Tribo das Dríades
Tribo das Dríades
Por: Aline Dríade
Capítulo 1: A Ilha do Júbilo

Enquanto o crepúsculo cinzento adormecia sobre a Terra, o medo despertava minhas atordoadas pálpebras. Se acaso o sono me entorpecesse com o cair da Noite Obscura, horrendas sensações invadiam meus sentidos. Era como um sonho lúcido que se repetia durante quase todas as noites; um pesadelo que me trazia imagens de acontecimentos mórbidos!

Durante essas experiências oníricas, estava eu trancada em um túmulo, como se eu fosse um segredo escondido. Eu estava apavorada! Ficar presa em um túmulo secreto, sem estar morta e sem a possibilidade de sair... Era desesperador! E tudo o que eu sentia era medo e vazio.

Dentro do sonho, enquanto eu procurava uma saída, sentia a respiração flamejante de assombrosos seres astrais, repletos do malicioso desejo de me roubar a consciência, levando-me a pensamentos insanos. Quando eu me percebia consciente nesses momentos, meus membros não podiam se mover, nem os lábios gritar, tampouco os olhos abrir, carregados por um imensurável peso, contra o qual minha vulnerabilidade não poderia lutar. Esse medo, que perpetuava nas chagas de meu ser, se fazia presente mesmo entre o lúcido alvorecer, após o meu despertar, tornando reais minhas desvairadas alucinações. Logo de manhã eu já temia a proximidade da escuridão da noite, pois carregava o constante temor de ser assombrada por aqueles espíritos trevosos durante o meu sono.

Minha vida sempre foi um enigma. Aos 30 anos de idade, eu, Mishra, morava no Vilarejo Esplendor, situado na Ilha do Júbilo, distante de todas as civilizações e protegida por soldados que vigiavam à margem da praia.

Quando pequena, fui resgatada ao mar por uma mulher muito carinhosa e gentil. Era ela Violeta, esposa de Crisântemo, um mulato robusto, meio calado, sério e rígido. Responsável por Esplendor, este casal era muito respeitado pela comunidade, afinal, ambos sempre estavam dispostos a contribuir para o desenvolvimento da Ilha, além de terem me salvado quando perdi meus pais em uma viagem pelo oceano.

Eles tinham uma filha de nome Dália: uma moça um tanto quanto mimada, de atitudes infantis. Como eu não me dava muito bem com ela, mantia-me sempre distante.

Na verdade, desconheço a história de minha própria vida até os meus 27 anos de idade. Crisântemo e Violeta disseram que me encontraram desacordada após uma tragédia ao mar e que assim permaneci durante algum tempo. Devido ao trauma que sofri com a perda de meus pais, quando fui encontrada à beira da morte, jamais recuperei a memória de meu passado, como se eu permanecesse desacordada para a minha própria história, desde meu nascimento até três anos atrás.

Tudo era muito belo, tranquilo e organizado no vilarejo... mas não para mim. Apesar de tudo estar aparentemente sempre calmo no pequeno povoado e de a vila ser um ótimo lugar para se viver, muitas noites desejei não ter sido salva por meus “pais adotivos”. Por dentro eu carregava uma angústia sem explicação: um vazio profundo por não saber quem realmente eu era, como se estivesse perdida em mim mesma. Sentia-me muito sozinha, como se não tivesse minhas próprias raízes, mesmo com todo o conforto que o povoado de Esplendor me oferecia. Eu costumava dizer a mim mesma que eu não sabia viver. Sabe como é sentir que o fato de ficar sozinha fosse mais seguro e a vida lá fora não te inspirasse interesse algum? Nada tinha graça para mim. Por isso eu não sabia viver. A vida era pesada. Eu não sabia o que fazer com ela e tinha uma sensação quase constante de desamparo. Não era muito comunicativa. Minha melhor e única amiga era a Anciã Bromélia – cozinheira do bondoso casal. Ela sempre me acolhia nas noites de pesares e tristezas. Era para quem eu corria de braços abertos, com o coração de uma criança assustada.

Os primeiros habitantes de Esplendor construíram-na de forma bastante simétrica: as casas e ruas de concreto eram bem “quadradas”, assim como o pensamento tradicional de todo o povoado. Seguíamos a Seita Labirinti, através da qual praticávamos rituais bem complexos. Era tudo muito padronizado, cheio de regras e inflexível. Certa vez participamos da Cerimônia do Fogo. Nela, era necessário estar descalço e atravessar uma ponte em brasa; uma forma simbólica de mostrar coragem diante do medo de cada um. Observei muitos fazerem a travessia com o peito estufado de vaidade, proclamando sua vitória antes de queimarem seus pés e pedirem socorro após a Cerimônia. Outros começavam a chorar antes mesmo de tirarem os sapatos. Em minha vez, fiquei dura como uma árvore fincada na terra, sem me mover.

