los se nem eu mesmo lembro deles direito?

N responde, largando um suspiro antes de partir às vias de fato:

 — Não importa se você não se lembra deles, ou não se arrepende de nada que fez na vida. A cela vai recriar esse momento, independentemente de qualquer coisa. No seu caso, talvez ela esteja sendo abastecida de uma fonte exterior, talvez do seu subconsciente ou qualquer outra coisa assim.

 — Já ouvi falar nessa hipótese de você poder controlar sua alma por meio de um agente externo, no caso o subconsciente.

 — Sim. Subconsciente é basicamente o “andar” mais profundo do seu cérebro e, às vezes, pode ser até uma força criada a partir da sua própria mente, saindo do seu lugar de origem e tomando uma forma diferente

 — Ok, a cela revive meus piores arrependimentos mesmo que eu não consiga lembrar deles, beleza, essa parte eu entendi.

 — Já é um começo.

 — Entendi também que essa tortura acontece sempre ao anoitecer. Mas existe algum horário específico?

 — A tortura começa sempre ao anoitecer, sempre. Sem se atrasar, ou adiantar, e vai até o momento em que o sol raiar.

 —Isso é tempo demais!

V fica espantado com a surpresa do número de horas a se aguentar.

 — Eu consegui calcular a duração dessa merda e descobri que dura umas 8 horas. Ou seja, começaria as 18 horas da noite e iria até as 2 da manhã dou outro dia. Mas como você estará desesperado demais durante os pesadelos, o tempo passa muito rápido.

 — Cacete! Nem parecia ter durado isso tudo!... Senti como se tivesse passado mais tempo ainda.

 — Sim. O pesadelo deixa esse “rastro” dentro de nós.

 — Então, toda noite o ciclo é repetido.

 — Exato!

 — Ai merda! Não sei se aguento outra noite N, aquilo foi terrível e grotesco...

 — Ei V! Se acalme!

Os pedidos de piedade do homem são cortados pelo berro de seu “vizinho”.

 — Eu estou aqui para te ajudar a superar seus arrependimentos e pecados, para que você consiga recuperar suas memórias e entender o que aconteceu com você. Por isso peço que me explique, nos mínimos detalhes, o que aconteceu com seu corpo e alma durante a sua primeira noite de tortura nesse inferno.

 — Posso confiar em você N?

 — Bom. Sou o único que se importa com você no meio de várias carapaças desalmadas, contei meus segredos mais íntimos para você, expliquei tudo que sei sobre esse lugar e você ainda pergunta. Se não quiser minha ajuda é melhor desistir e deixar tudo se perder.

V percebe que essas últimas palavras ditas por N são idênticas a uma frase que aquela sombra de mulher disse para ele em seus pesadelos.

Decidido, o papel de contador se inverte, e então, V diz a N:

 — Tudo bem N... Eu confio em você.

 — Boa decisão V. Agora me conte tudo que aconteceu com você para que possa entender sua situação e te ajudar ao máximo com minha experiência.

V conta tudo o que sofreu em sua tortura psicológica, até os mínimos detalhes, sem faltar uma virgula sequer em suas palavras. Desde a sua inesperada chegada na igreja e o casamento com aquela mulher, passando pelo ritual dos convidados, para celebração e suas bizarras máscaras pálidas em formato de gotas, e contando as coisas grotescas que se sucederam naquele lugar bizarro. V fala também sobre o vácuo e a silhueta sombria da mulher que encontrou e conversou um pouco em seu pesadelo, dizendo as dicas que ela lhe passou para N, com o objetivo de se ele acharia algum significado nelas. O desabafo dele demora um certo tempo para terminar, mas ele consegue finaliza-lo. O prisioneiro de número 45 fica perplexo com tudo o que ouviu sair da boca de seu parceiro e acaba que corre em direção ao vaso sanitário de sua cela para vomitar o que estava segurando por um tempo desde o início do conto.

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