Capítulo Dois

Ela devia saber que sair de madrugada para tirar fotos não era uma boa ideia, mas naquele momento era a única coisa que a acalmaria, assim, seguiu na ponta dos pés descalços para o lado de fora do que seria sua nova casa.

Também deveria ter imaginado que era um ato quase suicida sair de casa naquele horário descalça e usando apenas uma fina blusa de frio comprida sobre um shortinho de flanela e a primeira blusa de alcinhas que encontrou.

Ainda assim, saiu numa pressa desesperada que a privou de procurar qualquer outra coisa para vestir, como o juízo, por exemplo, e Laura podia sentir o clima frio a congelando, porém podia respirar, coisa que não conseguia fazer naquele quarto sufocante.

Havia acordado no meio da noite com o coração palpitando forte em seu peito e seu despertar acabou o fazendo parar subitamente e voltar a bater descompassado como se tivesse sido pego em flagrante em meio a uma fuga.

Arfava e seus olhos queimavam em lágrimas, sua cabeça girava e seu estômago se revirava na intenção de colocar tudo o que havia comido para fora de seu corpo.

E nesse ataque de ansiedade, Laura se ergueu, trêmula, e cambaleou a procura de sua máquina antes mesmo de ter qualquer outra percepção acerca de seu corpo. Gastar algum tempo fotografando era, definitivamente, a única coisa que a acalmaria.

Assim, logo que abriu a porta da frente sua pele pálida se arrepiou com o clima gelado, seus olhos encontraram a lua cheia iluminando o quintal com sua luz pálida e suas mãos buscaram automaticamente sua câmera pendurada em seu pescoço.

Ali mesmo da varanda, sentindo a liberdade preencher seus poros, ergueu o objeto e mirou o satélite ao alto, buscando concentração no ambiente quase completamente silencioso.

Ouvia sua respiração que saía em vapor pelos lábios entreabertos, ouvia zumbidos de insetos, talvez leves coaxares, algumas corujas piando e seu próprio coração acelerado, porque fotografar naquele ambiente vazio sob aqueles sons lhe causava alguma adrenalina estranha.

Sentia seus pelos eriçados, seus cabelos sacudindo levemente a cada brisa congelante que a encontrava, seus mamilos rijos e suas mãos geladas apertando a câmera com firmeza enquanto focava a imagem.

Quando conseguiu a foto que queria, baixou a máquina, a deixando suspensa apenas pela corda que fazia pressão em sua nuca devido ao peso do objeto. Seus olhos rodaram pelo quintal, gravando os lugares onde conseguiria uma boa foto a cada vez que piscava. Era como fotografar com a mente e Laura amava aquela sensação.

Se abaixou e aproveitou a luz que batia sobre as pequenas flores silvestres que cresceram encostadas na estrutura que dava acesso a varanda. Aguardou o vento gelado sacudir suas folhas e registrou.

Logo seus olhos focaram nas formigas que trabalhavam ao chão entre a grama, levando sobre as costas pequenos pedaços granulados marrons. Deitou-se sobre o gramado sem se importar com a sujeira, como de fato nunca se importava, se arrastou até que conseguisse o melhor ângulo e luz e clicou.

Virando-se de barriga para cima, viu o efeito de luz e sombra que a lua formava ao tocar o telhado da varanda. Era um ótimo ângulo. O gravou em sua máquina.

E antes mesmo de mudar de posição, uma libélula invadiu seu campo de visão. Estava muito próxima a câmera e contra a lua, o que dava a impressão exatamente contrária, como se estivesse voando na órbita do satélite da Terra. Registrou aquilo e ergueu o tronco, dessa vez, se voltando para a casa.

O clima era de filmes típicos de terror. Se Laura se impressionasse com essas coisas ficaria assustada, mas havia muito encanto na maneira como olhava tudo. A lua banhava com luz parte da varanda e o telhado banhava em sombras outra boa parte, assim como as pilastras e cada elevação forneciam esconderijos para a escuridão.

