Capítulo 1

"Liberdade”, pensou Henry deitado com as mãos na nuca em uma cama de pedra acoplada à parede, olhando para o teto da cela com estalactites pontiagudas apontadas perigosamente para ele.

— Liberdade é uma utopia. — disse para si mesmo.

Henry brincava com os seus poderes fazendo pequenos raios passarem pelos seus dedos e cabelos, que logo após o primeiro teste ter sido feito ficaram arrepiados em quase todo momento.

A Forja do Dragão era uma prisão diferente de qualquer outra já vista. Não era uma prisão onde havia criminosos como prisioneiros, mas jovens de várias partes de Yedraan com o objetivo de serem cobaias para testar uma espécie de radiação chamada Psi.

Henry ainda se lembrava do dia em que chegara à prisão... Se lembraria daquele dia para sempre. Estava sendo mantido algemado desde o momento em que fora pego pelos soldados do Dragão Branco (organização que até o momento nem sabia que existia), então levado a um caminhão, sacolejado por horas até que o jogaram para fora e se deparou com o maior avião que já viu na vida. A aeronave tinha uma fuselagem metálica gigantesca, pregos maiores que sua cabeça e hélices. Aparentemente servia para transporte de cargas – e ele seria uma.

Até então, nunca havia pensado que, aos catorze anos, voaria. Ainda mais algemado para uma prisão na fronteira do Acre.

— Ei! Acorde! — chamou um dos jovens prisioneiros, enquanto Henry dormia. Era alto e robusto, com os cabelos castanho-escuros, postura reta e pele negra. Vestia uma jaqueta jeans rasgada em algumas partes.

Henry levantou seu pescoço dolorido por dormir de mau jeito. Olhou em volta, embora não houvesse nada ali que pudesse ajudá-lo a escapar do destino final que o avião prosseguia. Decidiu contar quantos soldados havia — eram quatro igualmente uniformizados e com uma figura parecida com Tiamat, uma espécie de hidra, preta estampada no peito do colete: O símbolo daquela milícia? Estavam todos sentados junto aos prisioneiros, um em cada canto do avião, segurando fuzis prontos para atirar ao menor movimento de qualquer um deles.

Além de Henry, outros três jovens também estavam ali sentados algemados. Os assentos não eram dispostos como em um avião comum, ficavam nas laterais do interior metálico, o que os obrigavam a viajar encarando uns aos outros. O piloto seguia viagem calmamente enquanto os quatro homens armados permaneciam como estátuas vivas, porém atentas. Diferente de Henry, aqueles jovens tinham a aparência mais velha, mas em todos os rostos era clara a tensão pelo mesmo motivo.

— Que má sorte teve hein, garoto? — comentou a garota que estava a dois assentos de distância de Henry, com voz de quem estava achando aquilo tudo interessante. Henry olhou para ela para ver se a conhecia. Era bonita, com os cabelos castanho-claros e assim como o menino que falou com ele antes, era negra. Continuou a encará-la, mesmo depois de ela ter abaixado sua cabeça, assistindo-a corrigir seu comentário: — Na verdade, ninguém aqui tem sorte.

— Pode apostar. — respondeu outro garoto, magro e loiro, que olhava para os lados, nervoso, muito mais que o próprio Henry.

“Ele tem razão para estar nervoso”, pensou Henry, que só sabia ficar em silêncio em situações como essa, engolindo seco.

— Ei, de onde você é? — perguntou o primeiro garoto, robusto, para o magro ao seu lado.

— E isso importa? — resmungou ele, cada segundo mais nervoso. Suas mãos algemadas tremiam e as pernas não paravam sobre o assento.

— Não, apenas quero ter uma última curiosidade satisfeita.

— Vrad, nós não vamos morrer. Eu acho... — falou a garota, insegura pela primeira vez e o “eu acho” atemorizou ainda mais o jovem nervoso.

