2. FAMÍLIA

 — O amor é uma dor... Disso eu sei mesmo sem ter vivido essa sensação com este corpo...

O prisioneiro comenta sobre a fala de N.

 — Fiquei morando dentro de um apartamento velho, bancado pelo salário que recebia quando trabalhava como caixa de mercado.

E a história do contador volta ao fluxo normal, com ele ainda ambicioso em narrar seus dizeres.

 — Mas as contas se acumularam, e o dinheiro não estava mais rendendo tanto como eu gostaria. O emprego já não pagava o mesmo de antes, pois, o mercado estava indo à falência. Sorte pertence aos bem aventurados... Ela nunca me acompanhou muito. O síndico do lugar já se encontrava puto com a minha presença, e disse, que se eu não conseguisse pagar os boletos até o final do mês, eu seria despejado. O desespero me tomou... Poucos dias depois, o lugar onde trabalhava acabou falindo de verdade, fechando as portas de uma vez por todas...

Uma súbita pausa é feita pelo “narrador” do conto... Foi como se algo o forçasse a parar.

 — O que aconteceu?

O ouvinte pergunta, ligeiramente confuso e apreensivo, afagando com rapidez as barras da janelinha daquela porta de metal, da qual apoiava as mãos magrelas... Num ato de ansiedade derradeira, digamos assim.

 — Cof, cof, cof, cof!

Uma tosse seca domina a garganta de N, cuja sequidão, o fez engasgar-se com as palavras.

 — Tá tudo bem?! Quer que eu chame ajuda?

V fica preocupado com o “vizinho” que não parara de tossir.

 — Ajuda?

Com dificuldade na fala, o prisioneiro de número 45 retruca a pergunta com outra, num tom de ironia, e até sarcasmo, continuando a falar em seguida:

 — É mais fácil eles terminarem o serviço de uma vez do que me ajudarem.

A tosse então é cessada, e fortes respirações fizeram-se presentes aos ouvidos de quem escutasse o som seco e forte vir da cela de número 31.

 — Acho que a pressão te afetou.

 — O que quer dizer com isso?

Ainda rouco, mas já melhor, N descompreende a afirmação do camarada.

 — Em contar o que se passou com você. Talvez ficou com medo de terminar... Não sei explicar ao certo.

 — É... Talvez... Embora eu quisesse terminar a história, eu não consigo mais sequer tocar no assunto, aparentemente.

 — Tudo bem... Esses assuntos pessoais devem ser guardados somente para nós mesmos.

O nosso prisioneiro se acalma e o corpo dele relaxa, como se um peso fosse eliminado de cima dele.

Além disso, a curvatura das costas de V fica mais acentuada, quase corcunda, entre as frestas da janelinha de barras, aliviado por não presenciar uma catástrofe.

 — Essa tosse repentina tem me atacado, principalmente quando eu penso no meu passado...

 — Talvez seja uma reação psicológica.

 — Quer bancar o psicólogo?

N brinca com as palavras mais uma vez.

 — Só estou perguntando...

V desconversa, fugindo da responsabilidade de responder.

 — Digamos que seja mais uma “alergia” a tudo. Preferiria te contar logo e acabar com isso.

 — Não precisa... Se eu estivesse no seu lugar, não teria coragem nem de começar minha história.

 — Até por que você não lembra dela.

Outra “patada”, digamos assim, do grande senhor N.

 — Essa droga de cabeça... Por que eu tive que perder todos estes momentos?

 — Às vezes é a vontade de alguém.

 — Dos responsáveis por este lugar... Queria entender o motivo

 — Nunca entendi as intenções desses empresários, mas há 90% de chance de que eles são os responsáveis.

 — Uma chance grande dessas, para um lugar tão silencioso.

 — Além de psicólogo, é filósofo.

N brinca com as palavras de uma forma corriqueira e natural que chega a assustar um pouco.

 — Só imaginei, visto que a maioria das coisas vêm desses engravatados.

O mesmo termina o raciocínio.

 — Sofreu uma dessas amnésias?

V pergunta, intrigado com o que seu companheiro diria.

 — Talvez sim, talvez não. É uma resposta ambígua que eu te darei... Não consigo explicar com clareza essa coisa de “ter sofrido uma amnésia”.

 — Existe algo que ainda se lembra e não sente pressão em contar?

Outra dúvida vinda dos lábios do nosso prisioneiro.

 — Gosta de perguntas hein?...

 — Gosto de perguntas assim como você gosta de discursos.

 — Bom ponto.

Um elogio a tirada do colega.

 —  Me sinto até num interrogatório.

N divaga...

 — Mas sim, eu possuo uma memória final.

E retorna em poucos instantes.

 —  A carta que minha esposa me escreveu... Quer ouvir como ela foi escrita?

 — Bom... Se não for incomodar...