Parecia uma casa abandonada e a semelhança a cenas assustadoras até que agitou um pouco o coração de Laura, que ali mesmo, sentada sobre as próprias pernas na grama curta e irregular, apontou a câmera e fotografou.

Finalmente se levantou e seguiu pela lateral da casa a procura do ponto exato onde havia visto as pétalas brancas das gardênias brilharem pela luz lunar. Estavam lindas... Não tinha como não registrar aquilo.

Ok, talvez pudesse dar apenas mais um passo mata adentro e registrar a imagem da lua que pairava sobre as folhas das árvores que ladeavam seu quintal.

E talvez não tivesse se dado por satisfeita e dado um passo atrás, seguido de outros enquanto olhava para o alto procurando a melhor abertura entre a copa.

Qualquer um diria que aquilo tudo era uma péssima ideia, mas não havia ninguém ali, e tomada pela curiosidade e necessidade de aliviar o aperto em seu peito, Laura não poderia usar a voz da razão ordenando que voltasse imediatamente.

Sequer notou que o ambiente estava se fechando ao seu redor, o clima menos gelado pela proximidade cada vez maior das plantas, e apesar de detestar as folhas roçando em sua pele e os insetos a cutucando com curiosidade, Laura era fissurada demais em conseguir fotos perfeitas para prestar atenção em algo que não fosse o foco de sua câmera.

Clara costumava a alertar que sua desatenção ainda a causaria problemas enormes, mas por que ela reagiria de outra forma que não fosse revirando os olhos? Eram apenas fotos e fotos perfeitas requeriam tempo, paciência e atenção.

Tinha que ser precisa para o que queria.

Arrastava os pés em lentidão pela terra granulada e úmida e andava cuidadosamente de costas, o rosto erguido e a câmera sobre seus olhos buscando o lugar perfeito entre as folhas, uma mão segurando o objeto enquanto a outra se encontrava estendida, a palma e os dedos roçando nos troncos do caminho.

A intenção inicial era que pudesse contar a quantas árvores de distância se encontrava do quintal de sua casa, mas se realmente estivesse prestando atenção descobriria ter feito curvas a pelo menos sete troncos e a falta de atenção sobre isso não a deixava perceber que já estava perdida.

Estava escuro, sobre a luz sobre a copa das árvores a guiava floresta adentro e apenas quando se calcanhar encontrou o que parecia ser a raiz de uma árvore, a desequilibrando o bastante para que tivesse que usar a mão estendida para se manter em pé, parou.

Ali estava perfeito.

Limpou a mão na blusa que vestia e segurou a câmera com as duas mãos buscando firmeza, mas não se deu por satisfeita com o que conseguiu.

Baixou a máquina e comparou a imagem que gravara com o que seus olhos viam no céu, torcendo o lábio insatisfeita e franzindo o cenho em concentração a pensamentos sobre o que poderia fazer para melhorar aquilo.

Seu olhar alcançou os próprios pés encolhidos de frio e um suspiro a fizera tomar sua decisão. O chão ali era muito mais úmido, mas o importante era a foto, portanto sentou-se e jogou o cabelo sobre o ombro antes de se deitar e buscar a melhor posição para a imagem que queria.

Os braços se flexionavam para sustentar a câmera próxima a seu rosto, seu peito se encontrava imóvel porque prendia a respiração, os lábios se apertavam em linha reta e seu dedo indicador apertou o botão em um clique rápido e preciso.

Quando viu a imagem, pensou que realmente tinha valido a pena se sujar tanto. Aquela deveria ser a foto mais bonita que conseguira registrar. O feixe de poeira bailando no ar que a luz deixava mais visível criava um ar místico e brilhante.

Perfeito.

Tão perfeito que Laura sorriu, radiante e satisfeita.

E então relaxou os braços, deixou a câmera descansar sobre seu peito e arregalou os olhos, finalmente se dando conta do que havia acabado de fazer. Seu coração palpitou na mesma velocidade em que se sentou, olhando ao redor com sua respiração ofegante.