O Sacerdote Amaranto tentava nos incentivar dizendo que “não atravessar a ponte seria admitirmos nossa covardia e acomodarmo-nos com o medo”. A pressão que ele fazia era tão intensa que acabei atravessando a ponte para evitar que zombassem de mim posteriormente.

Mesmo com os pés machucados, meu verdadeiro medo ainda estava em mim, pois o que eu realmente enfrentei naquela Cerimônia foi outra coisa. Minha travessia foi feita apenas para que eu não fosse vista com inferioridade; Para não ser rejeitada pelos que passaram pela ponte com coragem. Não significava nada para mim.

Também havia rituais com diversos instrumentos e símbolos mágicos para os quais deveríamos decorar vários textos e pronunciá-los de maneira impecável. As roupas que utilizávamos durante as cerimônias espirituais eram de um tecido nobre e bordado a fios de ouro.

Na Seita Labirinti, o Deus Soturno deveria ser louvado durante os três períodos do dia: manhã, tarde e noite. Seu nome nos transmitia o ensinamento de que seus mistérios eram inquestionáveis e, portanto, deveríamos aceita-los calados, sem discuti-los uns com os outros. Eu imaginava que esse deveria ser o motivo pelo qual todo o povo de Esplendor tinha um semblante muito sério. Ninguém nem ousava deixar de praticar tal devoção, pois o Mestre Amaranto, sem se despir de seu jeito rude, sempre ressaltava nossas fraquezas com tom de ironia, o que acabava nos incentivando a competir uns com os outros para termos destaque, ou simplesmente para não sermos zombados.

Dizem que no passado, quando eu estava em coma, um devoto fugiu da Ilha por não aceitar os dogmas da Seita. O Sacerdote comentava sobre isso, dizendo que as outras seitas não fazem sentido por serem tediosas ou superficiais e que sair da Ilha significava não dar conta de encarar e superar nossas próprias fraquezas.

Quando eu buscava ajuda para cessar o terror que me amedrontava durante meu sono, Amaranto explicava que isso acontecia por falta de devoção e fé e me recomendava ser mais rigorosa nas práticas religiosas. Mas uma coisa desconhecida para ele, era o fato de eu não ter fé em Soturno e nos dogmas de Labirinti. Eu não sentia conexão espiritual em nenhum ritual e por isso, seria impossível acabar com meus pesadelos, já que eu não tinha fé e não sabia no que acreditar.

Certa noite, dentro de mais um pesadelo, seres sombrios me perseguiam para me aprisionar naquele tenebroso túmulo novamente. Eu corria para chegar em casa, mas estava perdida. De repente avistei um ser muito luminoso atrás de uma frondosa árvore. Seu rosto era desenhado por uma expressão de muita sabedoria. Era um ser feminino, mas não parecia humano, pois tinha longas orelhas e sua pele era esverdeada. Seria uma Fada? Eu não sabia, apenas especulava.

As sombras aproximavam-se de mim e por ímpeto, segui aquela criatura resplandecente. Entramos ligeiramente em um Portal de Cristal. Ao atravessá-lo, avistei um lugar mágico onde seres humanos e Elementais da natureza viviam juntos numa aldeia protegida pelas profundezas de uma floresta. Assim fui salva pelo ser feérico, o que me fizera despertar do sonho.

A Alvorada nascera nos céus e eu ajudava Bromélia a preparar a mesa para o café. Logo a Anciã percebera que eu estava mais calada que o normal, aérea e pensativa. No fundo, ela já sabia o que me passava pela cabeça:

Diga-me, Mishra: o motivo de seu silêncio é o que imagino?

E então, comecei a relatar sobre a noite passada.

Ontem eu tive mais um daqueles sonhos... Mas desta vez algo diferente aconteceu...

Com um pouco de receio em sentir na pele o senso do ridículo aos olhos de Bromélia, dei uma pequena pausa na fala, pois as vezes eu mesma desacreditava em minhas visões.

Um tipo de “fada” aparecera em minha frente, salvando-me de toda aquela loucura, de todos os seres que me assombravam...