O prisioneiro de número 85 deixa o desejo da curiosidade no ar.

 — Certo... Todas as palavras parecem estar marcadas com ferro em meu cérebro. Posso esquecer de tudo e todos, mas desta carta... Jamais a deixarei ser largada ao vento. O resto permanece apagado depois do ocorrido. Vejo através de flashes... Na carta dizia:

“Minha última carta para você

Eu sei que você não é um monstro, ninguém conhece você como eu. Os noticiários só falam sobre você, não aguento mais essa droga. Choro por você todos os dias. Não me alimento mais, não bebo mais nada.  Passo o dia inteiro no meu decadente quarto. Não te odeio, você não fez nada de errado. A culpada de todo seu ódio sou eu. Eu traí a sua confiança. Não aguento mais carregar esse fardo em minhas costas. Sempre te amei, nunca quis te abandonar, mas acabei fazendo merda, e estraguei tudo. Eu tenho tanta insegurança em mim mesma, que não consegui contar para você sobre uma doença rara e sem cura que eu contraí nos últimos dias. Agora, se tudo já não estivesse perdido, eu não consigo mais me olhar no espelho. Enlouqueci. Essa é minha última carta para você. Estou com a corda no pescoço e prestes a pular...

           Seu amor

                                                                            Mary”

 —Perdi os sentidos após terminar de ler a carta.

As cicatrizes de tal carta, ficariam eternizadas na pele do “morador” da cela 31.

 — Aquilo... foi um misto de diversos sentimentos, que se embaralharam numa teia difícil de escapar. Não aguentei. Comecei a chorar muito....

Todas as falas são quebradas no meio por conta de uma longa pausa que resolveu participar da conversa entre ambos os presos...

 Abismado, assustado e intrigado, V permanece paralisado... Não imaginaria que a primeira pessoa a ser conhecida por ele se abriria de forma tão explícita.

Depois de retornar o foco de seus pensamentos, decidido á usar das próprias cordas vocais trêmulas para expressar o que sentia, V exclama à N:

 — N... Nossa! Eu não consigo imaginar! Cacete!

 — Desculpa se foi muita informação. Eu só queria desabafar um pouco. Companheiros são raros nessa merda toda. Você é o primeiro... Mudei muito durante os meus anos de cárcere. Utilizei esse período para refletir sobre minha vida e me perdoar perante aos pecados que cometi. Através disso, sobrevivi as torturas de meus próprios arrependimentos.

V responde:

 — N...

O protagonista hesita e pensa antes de falar o que seria o “correto” a dizer.

 — Se precisar de qualquer coisa... Se estiver à vontade de desabafar, ou de dizer alguma coisa, pode, com certeza, contar comigo. Não importa as ações que tomou no passado... Muito obrigado por compartilhar seus sentimentos comigo, mesmo eles sendo íntimos.

 — Deixa disso... Eu que deveria te agradecer. Estava precisando conversar e, contar sobre mim a você foi a decisão correta. É uma boa pessoa V... Sei disso.... Eu sinto isso.

N, esquecendo o lado tenso da conversa, deixa um toque de gentileza tomar as rédeas de sua boca e lançar palavras boas em meio ao caos instalado.

 — Mas aí...

O assunto muda de figura de um jeito súbito.

 — Minha história não te assustou não né?

O encarcerado da clausura 32, responde em um ar de brincadeira e ironia:

 — Depois de acordar nesse lugar terrível, nada mais me assusta.

Os dois começam a rir de forma descontraída.

 A disposição do clima é mudada e dissipada por boas doses humor... Estranho... estranho não, incrível! Vocês são instigantes, digo na forma como sabem lidar com a situação... Interessante... Realmente interessante.

As risadas são cessadas depois de alguns segundos. A conversa retorna na ocasião em que N fala ao novo camarada:

 — Bom... Assim espero...  Essa área, é uma terra de arrependimentos. As mágoas de cada uma das pessoas presas neste buraco, se transformam numa aura escura, atormentadas por lamentações passageiras. Gritos, sussurros, e lágrimas, às vezes, são escutados. Os daqui, como nós dois, somos pecadores. A diferença, é que ninguém irá nos perdoar por nossos atos.

 — O perdão só existe para aqueles que não tiveram medo de encarar seus egos.

V comenta.

 — Aqui não se seguem religiões ou crenças.

O outro prisioneiro logo corta, de forma até grosseira, o comentário anterior.

 — Os Seres superiores, dos quais não compreendemos, definem as ações daqui.

Ele continua.

 — Todavia, não são deuses. A dificuldade é criada a partir do momento que se faz um mal, considerado pela sociedade como crime, seja um mal menor ou maior... É a crença das pessoas...

E termina sua fala num ideal paradoxal, até mesmo para os padrões dele.

V pergunta, mostrando interesse genuíno na conversa:

 — E no que você crê N?

