3. A PRIMEIRA NOITE COMEÇA

  Seus risos logo foram cortados pelas luzes do corredor principal, cujas iluminações se apagaram uma por uma, chegando cada vez mais perto de ambos. A escuridão deixada por cada luminária em seu rastro, remetiam a uma forte tempestade de trevas, da qual engoliria o ambiente por meio de uma mandíbula de vazio. Nenhuma luz acessa, somente o eterno breu.

N desesperado tenta avisar V do perigo eminente, indo aos gritos, de forma alucinada, com toda a vontade que sua voz alcançava:

 — V! INDEPENDENTE DO QUE ACONTECER, TOME CUIDADO E NÃO SE DEIXE LEVAR. PERMANECA FORTE ATÉ O ÚLTIMO MINUTO!

V não consegue expressar nada.

O assombro fez a sua boca paralisar mediante a um tormento desgostoso preso entre a ponta da língua e o céu da boca, responsável por arranhar a garganta do senhor, engolindo seco logo em seguida.

A reação de seu amigo foi genuína. O mesmo ficou assustado com aquelas luzes se apagando, e com o desespero de seu companheiro. Ele queria responder, mas o corpo estava travado e sua voz não saía. Uma pressão sombria puxava os ligamentos sanguíneos de seu ser, impedindo-o de seguir as devidas reações enviadas pelo cérebro....

A única mensagem dita pelo protagonista, foi gaguejar algumas palavras:

 — O que...  Que vai acontecer...  Acontecer?!

A última luz do corredor desiste da claridade, e se entrega a profunda escuridão, e se apaga.

O homem desmaia no chão de sua cela, sem razão aparente. Ele não sabia o que iria se suceder durante o período noturno. As “dicas” de N não foram muito claras a respeito disso. A sensação de fechar os olhos e se tornar um só com a obscuridade de seu corpo, faz-se presente mais uma vez dentro do pobre coitado. Sozinho e perdido, ele teria o objetivo de passar por isso sozinho, e descobrir o motivo de seu parceiro estar tão angustiado. Essa prisão é como as outras? Se a chegada da noite deixa um prisioneiro experiente, tanto mentalmente quanto fisicamente assustado e tomado por choque, maus presságios viriam atormentar V. Os eventos não serão os mesmos depois desse ponto. O circo fechava ao decorrer do giro dos ponteiros de um relógio parado. A chama ardia em meio ao mar gelado.... Paradoxos e mais paradoxos.... O quão histérico você ficaria ao saber os dados específicos de seu futuro?

Depois de alguns minutos, V acorda de forma repentina rodeado por um lugar escuro, onde só pode-se ouvir o badalar de sinos ao longe. A escuridão logo se esvai, e o encarcerado se vê em uma igreja, trajado com um terno clássico, e de frente com uma noiva vestida de um branco equivalente a neve, e o véu da roupa cobre o seu rosto, não deixando qualquer chance de enxergar alguma silhueta através do pano, só um vazio imbuído pelas trevas. Olhando os detalhes ao seu redor, o senhor percebe que os convidados, sentados s seus bancos com as respectivas vestimentas, elegantes e chiques, têm preso aos rostos, estranhas máscaras, com formatos de gotas, brancas, iguais ao vestido da noiva, apenas com os olhos de tom mais negro, que olham fixo para V e a mulher.

Entendendo nada daquele cenário, e tendo poucos segundos de raciocínio, o prisioneiro pergunta, indeciso devido à situação:

 — Onde...  Onde eu estou?

A noiva replica.... Porém, ao sair sua voz, outra sai em seguida da primeira, causando um efeito de coral e distorção na mesma.

 — O que foi querido? Esse é o momento mais especial das nossas vidas. Eu esperei tanto por isso! Não estrague ele agora!

V reprime os ruídos entrelaçados e difíceis de decifrarem da mulher, e enuncia suas palavras de fúria à mulher, num alto tom de fala:

 — NÃO! Eu não vou fazer isso! Você não é, e nunca será a minha esposa! Mais que merda é você? Uma aberração?

A prometida, usando de um movimento rápido, aplica um forte tapa no lado direito do rosto de seu “esposo” e, por causa dos terríveis termos que saíram da boca dele, a noiva fica sem chão, caindo de joelhos em lágrimas no altar.

Uma das maiores tristezas de um relacionamento vêm à tona. A noiva sendo esquecida perante a todos os representantes e mártires, inclusive do próprio padre e deus da religião católica, crucificado, tendo a expressão de tristeza e desprezo pela humanidade retratada sobre o rosto sangrento e espinhoso do considerado O Messias.... A mulher encontrou-se num ciclo de arrepios, negada de forma trágica em “praça pública”. O arrependimento domina o ser. A dor é evidente. Como rosas sendo arrancadas e mortas de seus campos. Morte... Faz parte desta realidade.