— Como você é burra, Laura Isabelle! — praguejou ao perceber que não conseguia ver nada além de escuridão ao seu redor porque a semi luz da lua não se alongava o suficiente entre as árvores altas para conseguir iluminar seu caminho.

Se ergueu, irritada com sua distração e com alguma pitada de medo.

— Certo, é só seguir as pegadas — tentou se acalmar ao ver o rastro de seus pés a sua frente.

Fechou os olhos ao sentir o vento bater em seu rosto para aproveitar e respirar fundo, se acalmando, mas ao abri-los novamente percebeu que o maldito vento havia espalhado seus rastros na terra granulada.

Arfou novamente em desespero, apoiando as costas na árvore mais próxima enquanto as lágrimas em seus olhos a queimavam.

Que merda faria agora?

Ela tinha que ser sempre distraída demais, claro!

 Ótimo, agora uma das maiores preocupações de Clara, que era justamente a dispersão da filha, estava se tornando um problema novamente.

Se bem que, na percepção de Laura, a culpa era principalmente dos pais que a arrastaram para aquele lugar. Não era a primeira vez que sumia na floresta, mas tinha a impressão de estar sempre em um sonho, então talvez estivesse dormindo e entrando em um desses.

Mas Clara e Gabriel sabiam que era sempre a mesma coisa quando moravam naquele tipo de ambiente. Em algum momento ela se perderia. Em algum segundo, algo a atrairia de tal forma que não conseguiria ver para onde estava indo.

Talvez fosse esse um dos motivos pelos quais odiava tanto cidades cercadas de mata. Algo do inconsciente irritado com uma capacidade, ou falta dela. Jamais conseguiria sobreviver sozinha em um ambiente daqueles. Se não houvesse sempre alguém para vigiar, acabaria morrendo devorada por algum bicho, tendo um ataque cardíaco ou tropeçando em uma raiz e batendo a cara em um tronco espinhoso.

E bem, não estava sendo vigiada naquele momento. Não tinha sido capaz de se lembrar de sua enorme capacidade de se perder.

Saiu de casa para se acalmar do pânico que sentira e acabara por entrar ainda mais nisso, piorando drasticamente quando sentiu o arrastar em sua pele que a fez saltar e se investigar, esfregando toda e qualquer parte que conseguiu alcançar a procura de se livrar de possíveis insetos.

Quando finalmente conseguiu se conter, pressionou uma mão sobre o peito e com a outra afastou os cabelos do rosto. Ainda arfava, mas conseguiu manter seus pensamentos em procurar uma saída daquele lugar, os olhos rodando pelo ambiente escuro como se aguardasse que uma luz mágica surgisse e a orientasse.

Por algum motivo — talvez devido a algo chamado mundo real — isso não aconteceu.

Muito bem, seguiria em frente. Uma hora teria que chegar ao fim daquilo.

Seus pés deram alguns passos e quase que o resto do corpo ficou para trás de tão bambas que estavam suas pernas. De repente, todos os seus sentidos para insetos e possíveis bichos pareciam estar aguçados, a levando a se assustar com o menor farfalhar que lhe chegava aos ouvidos.

Então os zumbidos, coaxares e pios se tornaram algo absurdamente alto e próximo.

Naquele momento até o vento fazendo cócegas em sua pele parecia uma ameaça de insetos, se assemelhando a formigas e aranhas subindo por seu corpo com suas pernas fininhas. Laura se arrepiava e se encolhia somente em imaginar isso acontecendo.

— Nada vai acontecer, não dê a louca, Laura! — ralhou consigo e repetiu a frase em sua mente como se fosse um mantra que a manteria longe de qualquer perigo.

Como odiava aquele lugar!

Parecia que estava andando há horas e não encontrava a porcaria da saída. Pior, parecia que havia entrado no limbo e realmente não havia saída.

Estava escuro, frio e assustador demais, tanto que se controlava para não chorar de medo e de raiva da situação em que havia literalmente se enfiado.