Submetido à tamanha dúvida assoladora de diversas pessoas ao redor do globo, atendendo ao pedido, N, convencido de que haveria outro diálogo importante, decide expressar seu ponto de vista:

 — Não acredito em nada disso. Creio que as pessoas deveriam mudar por si mesmas, deveriam pensar nas consequências de seus atos antes de fazê-los. Descobri essa teoria, depois de ter sentido ela na minha própria pele. Fui abandonado por todos, acredito que até por Deus.

 — Então acreditava em Deus?

O prisioneiro 85 indaga o companheiro

 — Por um tempo sim... Tive de superar os limites do meu corpo se quisesse “viver” aqui. Por isso, comecei a desacreditar dos poderes dele. Algumas vezes senti a perda do controle diante a minha humanidade. Pensamentos e sentimentos caóticos e bagunçados. A dor de cabeça era insuportável. Iniciei os meus processos de meditação e comecei a buscar controlar o meu corpo e alma, desligando os meus sentidos, a fim de dar um “reset” em mim.

 — Meditação?

 — Sim V. Foi a melhor ação que encontrei para “passar o tempo”, digamos assim.

 — E como foi esse processo?

 — Curioso como sempre.

N largou uma risadinha descontraída e continuou:

 — Por conseguinte, passei os próximos dias com o objetivo de me concentrar ao máximo para conter-me. O obstáculo principal dessa meditação, é que me custa muita energia, e necessito dormir quase o dia inteiro se quisesse me recuperar. Atualmente, o gasto de vitalidade é menor. Aperfeiçoei-me no correr do relógio. Segundos e minutos são virtudes aqui.

Depois de escutar o manifesto do camarada, o homem suplica:

 — Então eu acabei te acordando com a minha gritaria... Desculpa N... Eu estava desesperado e ...

 — Não se preocupa com isso. Você não sabia de nada e, acordar de repente e perceber que está mantido num cativeiro seria terrível, não importa o tipo da pessoa. Estou te aconselhando a tomar cuidado com esta espelunca.... Principalmente ao anoitecer.

O encarcerado de número 45 retruca as desculpas e esboça, indiretamente, algo diferente em seu tom ao dizer a última frase.

 — Me preocupar com a noite?

N percebe o assunto delicado posto sobre a “mesa”, mas responde, se esforçando para manter a razão:

 — Isso seria uma coisa que te deixaria maluco antes mesmo de acontecer e, mesmo se eu te contasse, o fim irá ser igual. Por isso, é melhor descobrir sozinho. Meramente, tome cuidado, e não desista desse mundo.

Aquilo não fazia muito sentido ao novato... Uma expressão ambígua foi entalhada ao rosto dele quando presenciou o significado múltiplo das informações concedidas pelo próprio “vizinho”.

 A única coisa certeira, era que, uma dessas informações não sairia mais da sua cabeça. Justo a de extrema importância se formos considerar a experiência de N.

— Não prometo nada...  Porém, farei o possível.

V enunciou uma frase neutra... Prometer é muito difícil, o ideal é ficar em cima do muro e esperar os cachorros da vizinha se matarem de tanto morderem um ao outro.

 — É melhor estar certo...  Conto com você V, pois, você é diferente de todos daqui.

Por outro lado, existe uma solução... O neutro e cinza foram repreendidos pela afirmação certeira de N.

 — Obrigado. Sinto um ar de confiança em ti. Não consigo dizer o porquê... É meu instinto.

O cinza fica parcialmente claro de um instante ao outro... Metáforas que significam pouco para os dois.

 — O motivo é a igualdade entre a gente companheiro.

 — “Iguais” ... Creio que todos aqui vivem como semelhantes. É estranho pensar que eles ainda tentam, esperando algo importante acontecer.

Foi uma comparação interpretativa, cuja teoria foi pensada por ele a partir do que viu em poucos minutos.

— Bem... Estamos no mesmo lugar, talvez pelas mesmas coisas, logo, te rotulo como igual a mim. Porém, existe uma diferença mútua entre nós dois: Somos os únicos vivos na prisão.

Pontos de vistas são o que mais aconteceram até o devido momento... Ao menos os dois reagem de formas diferentes.

 — Talvez seja.

V desconversa, como se refletisse ainda sobre o que pode acontecer, sobre os motivos ainda obscuros.

 — A menos que você esteja pensando em se tornar um deles e, se virar uma dessas “coisas”, por favor, não morda meu pescoço.

 — Pode deixar.

        Os dois riem da piadinha de N... Diria que elas são infalíveis, se não estivesse na presença de seres tão falhos.

Uma amizade acaba de surgir através das grades de seus respectivos confinamentos. É estranho surgir algo tão natural de oportunidades nada convencionais?... É difícil entender os humanos quando estes encontram-se desesperados por simples palavras-chave.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo