Capítulo 2

Há momentos na vida que parecem congelar no tempo... aqueles que parecem rodar em câmera lenta, capazes de te fazer enxergar as poeiras do ambiente quando a luz reflete de algum lugar, te fazem ouvir o som da gota d'água que cai na pia porque a torneira não está fechada corretamente. 

Aqueles momentos que parecem durar horas em sua mente travada, mas que, na verdade, duram apenas alguns poucos segundos. Estou em um momento desses agora.

Olho para o homem ajoelhado e com a cabeça baixa no tapete da minha sala, e só consigo pensar que isso só pode ser uma piada. De muito mau gosto, por sinal. Como um homem bate a minha porta de madrugada dizendo que veio buscar uma princesa? É algo que só pode ser classificado como surreal. E ele disse bruxas? Fadas? De que livro infantil esse homem retirou essas ideias? 

Vanora está paralisada, assim como eu, e Zephan me olha com olhos cheios de lágrimas. Ninguém diz nada por um bom tempo, e a cena a minha frente parece mais e mais bizarra a cada segundo que se passa.

ㅡ Levanta. Agora! ㅡ minha irmã diz com dentes trincados para o homem no chão. 

Lembro que meu cunhado o chamou de Farall, ou algo assim, e ele não move um músculo do lugar.

ㅡ Você não é minha Rainha. ㅡ ele responde sério e me encara, seus olhos com um brilho de admiração com o qual nunca me olharam antes ㅡ Só ela pode me pedir para levantar.

ㅡ Alhana... ㅡ Zephan diz e me viro em sua direção, em completo choque com toda essa situação ㅡ Escuta o que temos para lhe dizer. Nós temos...

ㅡ Temos? ㅡ Vanora rosna para o marido, cheia de rancor ㅡ O que você é, Zephan? Quem você é? 

Meu cunhado fecha os olhos e respira fundo várias vezes, tentando se acalmar. Os segundos se passam e só ouço o som da sua respiração forte e um pouco descontrolada. Olho para o homem no chão e ele ainda me encara. Seu olhar examina cada parte do meu rosto, mas não de uma forma libidinosa, mas sim como se estivesse admirando uma rara obra de arte. Me fazendo sentir como se fosse um animal em extinção. Minha pele se arrepia com esse pensamento, e um gosto ruim invade minha boca.

ㅡ Eu não sou Rainha de nada. ㅡ digo, e seus olhos brilham ainda mais, com um toque de diversão ㅡ Eu não sou, ouviu bem? 

ㅡ Sim, você é. ㅡ ele diz, convicto.

ㅡ Eu não... droga, levanta desse chão! ㅡ quase grito e ele levanta sorrindo.

ㅡ Kail, quer fazer as honras? ㅡ ele se dirige ao meu cunhado, mas sem tirar os olhos de mim.

Vejo minha irmã encarando Zephan, que permanece de olhos fechados ainda por um tempo. E, quando os abre, eu vejo o medo neles. O medo está estampado em todo seu rosto. Eu sinto o medo entrando também por minhas veias, e me vejo respirando cada vez mais rápido, me preparando para ouvir o que ele tem a nos dizer.

ㅡ Você... ㅡ ele começa, e minha irmã segura minha mão com força, chorando em silêncio, mas com ódio no olhar ㅡ Eu... Eu fui enviado para essa cidade há... há anos atrás para... proteger... a... a...

ㅡ A Alhana? ㅡ minha irmã pergunta, em um fio de voz trêmula, e sinto um formigamento em meus dedos. Uma energia que começa a pulsar sem que eu possa controlar.

ㅡ Sim. ㅡ Zephan responde, sussurrando ㅡ Eu... Eu fui enviado porque... porque o antigo guardião havia morrido. Queimado. Tentando salvar a mãe de vocês.

Minha irmã cai no chão e começa a chorar copiosamente. A abraço e encaro meu cunhado. Ou sei lá quem seja esse homem de verdade. Não posso acreditar que fomos enganadas todos esses anos. Não posso! Como um ser humano pode fingir por tanto tempo assim? Como nunca percebemos que ele era um mentiroso profissional?

ㅡ Você mentiu! ㅡ eu o acuso, e sinto meu sangue esquentar cada vez mais ㅡ Você mentiu esse tempo todo! Como pôde, Zephan?! Como pôde enganar pessoas que te amaram tanto?!

ㅡ Não! ㅡ ele se ajoelha a nossa frente e diz chorando: ㅡ Eu amo vocês, vocês são minha família! Eu juro por minha vida! ㅡ engasga com seu choro e morde as dobras de seus dedos com força ㅡ O jeito que cheguei até vocês foi planejado, eu admito, eu estava seguindo as duas desde o dia do incêndio, protegendo vocês, eu não tinha que me apresentar, eu estava apenas seguindo ordens, deveria me manter oculto, mas… ㅡ o olhar de Zephan é de súplica ㅡ Eu ouvia vocês chorando toda hora, todo dia, eu... Eu não queria ver vocês naquele sofrimento. ㅡ ele diz com a voz embargada, me olhando ㅡ Eu planejei chegar e ser amigo de Vanora, mas o amor... o amor chegou aos poucos e, quando eu vi, eu não podia mais ficar longe. Eu amo vocês, e isso nunca foi uma mentira! Eu nunca enganei vocês sobre o meu amor! Por favor, acreditem em mim, por favor!

ㅡ Meu Deus... ㅡ minha irmã continua chorando ㅡ Você mentiu esse tempo todo! Fingiu ser outra pessoa! Como acha que posso acreditar nisso?! Como acha que pode simplesmente pedir que acreditemos em você depois de tudo que nos disse, Zephan? Sempre fomos apenas um trabalho para você!

ㅡ Meu amor, por favor, eu juro! ㅡ Zephan chora e eu só consigo sentir raiva por cada lágrima que ele derrama.

Mentiroso! Nos enganou esse tempo todo! Nos usou para esconder quem quer que ele seja de verdade. Nós o acolhemos, éramos uma família! Mas… isso não pode ser real, não é? Porque se o Zephan realmente mentiu, se ele realmente era um protetor, então… 

ㅡ Espera. ㅡ eu digo e todos me olham ㅡ Isso não pode estar acontecendo... isso não é verdade, é? Eu não sou um clichê da Disney. Não pode aparecer gente do nada na minha casa dizendo que sou uma princesa! Isso não é real!!

ㅡ O que é Disney? ㅡ Farall pergunta, mas ninguém o responde.

Minha irmã e Zephan apenas me olham, mas é o olhar de Vanora que me faz estremecer. É um olhar triste, mas também de aceitação. Como se ela já esperasse por isso.

ㅡ Vanora... Me diz que isso não é verdade. Isso não pode ser real! 

ㅡ Eu não... eu não sabia nada sobre isso. ㅡ ela diz, seus olhos e nariz vermelhos devido ao choro ㅡ Eu... você lembra que a mamãe um dia te chamou e disse que você não nasceu dela? Lembra? ㅡ confirmo, ainda em choque com o rumo que essa conversa está tomando ㅡ Naquele dia ela me chamou escondida, e disse que um dia alguém iria vir te buscar, e que não era para eu ter medo, pois você voltaria para seu verdadeiro lar. Mamãe sabia que isso aconteceria um dia.

ㅡ Meu lar é aqui. Com você. ㅡ digo rapidamente ㅡ Aqui é o meu lugar, Vanora! Eu nasci aqui, tenho certeza disso! Aqui é o meu lar e sempre foi assim!

ㅡ E sempre será, meu amor... ㅡ ela diz e me abraça, então cochicha em meu ouvido: ㅡ Você tem dons, lembra? Estão escondidos aí, debaixo desse muro que você construiu, mas estão aí. Você sempre soube que não poderia mostrá-los ao mundo, pois esse tipo de dom não existe aqui, Ana. Você é extremamente inteligente, já deve ter pensado sobre isso em algum momento de sua vida.

ㅡ Por favor... isso não pode ser verdade. Eu não sou nada disso que ele disse. ㅡ choro em seu ombro ㅡ Eu não posso ser uma princesa, eu não quero ser! 

ㅡ Vamos ouvir a história? ㅡ ela me olha nos olhos e seca minhas lágrimas, e me sinto a mesma menininha que era consolada em seu colo na infância ㅡ Você não é obrigada a ir a lugar algum, eu não deixarei você ir sem que você queira. Mas eu sinto que precisamos ouvir o que esse homem tem a dizer, é exatamente o que mamãe me avisou que aconteceria.

ㅡ Mas... ㅡ digo baixinho, e seu olhar me diz que não tenho escolha ㅡ Não dê uma de mandona agora, Van. Isso tudo é uma loucura!

ㅡ Sim, é! Mas vamos apenas ouvir a história toda primeiro, tudo bem? E depois vamos decidir o que fazer. Juntas. ㅡ abro a boca para protestar, mas ela toma a frente: ㅡ Expliquem-se. 

Vanora aperta minhas mãos e nos levantamos do chão. Nos sentamos no sofá e encaramos Farall. Ele suspira e vem sentar na poltrona, de frente para nós, enquanto Zephan senta no chão, com os joelhos dobrados e olhos fechados. Respiro fundo, tentando acalmar meus batimentos cardíacos, mas eu sinto como se tivesse uma rachadura no muro que consegui construir com tanto esforço. Estou prestes a romper e não faço ideia de como será quando toda essa energia, contida por tantos anos, resolver jorrar de uma vez.

ㅡ Vou contar a história do início. ㅡ Farall diz com sua voz rouca ㅡ É uma história que crianças crescem ouvindo, e todas elas têm fé na Filha da Lua.

Sinto um arrepio ao ouvir ele falar isso. Sinto que minha vida está prestes a mudar completamente, e não faço ideia do que vai ser daqui para frente.

ㅡ Há mais de mil anos houve uma guerra em Alroy. Era uma terra onde bruxas e fadas viviam em harmonia com humanos; crianças humanas brincavam na floresta com o Povo Encantado, crianças encantadas podiam brincar nos jardins do palácio, não havia medo entre os povos. Eram um povo de paz e alegria... Até o dia em que o clã das Manachs chegou a primeira vila. ㅡ sua voz muda para um tom mais sombrio, como se sentisse raiva ao lembrar da história ㅡ Elas corromperam bruxas Ullas à Magia Mortal, matando assim suas Almas e as transformando em imortais. As Ullas são bruxas boas, praticam uma magia que chamamos de "magia amiga", e perderam muitos clãs para as Manachs. ㅡ ele faz uma pausa e olha para Zephan antes de continuar ㅡ O Rei ofereceu abrigo ao Povo Encantado, então todos correram para se esconder nos jardins reais; foram dias sombrios e de muito medo entre eles, mas as Fadas e Bruxas faziam constantes feitiços de proteção, o que os deixavam mais seguros. Mas então, os amaldiçoados descobriram uma maneira de quebrar o feitiço. Elas estavam em minoria, haviam muito mais Fadas e Ullas nos jardins do que esperavam, então resolveram atacar de outra forma… atingindo os mais fracos e inocentes.

Farall respira fundo algumas vezes antes de continuar, mas é Zephan quem fala primeiro.

ㅡ Elas envenenaram a água do poço que as crianças do Povo Encantado utilizavam para beber, enquanto brincavam nos jardins, e por causa disso todos acharam que o Rei era um aliado do clã Manach. ㅡ Zephan diz com a voz contida, e ouço um soluço escapar de Vanora ㅡ Então houve revolta. As fadas, vendo seus filhos mortos, queriam matar as crianças humanas, mas as Ullas não concordaram, elas só queriam chorar a perda de suas crias, queriam apenas sentir o seu luto. Então...

ㅡ Então o Rei foi morto. ㅡ Farall completa ㅡ Uma Fada o matou sufocado em uma noite. Ela invadiu os aposentos reais e, sem ao menos tocar nele, o matou… apenas olhando-o dormir. ㅡ o olhar do homem fica perdido, o semblante caído demonstra sua tristeza ao contar a terrível história de sua terra ㅡ Depois disso houve guerra entre humanos, Povo Encantado e Manachs. Uma guerra implacável, sangrenta e desleal. 

ㅡ As Manachs venceram. ㅡ Zephan completa e ficamos em silêncio ㅡ Foram muitos mortos, muitos mesmo.

Minha mente não para de funcionar, tentando assimilar essa terrível história, mas eu sei que não para por aí. Eu sinto cada palavra me agitar por dentro, fazendo minha energia pulsar por mais, como se meu interior reconhecesse e ansiasse por essa parte de minha vida.

ㅡ Então a Deusa Daire apareceu. ㅡ Farall diz e seus olhos brilham ao falar da tal deusa ㅡ E contou a verdade ao povo. Houve muito choro e lamentações em Alroy por dias, a terra estava destruída pela Magia Mortal das Manachs, mas Daire não reconstruiu nada. Ela apenas trouxe a verdade aos olhos de todos, e paz a cada coração. A deusa expulsou o clã para terras longínquas e as confundiu para esquecerem o caminho para Alroy.

ㅡ Mas ela deixou a profecia. ㅡ Zephan diz e me olha. ㅡ E é aí que você entra, doce criança...

ㅡ Como? Isso aconteceu há milênios, não foi? ㅡ eu rio de nervoso ㅡ Eu não tenho nada a ver com isso! 

ㅡ A profecia... ㅡ Farall continua, ignorando meu protesto ㅡ "Em uma noite de luar, uma centelha de magia cairá. Abençoado será o ventre em que a magia tocar. Do amor impossível nascerá a Luz. Da mistura do sangue sairá a Redenção. A Filha da Lua lutará pela paz. Por seu sangue a guerra findará. A Magia Mortal se extinguirá. Dela sairá o poder para a Terra voltar a viver. No seu 22° ciclo lunar, a Filha da Lua Reinará."

Silêncio. É o único som que ouvimos na sala. 

O silêncio.

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