A água escorrida de seus olhos, acaba borrando toda a maquiagem da indivídua, e o líquido dessa mistura escorre pelo seu rosto, tornando-se a única coisa que podia ser vista sobre sua face. O mesmo, pingava no vestido, e o manchava de pequenas gotas negras. Os convidados, vendo o desenrolar das ações da noiva, iniciam uma bizarra conversa entre eles, dissertando uma língua que não poderia ser entendida nem pelos melhores tradutores do nosso mundo, uma mistura de maia com holandês junto de português. Era mais como se eles estivessem á recitar um ritual macabro. Os diálogos vão ficando com o volume cada vez mais elevado, aumentando mais e mais, ao ponto de V ter que tampar os ouvidos se não quisesse que os mesmos sangrassem.

 O som, também, tornava-se mais agudo com o passar do relógio e, em questão de seguindo fica ensurdecedor, onde os vidrais da igreja se estilhaçam e geram diversos cacos, que se espalham pelo chão da mesma. O protagonista até tenta tampar seus ouvidos, levando as mãos à cabeça e forçando os membros a fim de cobrir os canais auditivos e os buracos de onde o áudio poderia adentrar e interromper o raciocínio. As veias azuis e roxas, cujo sangue corria entre as dobras da parte de cima das mãos, se expuseram. Os dentes cruzaram uns com os outros e gerou um ranger dos próprios, lapidando as pontas serradas dos ossos de sua mandíbula e desgastando-as.

Apesar de elevar os esforços, não adianta, e o sangue inicia seu caminho, a fim de sair das orelhas do prisioneiro, e escorrer em direção ao chão composto por uma madeira alaranjada da igreja. Como se o barulho desgraçado de alto já não fosse o suficiente, (com a mulher não desistindo de chorar) os bancos do lugar são levitados a uma altura considerável do piso, entretanto, os convidados mostram não se incomodar com isso, onde continuam a recitar aquelas palavras inigualáveis incansavelmente e permanecem apáticos perante ao ritual, sem pausas ou interrupções. Um espaço religioso de devotos a Deus e uma região de renovação da alma, esperança, amor e solidariedade, começa a ser tomado por uma estranha seita, da qual resolveu enfeitiçar o local, onde intenções malignas e desprezíveis seriam o equivalente a armas de fogo. A qualquer momento, um demônio sanguinário poderia surgir dessa magia negra e destruir tudo e todos, estraçalhando o maior número de vítimas. V, tendo poucas escolhas a seu favor e com medo de morrer ali, começa a correr com destino as grandes portas de madeira da entrada, querendo, de alguma forma, sair daquele inferno de capela o quanto antes.

Ao se aproximar das ditas cujas, elas se fecham, antes que o prisioneiro pudesse pensar em sair dali. Ele até tenta utilizar de força física, com o objetivo de empurra-las e abri-las, intencionado a desbloquear a saída principal do espaço, chegando até a arranhar as portas revestidas de carvalho com suas unhas longas, cortadas a um século atrás, para alcançar tal fim..., mas de nada adianta. Seria mantido ali, trancado pela eternidade, tendo o barulho infernal penetrando o mais profundo do tímpano canal, sentindo essa agonia amargurando dentro dos próprios canais auditivos, rasgando a pele deles e estuprando-os. Parecia que seu corpo iria explodir-se de dentro para fora, ao menos, o sentimento passava essa sensação. Deixou os pensamentos esvaírem de seu cérebro. As pernas mostravam querer ceder de fadiga e os braços doíam de tantas reações. O vapor era expelido da boca do encarcerado. Um ar gélido atravessou a igreja e ficou estagnado, pairando pelos assentos e vidrais do local sagrado.

V senta no chão, cobrindo suas orelhas como antes, só que agora, grita de forma louca e desordenada. Gritos, originados da alma profana de um corrompido por desejos obscuros, sentenciado a passar por tremores de uma terra desolada. Um pecador perdido.... O berro ecoava por toda a igreja, podendo ser ouvido pelo lado de fora, colocando todas seus esforços restantes nesse clamor.

Os gritos, barulhos e o choro de todas as partes da capela, tanto do protagonista, quanto dos convidados, e da noiva, se transformam num som alto e impossível de ser ouvido por meras orelhas humanas, do qual acaba por gerar um estrondo sônico no local, parecido com uma grande explosão, destruindo-o por completo, sendo destroçado, e sobrando só as ruínas, fazendo com que os convidados sejam jogados para longe do mesmo.