Tinha medo de seguir pelo mesmo caminho e se afundar ainda mais na floresta e tinha medo de parar e ser atacada por algum bicho, que escolha restava a ela?

E então, ouviu um estalar que a fizera paralisar.

— É só um esquilo, Laura — tentou se tranquilizar — talvez seja apenas uma lebre. Coelhinhos fofinhos. Coelhinhos fofinhos. Coelhinhos fofinhos...

Repetiu em murmúrios e mentalmente para tentar apagar o que sua imaginação criava.

Era possível que naquela floresta houvessem leões, tigres ou ursos? Se houvessem, poderia se declarar morta. Se não devorada, no mínimo de susto ao encontrar um desses.

Deveria ter deixado um testamento, mas o que deixaria para seus familiares, uma vez que não possuía nada? Nem teria como deixar nada para amigos, já que ela também não os tinha.

Talvez deixasse seu quarto para Beatrice e seus discos para Edward. Poderia doar todas as porções de comida que lhe serviriam se vivesse no futuro também para o irmão, pois o garoto parecia um poço sem fundo.

O cômico era que Beatrice era a mais gordinha entre os três, puxando a genética corporal do pai, já que era a cara da mãe.

Ah, o pai... Poderia deixar para ele instruções de como mexer em aparelhos eletrônicos e plataformas de streaming.

Para a mãe deixaria seus vestidos de verão favoritos porque sabia que ela os amava.

Será que alguém cuidaria de seus outros bens, ou doariam?

Seria enterrada ou cremada?

Será que doariam seus órgãos que permanecessem intactos? Se bem que, se fosse atacada por algum animal as chances de encontrarem algo além de seu esqueleto ou montes de pele estraçalhada era muito pequena...

Parou novamente para respirar fundo e se acalmar.

Que besteira era aquela que já estava planejando seu funeral, no qual a propósito todo mundo deveria chorar para parecer que ela havia sido alguém muito importante e amada? Se existisse algum meio de assistir aquilo, ficaria realmente satisfeita.

Sacudiu a cabeça negativamente para tentar se livrar dos pensamentos mórbidos e da cena em sua mente onde estava sendo atacada por um urso pardo.

Respirou fundo e então...

Crac! Um galho seco se partiu ao chão e algo se arrastou entre as folhas e terra.

Laura levou a mão a boca para cobrir a própria respiração ofegante enquanto tentava ouvir melhor o som e ao mesmo tempo se encobrir.

Seria alguma espécie de louco da serra elétrica detectando sua presença solitária e a perseguindo para a partir ao meio por pura satisfação em ver um corpo estraçalhado?

Seria algum traficante de órgãos querendo matá-la, abrir seu corpo, retirar seus órgãos para vender no mercado negro e desovar seu corpo vazio em algum lugar aleatório?

Ele pensaria em vender sua pele e esqueleto também ou seria burro demais para aquilo?

Do jeito que estava ansiosa, no mínimo teria uma úlcera de nervosismo e daria algum prejuízo para ele.

Os galhos continuavam se partindo e o arrastar cada vez mais alto.

E se fosse um estuprador?

Cruzes! Preferia que fosse o louco da serra elétrica ou o traficante de órgãos. Até o urso pardo seria mais aceitável.

Talvez fosse uma cobra. Como será a sensação de ser engolida viva?

Bom, ainda era melhor que um estuprador...

Ah, mas poderia ser apenas seus pais a procurando... Não, não era isso. Eles chamariam por seu nome.

Sua pele se arrepiou com o medo do que quer que fosse que se aproximava e Laura estreitou os olhos se forçando ao máximo em tentar ver o que havia na escuridão enquanto praguejava contra seu azar em se perder justamente na primeira noite na nova cidade estúpida.

Girou no lugar enquanto buscava qualquer indício de aproximação e correu com sua câmera balançando e batendo contra seu peito quando viu o que parecia ser um vulto se aproximando.

