Capítulo 4

– Isso tudo é frio? – Minha mãe perguntou assim que cheguei na cozinha, encarando meu cachecol enquanto terminava de colocar as panelas e pratos na mesa.

– Minha dor de garganta voltou – menti, esganiçando levemente a voz.

Ok, não era uma mentira tão mentira assim, minha garganta estava queimando, tanto por fora quanto por dentro.

Apoiei o queixo na palma da mão esquerda, batendo as unhas da mão livre na mesa. Não sabia mais nem no que pensar, e não aguentava mais que as únicas coisas para fazer naquela casa fossem investigar sobre espíritos e bonecas estranhas. Tinha que ter alguma coisa para me distrair...

– Meus livros! – Exclamei quase gritando, me esquecendo completamente da dor e me arrependendo por isso logo em seguida.

– Não estavam nas caixas que abri, devem estar nas que deixaram no sótão, sei lá... – minha mãe disse, deixando que sua voz se tornasse um sussurro no fim da frase.

– É sério isso? – Perguntei estreitando os olhos.

– Sim.

Ah, merda. Só podia ser brincadeira, tanto lugar para colocarem meus livros e os colocaram justo no meio do palco de um show de horrores? Aquilo era proposital, só podia ser, e o destino deveria estar rindo muito da minha cara naquele momento.

– Onde está a chave? – Perguntei com o pouco de coragem que me restava, mordiscando a ponta do meu dedo indicador, um tique horrível que tinha quando estava nervosa.

– Depois do almoço eu te dou – ela respondeu com certo tédio, como se já estivesse de saco cheio da filha chata que não para quieta. – Eliel! Largue esse celular e venha comer!

Passos apressados soaram no andar de cima e, antes que eu me desse conta, meu irmão já estava puxando a cadeira ao meu lado para se sentar.

Fiquei quieta durante o almoço inteiro, quanto mais eu desejava não pensar no que havia acontecido no banheiro, mais eu pensava. Maldita psicologia reversa.

Sim, eu realmente era obcecada por esse tipo de coisa e aquilo realmente tinha despertado uma mistura de curiosidade e euforia em toda o meu ser. Mas, apesar de esconder super bem, não conseguia negar para mim mesma: estava assustada, com medo de que acontecesse de novo.

Sempre reclamei que nada de interessante acontecia na minha vida e, agora que havia acontecido, eu só conseguia me perguntar: "Por que comigo?"

Estava começando a entender como minha mãe se sentia, sempre vendo ou ouvindo essas coisas. Mas ela já devia estar acostumada, certo? Não, acho que você nunca consegue se acostumar com esse tipo de coisa.

Assim que terminei de comer fui para o quarto e me sentei no chão, contando as tábuas que formavam o chão e memorizando suas marcas, todas diferentes umas das outras. Meu olhar vagou por todo o cômodo até chegar na parede atrás da cama.

Franzi as sobrancelhas e fiz uma de minhas milhares de caretas estranhas. Algo não estava certo, eu sentia e sabia alguma coisa estava fora do lugar mas por motivos que são conhecidos exclusivamente pelo Cosmos eu não conseguia me lembrar o quê.

– Não sei mais o que fazer – falei ficando de joelhos em frente à cama e segurando meu urso à frente do rosto. – Isso está legal mas tedioso ao mesmo tempo. Já está começando a escurecer e a única coisa que fiz foi ir ao mercado, quase morrer e almoçar.

Claro sua idiota, como se uma quase morte causada por algo sobrenatural fosse mesmo algo a ser considerado normal e tedioso.

Apenas me ignorei e permaneci em silêncio por um momento esperando uma resposta, mesmo sabendo que ela não viria. Uma ideia me ocorreu à mente, mas ainda estava hesitante quanto à isso. Porque, de certa forma, eu sabia que ainda era cedo demais para que voltasse a entrar naquele sótão.

Porém, eu queria ir lá por dois motivos.

Primeiro: meus livros possivelmente estavam lá e eu queria alguma coisa para fazer. E segundo: eu tinha quase certeza que encontraria algo interessante no meio daquelas aberrações.

Meu celular apitou em cima da cômoda, fazendo-me dar um pulinho com o susto.

– Já deu, né? Minha cota de sustos já acabou – falei engatinhando até a cômoda e pegando o aparelho.

Havia chegado uma nova mensagem.

Parei por um momento, encarando a tela com certa confusão. Quem me mandaria uma mensagem?

"Esqueceu que eu existo, foi? Hahahaha"

Isabel! Sorri automaticamente e digitei uma resposta praticamente na velocidade da luz.

"Izzy! Desculpe não ter falado com você, mal cheguei aqui e já estou enlouquecendo".

Demorou pelo menos cinco minutos até a mensagem ser enviada, fiquei parada encarando a tela luminosa, esperando ansiosamente até o símbolo de "enviado" aparecer. Já estava morrendo de saudade daquela maluca.

Izzy era a única amiga que eu tinha e às vezes conseguia ser mais estranha que eu, e eu tinha certeza que éramos a melhor dupla de amigas de todos os mundos: vivíamos brigando por besteira e cinco minutos depois estávamos rindo do resto do mundo. Eu não a entendia e nem ela à mim, chegava a ser engraçado.

Meu celular voltou a apitar e já abri a nova mensagem, sem conseguir evitar um sorriso enorme que rasgava meu rosto.

"Enlouquecendo? Vc já é louca hahaha então como vão as coizas aí? É bizarro e divertido como vc achou que seria?"

"O certo é "você" e "coisas", Izzy. Você já deveria saber. Mas enfim, não está tão divertido mas um pouco bizarro, sim."

"Ok, ok professora, vou escrever serto e... Peraí... bizarro como? Tipo corpos escondidos nas paredes? AAAH ME FALA!!"

Ri do jeito que ela escrevia. Era quase como se eu pudesse ouvir sua voz extremamente aguda, curiosa e eufórica, dizendo aquelas palavras bem ao meu lado.

"Calma, calma... Não bizarro à esse ponto. Quero dizer, não cheguei a quebrar as paredes para ver se corpos cairiam de dentro delas (pelo menos não ainda)".

Terminei de digitar e coloquei o celular de volta em cima da cômoda. Arrastei-me até minha cama feito uma lesma e deitei, enrolando-me no edredom gigante e quente como sempre. Apoiei o queixo em cima da cabeça de Berrie e fechei os olhos.

Estava tão frio, e eu estava tão sonolenta... Bocejei e apenas me entreguei aos pensamentos sem sentido que sempre surgiam quando eu estava com sono.

Eu estava na frente da minha antiga casa, colocando a roupa em uma boneca Barbie e penteando seus cabelos louro platinados. Estranho... eu parecia ter seis anos novamente.

Levei os olhos até uma garotinha ajoelhada na grama à minha frente, parecia estar brincando com algum inseto. Só conseguia vê-la de costas, mas me lembrava muito uma anjinha, com cabelos castanho-claros encaracolados, a pele branca rosada nos cotovelos, os braços e pernas rechonchudos...

– Izzy! Não mexa com os grilos, eles podem pular na gente! – Gritei com a minha voz aguda de criança. Por que havia dito aquilo? Aquela menina não era a Izzy, Isabel tinha os cabelos pretos e extremamente lisos, e sempre fora muito magra.

– Tudo bem Lis, este aqui já está morto – ela respondeu como se fosse algo divertido e se virou para mim, exibindo um largo sorriso. – Eu o matei.

– O quê? – balbuciei assustada e o belo céu azul de verão se tornou cinza e leitoso de uma forma mais que repentina, coberto por nuvens carregadas.

– Me desculpe – a garotinha disse com a voz embargada, cobrindo o rosto com as mãos. – Eu não queria causar dor, eu juro!

Ela abaixou as mãos, me permitindo ver seu rosto. Seus olhos eram apenas buracos negros dos quais escorriam sangue e os poucos dentes que haviam restado em sua boca estavam podres e pendiam da gengiva arroxeada e inchada.

Senti meus batimentos falharem por um instante e meu pulmão pesar em minhas costas, com mais dificuldade do que eu pensara ser possível para absorver o ar que eu tentava respirar de maneira quase que desesperada.

Tentei correr quando ela começou a andar em minha direção mas eu estava travada, meu corpo simplesmente não me obedecia de forma alguma. Tentei gritar mas nenhum som saía, eu mal conseguia abrir a boca.

– Lis – ela cantarolou meu nome com a voz rouca, estendendo os braços em minha direção. – Está tudo bem, Lis.

Seus dedos estavam manchados de sangue, retorcidos, quebrados.

– Fique longe de mim... – novamente tentei gritar mas deixando escapar somente um sussurro fraco e quase impossível de ser escutado.

A pele da menina, que antes fora branca e rósea, agora adquiria um tom cinzento, como se estivesse se decompondo em questão de minutos. Pedaços de pele e carne podre caíam no chão aos seus pés, deixando expostos seus ossos fraturados e exalando um cheiro horrível de carne podre.

Mais uma vez tentei reagir, sem qualquer sucesso. Era como se agora eu não fosse nada além de uma estátua de pedra, que não pode se mover e nem falar. A menina chegava cada vez mais perto com sua aparência cada vez mais fúnebre e cadavérica.

– Lis... Vai ficar tudo bem, eu prometo.

Lágrimas ardentes começaram a descer pelo meu rosto. Aquilo me assustava, mas ao mesmo tempo me transmitia uma sensação horrível da mais pura dor e tristeza.

– Vai ficar tudo bem, você só precisa voltar – ela disse com o rosto a centímetros do meu, então tudo se tornou escuro e silencioso de uma forma esquisitamente bizarra.

Tentei enxergar algo mais não consegui. Ainda não conseguia ao menos me mexer. Foi quando me dei conta do que realmente acontecera. Havia sido um sonho.

Tentei abrir os olhos mas novamente meu corpo não me obedecia, e minha mente se perdia entre os resíduos daquele pesadelo terrível, como se meu cérebro estivesse tentando me forçar a voltar a dormir e sonhar com tudo aquilo uma segunda vez.

Conseguia ouvir o som da chuva – agora forte – batendo contra a parede do lado de fora.

Desisti de abrir os olhos de tentei mover os dedos, mas nem isso foi possível.

Parei, tentando encontrar o motivo por trás daquilo - sem dúvida alguma de que eu estava com medo, mas uma verdadeira fã de mistério e terror nunca desiste de encontrar explicações e...

Ah, ótimo, paralisia do sono, a informação gritou na minha mente como se fosse uma verdade universal óbvia demais e finalmente desisti de tentar levantar.

Era como se tudo houvesse ficado mais claro agora que eu tinha encontrado a razão mais plausível para aquilo.

Apenas relaxei ouvindo som da chuva, pois sabia que era o melhor a se fazer até aquilo passar.

Meus ouvidos captaram um barulho diferente e meus pelos se eriçaram. Passos, dentro do meu quarto. Queria gritar que se fosse Eliel ele se arrependeria depois mas meus lábios continuavam travados.

Sons de um choro baixinho, quase como um resmungo, vieram de algum lugar do quarto, então eu tive certeza de que não era meu irmão. Primeiro que ele não iria ao meu quarto só para que eu pudesse vê-lo chorar, e segundo que era um choro agudo demais, não só como um choro infantil, mas também como o choro de uma menina.

Imagens da garotinha do meu pesadelo voltaram à minha mente e meu coração acelerou, acabando com toda a paz que eu me esforçara para sentir.

"Você só precisa voltar" ela dissera.

Voltar para onde, meu Deus? Ah que se dane! Era só um sonho. Assim eu esperava.

Ouvi o choro se tornar um pouco mais alto e xinguei mentalmente. Eu estaria chorando junto se conseguisse.

Os sons de passos se repetiram e percebi que estava retomando o controle sobre mim mesma. Meu peito subia e descia rapidamente, meu coração parecia querer saltar pela minha garganta.

Depois de muita luta e desespero, abri os olhos lentamente, ainda enxergando somente sombras embaçadas e um monte de escuro. Voltei meu olhar para a porta que se encontrava totalmente aberta, onde vi uma sombra no corredor, como se alguém houvesse acabado de sair do meu quarto.

Olhei para o pé da cama, rezando para não encontrar um demônio parado ali, me encarando com um sorriso bizarro. Suspirei de alívio quando tudo o que vi foi meu guarda-roupa com as portas abertas, transbordando um bolo de roupas.

– Puta merda... – murmurei levantando e me apoiando na parede, completamente tonta.

Não falava muitos palavrões, mas a única coisa que eu conseguia fazer depois daquela merda toda era xingar.

Estendi minha mão até a cômoda para pegar meu celular e parei instantaneamente, trêmula e suando frio.

Ao lado do celular, estava a velha chave enferrujada do sótão em cima de um papel, com palavras coloridas em giz de cera que pareciam ter sido escritas por uma criança: "Cuidado".

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