Interessada, para a minha surpresa, a Anciã indagara sem deixar nenhum vestígio que me ridicularizasse perante seu consentimento e perante aquela situação:

Uma Fada? Como ela era?

Era de uma beleza meio estranha. Não parecia ser um humano, mas pouco me recordo de seu rosto. Sei que ela estava me protegendo, extinguindo tudo o que me causava medo.

Coloquei as vasilhas para secar, enquanto minha amiga exclamava:

Isso é uma boa notícia, filha! Quer dizer que agora você poderá dormir com segurança!

A interrompi, com o semblante preocupado:

Mas não sei se isso será o bastante para cessar os pesadelos das próximas noites... Nem sei se ela virá sempre para me salvar...

E antes que Bromélia começasse a falar, continuei a relatar:

Confesso que tive vontade de viajar pelo mar e descobrir se realmente existe o Portal de Cristal para me reencontrar com a Fada. Eu sei, parece absurdo isso, pois aprendi que além dos limites da Ilha só existe um mundo feio e sujo do outro lado do mar. Mas no sonho era tudo tão belo!

Mishra, isso seria muito perigoso e um tanto estranho, afinal, você estaria à procura de um ser que nem sabe se existe no mundo físico. E pior, teria que atravessar o mar! Isso não faz sentido, querida... Você jamais encontrará a boa vida de Esplendor fora da Ilha.

A Anciã olhou para trás e depois virou o rosto novamente para mim, mas desta vez, com a voz bem baixa e um semblante preocupado:

Você sabe que essa viagem pode te colocar em contato com seus traumas do passado, e temo tanto que lhe aconteça algo ruim, minha filha...

Mas eu quero conhecer meu passado, Bromélia! Quero saber quem eu sou!

Enquanto minha face expressava insatisfação, minha amiga me dera um carinhoso abraço e tentava me convencer de que, a partir de então, tudo estaria em paz, que eu não precisava temer mais nada:

Minha menina, se você analisar bem esses sonhos, poderá concluir que essa Fada, tão astuta e protetora, talvez seja a sua voz interna: uma parte sua que deseja lutar com coragem para vencer as outras milhares de vozes que tentam te iludir e te enganar com aquilo que não te faz bem. Aqui em Esplendor você tem tudo o que precisa para ser feliz. Não precisa remoer o passado na tentativa de conhecê-lo. Comece uma nova vida aqui, Mishra! Talvez seja uma bênção o fato de a vida ter retirado suas memórias passadas, evitando assim, dores que poderiam te afundar em algum buraco interior. Sair da Ilha seria o mesmo que tentar ir contra a maré da vitória! Lembre-se do que o Mestre sempre nos diz: “será que você não está dando conta do trabalho espiritual e por isso tenta fugir?" Encare isso como um desafio!

Bromélia poderia estar certa, já que era tão sábia e experiente. Mas por outro lado, talvez minha voz interna estivesse me induzindo a sair de minha terra em busca do novo e de uma vida mais movimentada que preenchesse meu vazio. Eu estava cansada de tudo o que me acontecia. Porém, que escolha eu teria? Que chance eu teria diante do mar que matou meus pais e quase me matou no passado? Sim, eu realmente deveria esquecer toda aquela fantasia e buscar alguma motivação para viver bem.

***

Alguns dias se passaram e em meio à madrugada, acordei repentinamente. Havia uma claridade próxima à cortina do meu quarto. Olhei para o lado e vi uma mulher misteriosa: era a “Fada”! Fiquei tão impressionada que esfreguei meus olhos para ver se estava sonhando e a mulher ainda estava lá. Levantei-me lentamente para vê-la mais de perto, apesar de sentir um pouco de medo do que poderia me fazer.

Aquele ser mágico me mostrava um caminho: olhava em direção ao Jardim de Esplendor e parecia apontar para o mar enquanto sussurrava: “Seu passado está além da Ilha.” Quanto mais eu me aproximava na tentativa de enxergar maiores detalhes, mais forte a luz ficava, porém aos poucos, vi que a iluminação não resplandecia de tal mulher, mas sim de um espelho muito grande que estava atrás dela. Assim, a luz clareou todo o quarto, como se sugasse as imagens e cores para dentro do grandioso objeto, até que a tal mulher adentrou ao espelho, fazendo tudo desaparecer.

Ao retornar para minha cama, vi meu corpo físico deitado, dormindo! Respirei ofegante: eu estava dormindo e sonhando sem saber! Foi uma visão tão real que não tinha como duvidar sobre o fato de que minha alma “viajara fora de meu corpo” durantes as noites, em busca de algo desconhecido para mim.