Em sua mente, praguejava todos os xingamentos que conseguia se lembrar, resmungando contra seu azar e os pensamentos de que ia morrer. Talvez ainda houvesse alguns gritos desesperados ecoando junto a alguns comandos como “Corre! Corre! Corre!”, mais xingamentos e “Não vá tropeçar e bater a cara em alguma árvore, pelo amor de Deus!”

A figura atrás de si também parecia estar correndo e grunhindo, mas podia ser imaginação dela.

Laura se perguntou se já estava se cansando, porque ela estava e se encontrava também desesperada por não estar enxergando nenhuma proximidade com a saída daquele breu.

Ela olhou para trás, mesmo que soubesse que aquele era o típico erro que pessoas em filmes de terror cometiam, mas não podia deixar de fazê-lo.

Será que aquele era o momento ao qual sua curiosidade a mataria?

De qualquer forma, não conseguiu enxergar nada além de um esvoaçar do que parecia ser uma capa, o que a deixou confusa e se perguntando se por um acaso não estava sonhando com algum livro de fantasia que havia lido.

Talvez alguma cena numa floresta com um vilão malvado perseguindo o personagem principal. Era possível saber quando se está sonhando? Estaria em algum mundo paralelo onde ela era a personagem do livro de fantasia?

Suspirou, porque era mesmo um momento maravilhoso para refletir sobre mundos paralelos...

Mas, caramba, tinham que lhe dar um desconto, afinal estava prestes a ser assassinada por, quem sabe, um vilão de livros de fantasia, um estuprador, traficante de órgãos ou louco da serra elétrica.

Ou pior, poderia ser os três!

Talvez uma figura demoníaca criadora do caos que a buscava para sugar toda sua vida, sonhos e esperanças, mas que não teria muito sucesso, já que era um poço de desesperança e infelicidade.

Gritava escandalosamente em sua cabeça, porque estava desesperada demais para emitir qualquer som que não fossem chiados estranhos que representavam seu medo. Não sabia definir se eram realmente chiados ou gemidos, talvez fossem grunhidos, mas o que vale é a intenção de expressar seus sentimentos e emoções em sua estreia como estrela de filme de terror.

E como se já não estivesse ruim e cliché o suficiente, suas pernas perderam força como se seus ossos e músculos tivessem sido substituídos por gelatina e Laura tropeçou e caiu, apoiando-se nas mãos para tentar evitar que enfiasse a cara no chão.

Quase. Arrebentou. A. Porcaria. Da. Câmera.

Se virou, apoiando-se nos cotovelos e se arrastando para trás como se isso fosse ajudar em alguma coisa.

A figura que a perseguia entrou em seu campo de visão e avançou em um ritmo mais lento, a torturando. Era alta o bastante para que a luz da lua que invadia a trilha através da copa das árvores iluminasse o topo do capuz de sua capa, mas não era o suficiente para iluminar a escuridão que o tecido encobria.

Fios castanhos de aparência frágil e quebradiça esvoaçavam para fora do capuz, mas isso era o mínimo. Descendo os olhos por toda a figura magra e coberta com a capa preta sobre um tecido branco que pouco aparecia, era possível perceber que não pisava no chão e apenas as pontas do que poderia ser seus pés abaixo da capa arrastava sobre o solo.

Estava se aproximando de tal maneira que Laura congelou de medo, paralisada e apenas encarando a criatura que se aproximava para matá-la e que parecia ser uma mulher.

Podia ser um homem com cabelos grandes e magros, mas havia certa delicadeza, e o tamanho aproximado ao de Laura. Além disso, parecia usar vestido embaixo da capa. E tinha a intuição de que era uma mulher. Uma mulher que levava a ela sensações horríveis.

Podia sentir seu hálito em seu rosto e isso a fizera escorregar ligeiramente de sua pose apoiada nos cotovelos. Estava prestes a fechar os olhos, já admitindo para si mesma que aquele era o fim, quando algo cortou o ar e arrancou a assassina de sua frente.