— São Paulo... — ele soltou, finalmente. — Eu sou de São Paulo, sabe? Pelo menos esse era o nome antes disso tudo acontecer. Ficava aqui mesmo, no Brasil. Ok, acho que você deve conhecer. — as palavras do garoto pareciam acalmar minimamente, assim como seus olhos se mexiam menos.

Todos sabiam o motivo, todos ali haviam experimentado do mesmo veneno, que era ser tirado à força do lugar onde moravam. O garoto alto, parecia ter realizado seu último desejo, mesmo que aquele não fosse realmente, mas se sentia como se não fosse mais poder realizar qualquer outro. Ele não era o único a pensar assim.

— Espere, estamos descendo! — anunciou o magro desesperadamente, fazendo todas as outras cabeças se levantarem e também olharem pela janela. A aproximação do solo era tanta, que as folhas e galhos de árvores pareciam bater no avião. — Por quê?

— O que você esperava? — perguntou a garota, sarcástica. — Este é o fim da linha.

O corpo de Henry gelou quando ela disse isso, e era provável que tivesse feito alguma expressão assustadora, pois a garota o olhou e seu ar irônico se foi.

Henry definitivamente queria que aquela aeronave não pousasse, mas ela já diminuía sua velocidade. Tentava imaginar inúmeras maneiras de se manter vivo depois, mas só o que conseguiu finalmente dizer foi:

— Acredito que seja melhor sabermos o nome uns dos outros, antes de entrarmos naquele lugar. — ele se referia ao grupo de rochas que crescia do lado de fora da janela, e que formavam torres e a entrada de uma caverna com portões metálicos possuidor de um ar tenebroso. Espreitando seus olhos, pôde ver no alto das torres os rifles de precisão que os esperavam no desembarque. Por mais que mentisse para si mesmo, ele estava tremendo por dentro.

— Eu sou Henry D. Gransys. E vocês?

— Gransys? Você?! Só pode ser brincadeira... — exclamou o loiro. E então sorriu com malícia e nervosismo. 

— Está bem. Você tem sorte, Gransys, por estarmos todos no mesmo barco agora, e por essa não ser mais a melhor hora pra ter algo contra outras famílias.

Henry não entendeu o que aquele garoto quis dizer com isso, muito menos o que ele poderia ter contra sua família.

— Eu sou Flen Vales. — ele completou, com uma determinação que, na verdade, queria esconder o fato de estar trêmulo e profundamente assustado.

— Não vejo como saber nomes valha para alguma coisa.

— Aren Skelhen. — disse a garota.

— Vrad Skelhen. — disse o garoto forte, que Henry logo deduziu ser irmão dela. Pareciam gêmeos.

— Tomara que o nome dos Gransys nos traga sorte! — ela disse. — E não diga seu nome completo lá dentro! Tem muita gente que mataria só pra tirar um pedaço seu.

Henry gelou por completo.

— Minha família parece ter muitos inimigos — disse tentando tirar a tensão.

— Pode crer — falou Vrad. — Por sorte, nós não somos seus inimigos. Apesar daquele ali... — ele apontou para Flen, também com as mãos algemadas — ser alguém que poderia te matar se agora fosse o momento certo pra isso.

Flen o fuzilou com os olhos por dizer isso. “Está bem, obrigado pela dica”, pensou Henry.

O avião finalmente pousou na pista. Quando olharam novamente pelas janelas, viram ao longe todos fora da prisão aguardando os novos colegas chegarem. Henry não soube dizer o porquê — talvez fosse o temor que sentia pelo que lhe esperava do lado de fora daquela couraça metálica colossal —, mas sentiu o coração chegar à garganta quando o trem de pouso bateu contra o chão. O que na verdade foram apenas alguns instantes, para ele se passaram como horas, até que a rampa do avião fosse baixada e a claridade do sol ardesse em seus olhos, lembrando-o que o mundo exterior realmente existia.

