O grupo mais estranho da festa

 Jenny finalizava seu batom roxo no espelho do carro e a regra é que ninguém podia sair até que ela estivesse pronta e por isso seu namorado batucava freneticamente no volante, ansioso para ver de perto a decoração colorida que já conseguiam notar da rua em que estacionaram. As tendas gigantes cobertas de tecidos variados de cores vibrantes e psicodélicas davam um ar de festival de música, mas eles sabiam que era apenas uma festa de aniversário, no caso o aniversário de João Guilherme, filho de ator famoso e amigo de infância do Jotapê. Dalila era o presente do Kiper e para ela fazia sentido, considerando que o idiota era um rato trapaceiro... Claro que daria um jeito de dar um presente que não pagou para ter.

Finalmente a amiga saiu do carro arrumando sua roupa e o namorado a acompanhou como um pequeno labrador feliz, dando espaço para Dalila segui-los de uma distância segura das demonstrações de afeto. A morena analisou o campo que eles conheciam como Pico Da Forca, dado sua história local com frequentes suicidas que se despediram do mundo nos restos de uma antiga arvore, há pouco tempo derrubada pela prefeitura.  Sabia-se que por 2 mandatos o prefeito quis vender para um fazendeiro de fora e em ambas as vezes, desistiram da compra e diziam as más línguas que tinha algo haver com os fantasmas dos suicidas, que não aceitavam que perturbassem seu lugar de descanso final.

Era um belo lugar, amplo, o inverno fazia a vegetação endurecer e nenhuma arvore tinha folhas ou flores que dessem algum tipo de beleza típica de histórias infantis, não havia nenhum campo de tulipas ou pequenos coelhinhos de conto de fadas, na verdade, se tratava de um campo sinistro de arvores partidas por raios e aquele pequeno monte com uma única e solitária arvore cortada. Para ela sim, era uma beleza poética, mas qualquer outro discordaria e nunca se pisava ali a menos que fosse por uma ocasião especial como uma pequena rave ilegal. Então para afastar o aspecto fantasmagórico eles enchiam de tendas coloridas, drogas e bebida barata e torciam para nenhum fantasma existir de fato.

Ainda não haviam mais de 20 pessoas quando Dalila chegou, ela tinha um ritual de costume antes de tocar e sempre chegava com antecedência, então Kiper já esperava encontra-la e notou sua presença assim que se aproximou o bastante das tendas. Para a ocasião, ela escondia seu cabelo fino e castanho com ondas tímidas debaixo de uma lace roxa com os fios perfeitamente lisos e o corte no meio da sua cintura, era assim a aparência da sua personagem, seu alter ego. A maquiagem pesada e sensual dava sentido a roupa de couro preto ajustada perfeitamente ao seu corpo e o sobretudo de referência ao seu filme favorito, Matrix. A reação do delinquente de olhos azuis foi a mesma de todos que a contratavam.

— Dalila? — Perguntou ele incerto, deslumbrado.

Ela sorriu debochada, desviou o olhar para fazer um breve cálculo de quanto tempo levaria até aquilo virar um inferno e voltou a olhar para ele que encarava os seus seios no decote.

— Ultraviolet, Kiper... Se fosse para usarem meu nome eu não me vestiria assim. Algum problema com meus seios? — O tom sarcástico o fez levantar seu olhar com um sorriso safado que ela dispensou sem pensar duas vezes, focando no ponto aonde trabalharia. — É ali, certo? Quero uma garrafa de vinho, eu compraria, mas sabe como é né? Vim de graça.

Ela sussurra a última parte só para ver sua reação, entretanto ele não faz nada além de balançar a cabeça positivamente e sair desconcertado, talvez não esperava encontrar essa versão Femme Fatale da morena. Jenny sempre disse que aquele personagem era a forma que sua amiga encontrou de colocar para fora a mulher forte, sensual e desafiadora que ela tinha dentro de si mesma e escondia atrás das camadas de trauma e autodepreciação, mas para Dalila era muito mais simples entender a motivação de ter criado esse personagem, ela sabia o que dava engajamento no mundo da musica e uma aparência excêntrica era o caminho para o reconhecimento. Não, ela não almejava fama como DJ mas não se imaginava ganhando dinheiro com outra coisa que não fosse música, e a verdade é que jamais chegaria a algum lugar como pianista e era muito realista sobre isso.

Se lembrava como começou a tocar, das primeiras festas com Lulu, sua amiga que não só lhe apresentou a cena drag da cidade de Jalines, como também ensinou tudo o que sabia como DJ e incentivou os primeiros sons autorais da morena que por pura brincadeira criou a Ultraviolet e depois as coisas apenas fluíram. Bastou um dos seus “concertos” para que gradualmente aparecessem outros, em um primeiro momento não quis competir por trabalho com sua amiga, estava decidido, e algumas semanas mais tarde Lulu foi internada depois de uma overdose. Foi o fim da aventura na música, era a única coisa naquele momento que distraia Dalila de alguma forma, mas não queria fazer isso sozinha até de fato ser obrigada a isso por estar há tempo demais morando de favor e atrapalhando o relacionamento do seu amigo. É justo, tudo bem, era fácil aceitar que está acomodada e precisa assumir suas responsabilidades adultas, e principalmente, seria burrice desperdiçar a chance de dar certo, ainda que fosse no universo do trance e suas festas, aquele mundo bizarro aonde Dalila nunca se encaixava e por isso a personagem era tão importante.

