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Bom... sentei-me à luz da lamparina e contemplei o moribundo. Fiz o mesmo com as próprias mãos, já livres, criando sombras na parede com os braços depois – os insetos adoraram. A cicatriz do polegar ainda não tinha desaparecido e meu corpo exibia sinais claros de inanição oriundos da comida precária. Dali a um tempo eu mal conseguiria caminhar.

Estava fraco. O feitiço que rompeu minhas amarras foi momentâneo, por isso regressei àquele estado de debilidade aguda anterior. Fiquei me tocando e comecei a fazer o mesmo com o corpo pintado, sentindo cada parte de sua nudez, experimentando diferenças de textura em relação a minha pele. A dele nem pelos tinha, exceto pelas fracas sobrancelhas e pela fina cabeleira branca. Seu rosto embaixo da tinta era suave como o de um bebê. Difícil imaginar algo assim vindo de tais criaturas rústicas que deviam ser bem mais calejadas do que nós; apenas seus pés e as palmas das mãos exibiam sinais de vida selvagem. Lembrei-me então das mãos femininas que me seguraram quando os murgons arrebentaram as cordas na floresta. As do jovem eram iguais. Mesma pequenez, mesmos calos.

A gritaria lá de fora estava diminuindo e quando agucei os ouvidos, deparei-me com um som familiar. Era o besouro de novo.

Pozinho interessante, acabei de engolir um grão! Talvez eu me torne um besouro mágico!

O que foi agora? Veio atrás da luz também?

Errado, colega! Quero apenas participar do banquete!

Do que fala afinal, criatura?

Não se faça de idiota! Pensa que não sei o que há nessa cabeça quase oca? Está louco para devorá-lo!

– E você, não? – espetei-lhe o alfinete.

– Mas como é estúpido! Não acabei de pedir participação no banquete? Essa cabecinha é quase oca mesmo!

– Se sabe tanto assim do que acontece nela, por que não conta logo a eles?

– Por que razão eu faria isto? Presenciar esse seu sofrimento tem sido a maior dádiva que já recebi. Ver a morte saindo desses olhos tolos, esperando a oportunidade de tomar-lhe o corpo de vez, e com minha humilde ajuda, claro. Nada se compara a isto. Que eles morram tentando saber o que já conheço!

– Então me diga o que é para que eu possa sabê-lo também!

– Vai me deixar participar do banquete ou não?

– Fique à vontade!

Siga-me então, homem, e eu lhe mostrarei. Vamos! 

O besouro disparou em direção à porta da cela e pude perceber que não estava trancada, mas só encostada. Fiz força e consegui abri-la. Um ponto de luz ao fundo me capacitava enxergar o corredor. O animal voou bem próximo à parede, deslocando-se para o lado esquerdo de onde apareci dias atrás.

Nenhum murgon vigiava os corredores naquele momento, o que me passou certa tranquilidade. Sussurros e lamentações típicos também haviam cessado.

Perguntei sobre nosso destino e o besouro nada disse, persistindo em seu voo pelo túnel, obrigando-me a segui-lo. Seu corpo adquiriu uma luminosidade repentina e pude entender a beleza daquele minúsculo ser. A luz que emitia facilitava minha caminhada pela estreita passagem. Mais tarde o corredor assumiria aspectos de um labirinto.

Passado um tempo de andança e perguntas ignoradas, adentramos uma galeria mais ampla, com portas enormes dos dois lados, todas numeradas. Lá também não havia guarnição, o que me deixou um pouco aturdido.

Ouvi sons provenientes de algumas dessas portas: choros e cantos. Reconheci a lamúria que escutei no sonho do córrego. Seria ele? O homem que desapareceu sem me enunciar uma palavra? Tão próximo? Seria possível que estivesse preso àquela caverna como eu?

Tentei prestar mais atenção naquela voz melodiosa em meio a outros lamentos. Vinha de uma porta. Cinco, dois, oito. Segui até lá, mas o besouro chamou minha atenção novamente.

Não deve ir nessa direção – ele disse.

Mas reconheço aquela voz! É o homem do córrego!

Não importa! O caminho é esse! Vá até aquela porta! – indicou-me outra.

Diga-me, por que razão? Preciso falar com o homem. É importante! – insisti.

Não deve ir a ele! Esqueça-o e venha aqui! Vamos, não seja teimoso! A guarda deve aparecer logo!

Dei uma última olhada e memorizei os números da cela que abandonaria. Virei-me então na direção oposta, seguindo para onde o inseto estava, encontrando a porta indicada por ele. Havia uma pequena fresta na altura do olho humano que nos possibilitava vigiar o cárcere. Pus meu rosto diante do buraco.

Dentro, uma mulher com longas madeixas negras e um enorme manto branco que se esparramava pelo chão. Limpíssimo, assim como seus cabelos. Nem parecia pertencer àquele pardieiro. Certamente tinha acabado de chegar.

Tapou o próprio rosto quando notou minha presença, permanecendo desse jeito por um tempo até criar coragem e me encarar de novo. Pude ver então sua face. E era... a mulher do retrato!

Quase caí para trás.

Voltei meus olhos para aquela beldade. Estava linda como no momento em que a pintaram, se é que realmente o fizeram, visto que se tratava de um sonho. Mas agora era real, estava ali, bem na minha frente; iluminada pela vela que segurava em uma das mãos. Mas ainda havia uma porta.

Engraçado. Apesar de jurar conhecê-la, eu mal podia dizer seu nome ou lembrar qualquer ocasião em que tenhamos conversado. Perguntei ao besouro sobre o motivo de tal fenômeno e este permaneceu mudo naquele estranho brilho mágico. A mulher sorriu para mim. Certamente saberia soletrar meu nome. Quem iniciaria o diálogo? Prontifiquei-me a realizar a tarefa.

Olá! Quanto tempo não nos vemos? Está mais bela do que nunca!

Minha beleza não pode me livrar desse sofrimento. Você pode? – ela falou finalmente.

Si... sim, posso! Acho que posso! Trouxe um besouro mágico comigo! – eu estava um pouco nervoso.

Ouvi bem ou disse que tinha um besouro mágico? É um feiticeiro?

Não sei! Acho que sim! Talvez ele conheça alguma forma de abrir essa porta, perguntarei... unngh!

Mais um tapa no rosto. A mão do velho voltou a me atingir no momento em que percebi que jamais havia fugido daquela cela podre. O cadáver pintado ainda estava lá, assim como a lamparina no chão. Havia quatro murgons acompanhando o “líder” dessa vez enquanto meus braços e pernas se reabituavam ao tempo das cordas. Eu estava no chão novamente, bem onde queriam, sem poder tomar qualquer atitude, indefeso. Novos tapas se seguiram. Em breve eu me acostumaria.

O velho voltou a falar com seu hálito podre. Será que com tanto tempo de vida não aprendera o velho idioma da planície, tão comum entre nós humanos? Isolara-se tanto?

Revirou a bolsa que levava e achou uma garrafa de vidro contendo o líquido amarelo que já me mostrara. Desembainhou um punhal e repetiu o procedimento do corte em meu polegar. Outro murgon ofereceu uma garrafa vazia a fim de derramar o líquido misturado. Logo eu conheceria mais um fantasma ou algo do gênero.

Uma terceira criatura colocou a mão sobre meu rosto de forma suave.

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