“Que?” Laura indagava mentalmente enquanto buscava se recuperar de sua confusão súbita e sacudir a cabeça a procura do que havia acontecido.

“Ah, pronto...” ela resmungou em seus pensamentos ao localizar um lobo acuando a figura contra uma árvore “Agora vamos ter dois assassinatos, o meu e o de minha assassina. Que destino, virar comida de lobo...”

O animal rosnava alto e ameaçadoramente para a criatura na capa e essa grunhia de forma estranha para o bicho, nunca chegando em um acordo naquela discussão bizarra.

Ele não podia poupá-la de qualquer cerimônia e discurso e simplesmente matá-las e servir seu bando?

Lobos se agrupavam em que, afinal? Alcateia? Manada? Colmeia? Assembleia? Molho? Cardume? Rebanho? Penca?

Não teve tempo de pensar ou lamentar sua inteligência mediana. A figura encapuzada avançou contra o lobo e eles rolaram a sua frente de maneira tão abrupta que Laura não conseguiu conter um grito fino e curto de susto.

Que droga de sonho era aquele?

O bicho de pelo misto de cor creme e castanha rolava e tentava abocanhar a assassina, que Laura tinha que admitir ser muito corajosa — ou muito louca — a ponto de enfrentar um animal tão grande e feroz.

Ou nem tão grande, porque tinha o tamanho do que ela imaginava ser um lobo normal, ainda que não os conhecesse pessoalmente.

Talvez a assassina só estivesse muito fora de si, ou sedenta demais por ela.

Quase se sentiu importante por estar sendo tão disputada.

Ela deveria se levantar e ajudar a coisa?

Certo, mas aí ela a mataria assim que conseguisse, seguindo seu plano original. Aquilo não parecia sequer um ser humano, provavelmente não tinha dicionário para saber o que piedade e misericórdia significavam quando Laura implorasse vergonhosamente para que poupasse sua vida.

Deveria, então, ajudar o lobo?

Não mesmo, a besta a engoliria assim que limpasse seus dentes com os ossos da assassina de capa e mesmo que seu apetite estivesse saciado, não deixaria uma presa tão fácil escapar. A mataria e levaria seu corpo para os amiguinhos famintos ou guardaria para a próxima refeição porque aquele frio era o suficiente para se considerar em um freezer.

De qualquer forma, Laura até considerou o óbvio, que seria correr e sair de fininho, mas estava tão perdida que não sabia dizer quais eram as míseras chances de sair da floresta sem que o sobrevivente daquela luta fosse a sua procura depois.

Na pior das hipóteses os dois poderiam até mesmo se unir para caçá-la e dividir o prêmio como bons amigos. Na melhor, poderiam se matar e Laura teria carne de lobo para comer enquanto vivia na floresta e ninguém a encontrava por ser burra demais.

Será que conseguiria fazer uma fogueira com pedras e gravetos?

Provavelmente se o fizesse acabaria por incendiar a mata e a) seria encontrada devido ao foco de incêndio acabar servindo como sinalizador; b) morreria como um churrasquinho que queimou demais.

A segunda opção, é claro, era a mais provável.

E no meio desse “o que eu faço” o qual Laura se encontrava, o lobo rolava e tentava arrancar o pescoço encapuzado da coisa, e o treco puxava o pelo aparentemente macio do animal para tentar se soltar.

Laura chegou ao ponto de guardar um lugar em sua mente entre todo aquele pânico e “Vou morrer!” que ecoava em sua cabeça e nesse lugar depositou suas reflexões sobre como era possível eles ficarem naquele arranca-rabo todo e a porcaria do capuz se manter no lugar, sem nenhuma escorregadinha ou rasgo.

E sua assassina deixou a prova de que realmente não era humana — e com toda certeza Laura estava sonhando — ao chutar o lobo, que gemeu, saltar e se manter no ar.

— Que porra é essa? — Laura sibilou, abismada com a própria loucura e chamando a atenção da coisa encapuzada, que voltou a investir em sua direção enquanto o lobo lutava contra o próprio corpo e o poder da gravidade para se colocar em pé.

