Era o fim da tarde de uma quinta feira. Olhei para trás e vi o céu tingindo-se de um laranja escuro. Eu adorava essa hora. O sol havia acabado de sumir atrás de nós. O crepúsculo jogando a longa sombra da mansão e das árvores que a circundavam pelo vasto gramado. Fechei os olhos, inspirei e absorvi o cheiro da brisa fria que começava junto com a escuridão, trazendo os aromas da floresta. Nosso ritual precisava da noite. Ainda não sabíamos o porquê. Havia muitas coisas que não sabíamos e minha maior responsabilidade era manter o vale seguro. Mesmo que significasse ficar tateando às cegas a procura de respostas.
Nasci para defender e proteger os humanos de forças que nem eles mesmos conhecem. Levando sua vida na total ignorância, nem imaginam os perigos pelos quais passam e são salvos por mim ou por outros como eu. Não há muitos de nós e vivemos rodando pelo mundo permanecendo por pouquíssimo tempo em cada lugar. Vim para o Vale com um propósito. Uma missão. Mas já se passara cinquenta anos e ainda não tinha descoberto exatamente o que fazer. O que, para minha natureza, era um desperdício. Apesar dos meus cento e cinquenta e três anos de existência eu ainda era um adolescente. Na contagem biológica de um viajante, eu tinha apenas dezessete anos. Porém, o tempo sempre foi precioso. E sentia que ele escorria por minhas mãos.
Eu estava sentado na mureta de pedra que divide os jardins da casa e a estradinha de terra. Iana estava de pé, encostada ao meu lado, os braços cruzados e um dos pés apoiados no muro. Ansur estava deitado de costas na faixa de grama entre a mureta e a estrada. Não olhávamos para nada em particular. Havia uns trinta minutos que estávamos parados ali, sem dizer uma palavra. Uma minúscula coruja passou voando baixo. Iana virou-se jogando seus longos cabelos negros e lisos em meu rosto.
— Ela está um pouco agitada hoje — Iana falou observando a coruja que agora pousava em um dos galhos de uma árvore próxima.
— Ela sempre fica assim quando pressente que mais alguém virá — eu disse sem me mover para olhar a pequena caburé marrom e branca.
— Será que dessa vez é ele? — Ansur perguntou com um toque melancólico na voz. Esperávamos pelo terceiro viajante há muito tempo.
— Não creio. Sinto-me estranho. Não consigo distinguir o que é. Parece uma intuição. Como se algo fosse mudar drasticamente. Mas não sinto o terceiro chegando. Não é isso.
— Você não se sente estranho. Você é estranho, Arion.
Olhei para Iana. Estava cansado de sua implicância comigo. Nos últimos anos era apenas isso que ela fazia; implicar comigo. Quando vim para o vale fiquei encantado com sua beleza. A pele pálida, os lábios cheios, os cabelos negros escorrendo lisos até a cintura e seus olhos grandes e negros chamaram minha atenção assim que entrei na mansão. Apaixonei-me pelo seu jeito gracioso de andar exibindo belas curvas dentro de uma roupa de couro preta justíssima.
O corpo de um viajante não cresce da mesma forma que um corpo humano. Até os quatorze anos ele cresce em um ritmo similar ao do humano. Depois desacelera e passa e se desenvolver muito lentamente. Quando vi Iana pela primeira vez, ela apresentava o corpo de uma adolescente de dezesseis anos e que ainda continua assim. Mas, apesar de linda e de meu coração ter batido forte ao vê-la, não demorou muito para ela destruir minha primeira impressão. Os anos seguintes passaram com Iana tentando me seduzir de alguma forma. Como não conseguiu, ignorou-me completamente. Então desistiu e passou a ser a “irmã” implicante.
— Estamos completamente desamparados. Não sabemos o que fazer, não sabemos quando fazer, nem como fazer. — Ansur arrancava tufos de grama enquanto falava. — Precisamos ter um caminho. Uma direção. Há mais de cinquenta anos fazemos a mesma coisa e até agora nada aconteceu!
Olhei para ele com um leve sorriso tentando anima-lo.
— Eu levei quase cinquenta anos para chegar aqui. Talvez seja um padrão. Quando eu cheguei, vocês faziam a mesma coisa todos os dias.
— Então você chegou para fazer a mesma coisa todos os dias conosco. E o terceiro chegará agora para fazer a mesma coisa por mais cinquenta anos?
— Sabe que não é assim. Algo vai acontecer. Precisamos ter um pouco de paciência. Precisamos prestar atenção aos sinais.
— Que sinais, Arion! Tudo está do mesmo jeito!
— Você pensa assim porque ainda não teve o mesmo pressentimento que eu. Algo me diz que o fato do Vale estar crescendo, com mais habitantes e as sumaúmas também crescerem tanto, significa que alguma coisa vai acontecer. Logo.
— Que coisa? Você me deixa tonto falando desse jeito. Pra mim isso é só o progresso. É inevitável o fato do Vale crescer, ter mais habitantes... As árvores crescem, não é mesmo? O que tem isso a ver conosco? Porque tenho que carregar o fardo dessa rotina ridícula? Sou um viajante. Deveria estar vagando pelo mundo a procura de alguém ou algum povo que realmente precise de mim!
Suspirei fundo. Não era a primeira vez que Ansur se descontrolava dessa forma. E não precisava de explicações. Ele sabia o que estava acontecendo. Mas, por outro lado, eu tinha que dar razão a ele. Ansur estava no Vale há mais tempo do que eu. Ele nascera no Vale. E eu mesmo já estava ficando agradecido por ter entendido o chamado somente cinquenta anos depois de Faon tê-lo lançado.
— Você não parece um viajante agora, Ansur. Paciência e bom senso são características que não podemos perder. Tenha calma. Seu pai não lançou um chamado poucos minutos antes de perder a vida para ficarmos presos a um ritual sem propósito. Por favor, paciência.
Ficamos novamente em silêncio. O céu passando para um azul profundo começou a revelar as primeiras estrelas.
— Vamos. — Saltei do muro andando em direção à floresta. — Está na hora.
Os dois me seguiram em silêncio.