Kiper voltou com uma garrafa de vinho e logo desapareceu de novo, ela não viu mais sua amiga porque estava concentrada no seu ritual de preparação que consistia em deixar tocando Sonata ao Luar do Beethoven como se fosse um mantra enquanto ela bebia seu vinho e aproveitava para equalizar o som e entrar na energia do que ela chamava de “Concerto dos Acorrentados”, aquela setlist prog que ela criou do zero e tinha base nas músicas do Beethoven. Seu primeiro bebê.

A noite foi emergindo e com ela as pessoas começaram a se amontoar. Violet teve seu sinal quando João Guilherme finalmente chegou acompanhando da nova namorada e foi cercado de todos os amigos, ela viu quando ele começou a distribuir saquinhos dourados como se fossem pequenos presentes, a musica subiu dos autofalantes e preencheu o pico junto da fumaça de gelo seco e as luzes, ela via os convidados vibrando com seus presentes, dropando as drogas contidas neles como se não fizessem nada errado e os corpos começaram a obedecer ao chamado do som orquestrado pela figura sensual que ninguém reconhecia.

Fazia parte do seu show, ela interagia com as almas que gritavam para ela, dançava, pulava com eles no ápice de cada som, gesticulava como se rezasse ou agradecesse à Lua qual à uma sacerdotisa pagã e cada movimento seu instigava mais, abraçando o publico e os arrastando para o fundo daquele poço de insanidade.

Sua setlist estava quase no fim quando um homem forte cheio de tatuagens e um sotaque diferente se aproximou por trás e perguntou quantos minutos faltava, ela lhe informou que eram 9, era a ultima track, então prontamente um homem encapuzado se aproximou da mesma direção e ficou abaixo dela no palco esperando que ela terminasse para subir. A mudança foi tão rápida que ela se sentiu um pouco perdida, mal pode juntar suas coisas e o outro já estava tocando sua entrada triunfal com voz de fundo e tudo, ela desceu do palco e ficou olhando ao redor. Esperava encontrar Jenny, mas deviam ter 200 pessoas ou mais ali e dificilmente encontraria qualquer amigo com facilidade. Foram 1 hora e 32 minutos de som, pulando e dançando o bastante para estar morta de sede, então já que não encontraria a amiga, pensou em ir ao bar e procurava a direção dele quando o mesmo homem de antes veio até ela e segurou seu braço para se aproximar do ouvido. Dalila olhou a mão em seu braço ameaçadoramente, se livrou dela e apesar disso deixou que ele lhe falasse perto do ouvido já que estavam muito pertos dos autofalantes e não teria outra escolha.

Mi chiamo Gabrielle, um dos organizadores da festa. Devia te encontrar antes para me apresentar. Tu sei l’Ultra Violet, amamos tuo som. — Diz ele com aquele mesmo sotaque que só então ela percebeu que seria italiano.

— Gostou? Que massa. — Ela respondeu gentilmente, arrependida de ter sido grossa, já que ele bem poderia ser o tal “loirinho” que Jenny mencionara.

— Está sozinha? — Ele pergunta descontraído.

— Estou com minha amiga, mas não vou achar ela tão fácil. — Responde ela olhando a multidão e ele faz o mesmo, voltando a se aproximar depois.

Venga, temos lugar para esperar tuo amico até alguém a encontrar — Recomenda ele e ela assente.

O rapaz devia ter entre 25 e 30 anos, loiro de olhos bem escuros como se usasse lentes pretas, nada incomum para lugares como aquele. Ele vestia apenas uma blusa preta e uma jaqueta, calça e botas pretas, não parecia suficiente para o inverno, mas ele não devia estar sentindo frio porque caminhava pleno na frente dela. Dalila notou que seu colega de presença forte parecia muito conhecido entre os convidados da festa, abriam passagem para ele, mesmo os mais alterados. Se perguntava o porquê, talvez de fato fosse o loirinho dono da festa, e pela primeira vez lamentou por não ouvir cada fofoca que Jenny e suas amigas comentavam, porque podia avistar no pequeno monte, sentados ao redor do tronco cortado, o pequeno grupo que ela rapidamente identificou como italianos igual ao Gabrielle.

“O que essa galera faz?” Pensou, suspeitando que fossem algum tipo de autoridade entre os demais, mas qual o sentido disso em uma festa ilegal? Que tipo de promoter age como se fossem supervilões?

Sempre muito observadora, ela estava atenta aos rostos, ciente de que não esqueceria mais. O estranho subiu o monte na frente e abraçou uma mulher asiática de cabelo colorido aparentando a sua idade, ela olhou profundamente nos olhos dele e em seguida encarou Dalila curiosa antes de ambos descerem de novo com um breve aceno cumprimentando-a. Dois outros, de cabelos pretos e olhos castanhos, um deles bem alto e o outro de estatura média, também desceram pouco depois de cumprimenta-la de longe. Não queria parecer desconfiar do que faziam ali, não era assim tão quadrada e nem iludida suficiente para ficar comparando-os com cada vilão de filme, os cumprimentou naturalmente apesar de não entender porque Gabrielle a levara se não ficaria ali, e só depois percebeu que dos que ficaram, um deles a engolia com os olhos, a menina fumava um baseado pretensiosamente e o outro olhava o horizonte como se mal tivesse notado sua presença.

—Ultraviolet, ahm? — Começou o mais loiro dos dois homens que olhava ela como se quisesse adivinhar seus pensamentos.

Ao ouvi-lo ela percebeu que seu sotaque era mais imperceptível apesar de estar presente, e que talvez esse sim fosse de fato o loirinho que Jenny havia mencionado.

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