Assim, os bancos param de levitar e caiem com tudo no chão da pequena igreja, rachando-o no processo, criando um barulho considerável de estrondo entre quatro paredes. O homem se levanta do piso destruído, onde agora seu terno foi rasgado e sujo por conta das devidas ocorrências, e percebe que não consegue captar ruído algum dos arredores. Ficou surdo após o ocorrido, coberto envolto de um pano de dizeres escondidos e segredos ainda não contados... Confinado a voz de sua própria cabeça.

Queria poder meramente caminhar pelas pedras, vigas e pilastras ornamentadas derrubadas ao chão.  Porém, unicamente, com uma de suas pernas, V sentiu-se obrigado a arrastar a outra, cuja ajuda é recebida de seus outros membros ainda funcionais o bastante para vagar a procura de uma escapatória. Ele começa a procurar pela mulher vestida de noiva, contudo, largando o jeito esplendoroso de antes.

 Ela não se encontrava no altar, e muito menos próxima de um lugar imaginado, onde o ritual sucedeu-se, que era no hall principal, apenas seu vestido estava ainda presente ali, jogado entre as escadarias do altar, no mesmo lugar que a mulher estava ajoelhada, derramando seu choro. V alcança o altar, com certa dificuldade, e ao olhar para o vestido, percebe que ele se permanece, intacto depois do estouro. Arranhões minúsculos e nenhum sinal de estar encardido ou qualquer coisa assim. Quase perfeito. A única coisa que o deixava imperfeito, era uma grande mancha negra que se localizava na saia do vestido, criada a partir das lágrimas, juntamente com a maquiagem escura, que a mulher derramou depois das palavras ditas por seu amado.

A partir disso, várias dúvidas atravessam a cabeça do encarcerado, uma flechada certeira, responsável por cortar os miolos do cérebro e destroça-los, curvando-se diante do ser pensante, fazendo o próprio perguntar-se:

 — Como esse vestido continua branco depois disso tudo? Quem, ou o que, era essa mulher? Por que eu estou aqui? E como vim parar aqui?

Ao conseguir algumas conclusões acerca de onde diabos ele estava em sua conversa com N na prisão, outras coisas, debaixo dos panos, ficaram mais obscuras do que claras dentro da mente do prisioneiro.

 As dúvidas não cansavam de surgir e elas, de forma alguma, aparentavam ser explicadas tão cedo. Antes que pudesse ter o direito de pensar nas possibilidades ou “razões” que decifrassem os acontecimentos, o abalado personagem sente seu ombro direito ser tocado por uma grande força, cujas mãos apertavam a pele de V, quase que como uma águia segurando sua presa através de suas patas e garras afiadas. Força essa que vinha logo de suas costas, acompanhada de uma respiração leve e serena, tranquila até certo ponto, da qual balançava de um jeito “gentil” os fios de cabelo mais soltos do homem. Virando seu pescoço com pouca velocidade, devagar, crendo que poderia ser apenas o vento lhe pregando uma peça, rezando as mais diversas orações que vinham e faziam-se presentes, nosso protagonista enxerga aquela mão, tonalizada numa cor acinzentada, raquítica e com unhas vermelhas longas e finas, parecendo mais garras do que unhas em si, das quais tocaram e sentiram a textura de sua pele e o restante dos trapos do terno.

Vendo que alguma aberração estava bem atrás de seu corpo, aproveitando da guarda baixa da vítima, a sua respiração começa a se alterar, onde toma um tom ofegante e incontrolável. Um suor gelado escorre da testa dele e, mesmo não podendo escuta-los, V sente seus batimentos ficarem mais acelerados, prestes a explodir ou sair pela boca.

O embaralhamento dos nós apertados do cérebro do encarcerado atormentavam-no junto de uma dor de cabeça desgraçada, centralizada ao redor do rosto dele... Porém, deixou escapar uma concepção própria:

 — A quanto tempo essa merda está atrás de mim?

Já que ele não podia escutar seus passos, deduziu essa teoria.

Mesmo que estivesse com bastante medo circulando por baixo das veias e vasos sanguíneos, a curiosidade de V a respeito do que se tratava aquela coisa, acabava por passar encima desse sentimento. Engolindo seco, e com um pouco de coragem, o prisioneiro se vira lentamente a fim de descobrir o que o aguardava ao decidir olhar para trás.

 A mão agarrada ao ombro o aperta com mais intensidade aplicada, cuja força dá origem a furos de onde finas linhas de sangue desciam até o vale das perdições do piso de madeira. O vestido é tomado por aquela mancha, das lágrimas negras derramadas pela noiva, cujo tecido é dominado pelas cores escuras e “mortas” de uma melancolia sofrida por um “anjo” rejeitado pelos céus.

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