Ou em patas...

E novamente quando estava quase fechando os olhos, o lobo saltou sobre a assassina a derrubando no chão a frente de Laura, que soltou outro grito agudo e curto pelo susto e pôde finalmente ver devido à proximidade olhos castanhos opacos humanos demais tentando erguer o rosto do chão.

Não entendia seu rosto, mas os olhos pareciam tão mortos quanto humanos, duas esferas castanhas raivosas, o que fez com que se questionasse mentalmente se estava se tornando algum sonho com zumbis.

O treco não foi rápido o bastante, entretanto, e assim o lobo a arrastou pelo pescoço e em um golpe que parecia ter sido treinado lançou a figura contra uma árvore.

O lobo pareceu verificar se sua refeição, vulgo Laura Ortiz, ainda estava ali e com isso a coisa se recuperou e correu para o meio da floresta.

Ignorando que sua presa número um estava fugindo, o animal se aproximou lentamente de Laura, que se encolheu rezando todas as orações que conhecia enquanto a maior parte de sua mente berrava “Ah, meu Deus, eu vou morrer!”.

Sentiu o bafo de eucalipto bater em seu rosto quando a face do bicho praticamente encostou na dela e ainda assim, cara a cara com a morte, Laura se lembrou de buscar em alguma das suas pastas mentais de informações inúteis que havia lido em algum lugar que haviam bichos que gostavam de mastigar folhas de eucalipto de vez em quando. Chegou a comentar até um “Faz bem cuidar do hálito mesmo, hein...” em seus pensamentos.

Mal percebeu que estava de olhos fechados, a informação desse fato chegando apenas quando sentiu uma coisa úmida e áspera se arrastar pelo lado direito do rosto, deixando um rastro viçoso.

Esse idiota estava provando seu sabor, era isso mesmo?

Revoltada com aquele ato nojento, Laura abriu os olhos e encontrou os do lobo mais distante dos dela, soltando o ar pelo focinho no que parecia — ao menos na mente muito fértil dela — ser um bufar de deboche.

E saiu, correndo atrás de sua primeira presa.

Laura se sentia tonta enquanto o lobo seguia farejando em vão os rastros que estavam sumindo de seu alcance, levados pela brisa fria.

Os braços de Laura tremiam de tal forma que perderam a sustentação, escorregando e a mantendo erguida apenas com a força do antebraço. Tudo girava e ela olhava para cima se dando conta de que começava a clarear, tamanho o tempo que passara naquele inferno.

Podia ouvir o farfalhar das folhas novamente e o arrastar se aproximando, o que a fez suspirar exaustivamente em se dar conta que toda aquela briga havia sido inútil.

O treco, que parecia ser uma mulher de olhos castanho e precisando urgentemente de uma hidratação nos cabelos, havia voltado e a mataria em questão de segundos.

Já podia ouvir seus resmungos e ofegar enquanto se aproximava e gemeu baixo pela dor de cabeça trabalhosa que era morrer. Achou que seria mais rápido e fácil, mas se estava prestes a morrer, aquilo significava que em breve acordaria, portanto, podia aturar aquilo.

Piscou lentamente para acostumar seus olhos com a claridade que estava surgindo e com a vertigem que lhe invadia.

Se preparou para morrer, soltando mais um suspiro quando sentiu que havia algo realmente muito perto, já esperando a sombra do capuz que surgiria.

E, no entanto, tudo o que surgiu acima de seu rosto fora a imagem da cara vermelha e suada de seu pai a olhando com uma expressão preocupada.

Certo, agora estava delirando? Era só o que faltava... Não dava para simplesmente acordar logo?

— Está tudo bem, querida — a voz de seu pai saiu da alucinação acima de seu corpo — vou te levar para casa...

E nisso, Laura sentiu seu corpo finalmente desistir de se sustentar e sua cabeça bater contra a raiz que havia no caminho, a privando de ver tudo e qualquer coisa que lhe aconteceria a partir daquele momento.

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