Para piorar o meu medo, eu simplesmente não conseguia acordar daquele “desdobramento”! Olhei pela janela e vi um tumulto na praça central da Ilha. Parecia que a Fada estava fugindo! Tentei pedir socorro, mas minha voz não saía! Até que Bromélia abriu a porta do meu quarto, dizendo ter escutado meus gemidos de pavor. Depois que meu coração já batia mais calmo, perguntei-lhe sobre o tumulto lá fora. Ela deu uma risada preocupada, certificando-me que tudo fazia parte dos meus sonhos, que nada daquilo era real.

Eu até gostaria de ver aquele ser mais uma vez e desvendar o mistério que o contornava, mas não pude deixar de sentir um pouco de medo. Fiquei pensando naquelas palavras ditas durante minha projeção astral. Seria possível encontrar algum membro de minha família ainda vivo além do mar? Isso seria muito bom! Eu poderia desvendar um pouco mais sobre a minha história e talvez compreender de onde vinha toda aquela morbidez que se arrastava dentro de mim.

Foi então que comecei a planejar como faria para atravessar o mar à procura do Portal. Sim, eu estava decidida a ir atrás de algo que, cada vez mais, fazia sentido para mim! No entanto, eu precisava distrair os soldados que protegiam a Ilha. Lembrei-me do sonífero que Bromélia fez em uma noite na qual meus pesadelos me tiraram o sono. Por várias vezes, ela me deu para beber com o intuito de me acalmar e fazer dormir.

Meu plano era o seguinte: primeiro, eu teria de contar à Bromélia sobre minha decisão, afinal, precisava de sua ajuda com o sonífero. Eu pediria à minha amiga para colocá-lo no chá ou na comida dos soldados. Assim eu pegaria um dos barcos e velejaria de madrugada.

Desde então, não passei um dia sequer sem pensar em uma maneira de viajar. Com muito cuidado, contei à Bromélia sobre os sonhos, pois precisava de amparo, além do apoio para tentar sair do vilarejo.

A Anciã estava muito preocupada; disse que levaria algumas luas para viajar até o outro lado, que todos notariam a minha falta e se decepcionariam se eu rompesse com os laços de confiança entre nós. Mas eu estava determinada! Sabia que não me concederiam tal pedido, caso eu lhes contasse sobre minha busca. Eu precisava pensar mais em mim mesma naquele momento e seguir a minha intuição.

Assim, Bromélia comentou:

Minha menina, como você vai velejar sem nunca ter aprendido sobre essa arte?

Eu muito observei os homens no decorrer desses dias! Eu vou conseguir!

Bromélia suspirou como se notasse a minha infindável insistência e vencida pelo cansaço falou:

Apesar de não considerar uma atitude prudente de sua parte, vou lhe ajudar. Mas com uma condição: Lírio irá com você!

Lírio? Aquele rapaz todo certinho e chato? Por que acha que ele iria me ajudar?

Tenho muita confiança nele e ele em mim. Somente assim, ficarei tranquila.

Mesmo contrariada, aceitei sua condição e, em seguida, sua advertência:

Por favor, tenha cuidado! Eu morreria antes da hora se algo ruim lhe acontecesse. E lhe peço só mais uma coisa: caso você se certifique de que esse Portal não existe, que esses sonhos não têm significado, promete que deixará essa busca de lado e tentará ser feliz aqui?

Abracei-a com ternura e gratidão, enquanto dizia:

Prometo sim! Obrigada pelo apoio, Bromélia! Você não sabe o quanto sou grata pelo carinho que você tem por mim. Não se preocupe, terei bastante cuidado. Você ficará bem?

Minha filha, eu ficarei bem sabendo que você estará bem. Agora coma algo e descanse um pouco para que seu corpo fique mais firme.

Na última refeição, minha amiga colocou o sonífero nos copos de cada soldado e aguardamos o resultado. Peguei algumas coisas sem as quais não teria como fazer uma viagem tranquila, como comida, água e algumas roupas. Coloquei meus utensílios na sacola de linho e peguei um pedaço de lenha que ficava no canto da porta para servir de arma contra algum malfeitor.

Lírio combinou de me encontrar no aglomerado de coqueiros à beira-mar. Aproximei-me da praia e certifiquei-me de que os soldados estavam adormecidos. Pegamos o maior barco e iniciamos a jornada.

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