Os soldados, enfim, se levantaram como estátuas que ganharam vida novamente, e ordenaram para que os prisioneiros fizessem o mesmo. Enfileiraram-nos e os encaminharam para fora.

Assim que todo aquele calor atingiu a pele dos quatro jovens, a consciência do que estava acontecendo também chegou. Atrás de si, Henry sentiu que Flen tremia.

Alinhados dos dois lados da área externa da grande montanha — formando o que lembrava o corredor de um desfile, tantos pares de olhos que era difícil contar —, os prisioneiros assistiam quem seriam os novatos, e isso não era algo comum. Os únicos momentos em que podiam ver o lado de fora era quando iam treinar, soltos quando iriam comer, lutar, serem executados na presença de todos os outros ou, sentirem um ar puro e receberem novos prisioneiros, o que não acontecia há algum tempo. E, mesmo que a floresta ao redor da prisão favorecesse quaisquer tentativas de fuga, nenhum dos presos arriscava se mover... Pelo menos, não com tantos soldados por perto.

Ninguém podia ver os rostos dos homens por baixo daquelas máscaras brancas - que combinavam de modo sombrio e perfeito com a cor das roupas militares que usavam, exceto pelo símbolo preto no peito e os fuzis que carregavam em suas mãos.

Henry pôde desfrutar de um pouco de ar puro vindo da floresta de pinheiros. Tão densa que, por um instante, quase o fez acreditar que morreria ali por, aparentemente, não haver mundo além do que conseguia enxergar; mas se sentiu livre por um segundo. Ventos fortes bateram em seu rosto. Ventos criados pelos outros aviões que chegavam.

A linha reta que fora obrigado a fazer deu de encontro com alguém que esperava por eles na saída do avião — assim como outros também observavam a escolta de mais jovens trazidos por soldados igualmente armados —, um homem que segurava uma prancheta, o único ali vestindo uniforme preto com uma Tiamat branca, além de uma mulher posicionada ao seu lado, porém, sem o capacete. O dragão no peitoral do colete apontava suas cinco cabeças para os lados, para cima e inclinados entre as outras cabeças e asas abertas com a cauda de ponta similar à de uma lança, descendo e interrompendo o movimento retilíneo com uma curva formando uma espiral. O desenho preenchia toda a roupa negra e o azar de Flen era que ele fora o primeiro a falar com o homem.

A voz escondida sob o capacete mal teve tempo de terminar sua frase.

— Qual o seu no...?

— Não! Eu sou inocente! Não podem fazer isso! — gritou o garoto aterrorizado, interrompendo a fala do soldado.

— Vocês não podem me prender aqui!

Flen não pensava direito, apenas saiu correndo na esperança de sumir por entre os pinheiros sem jamais ter que descobrir o que faziam no interior daquela montanha.

Infelizmente, ele estava certo: Flen jamais descobriria o que havia lá.

— Guardas! — gritou a mulher ao lado do soldado preto, levantando a mão direita em direção à torre mais próxima, onde ficavam os homens com rifles de precisão. A única coisa que todos ouviram foi um estrondo alto, ecoado e forte, seguido do baque do corpo de Flen caindo no chão, próximo ao primeiro pinheiro que conseguira alcançar, com a parte superior de sua cabeça estourada, tornando a grama escarlate. Então, novamente o silêncio.

— Mais alguém?! Antes que digam, ser inocente não vai ajudar. Todos os nomes estão na lista.

Henry tentou não olhar para o corpo quando passou pela pista. Os nomes de todos foram anotados e ele só deu o seu primeiro nome, tentando não encarar a mulher que estava ali. Na verdade, conseguiu alguém para ter medo.

— Nome completo, Henry? — pediu gentilmente a guarda, tocando em suas mãos algemadas. Seu olhar fixo ao dele.

— G-Gransys... Henry D. Gransys. — Ficou espantado por ver que o disse sem ser sua vontade. Se envergonhava por ter se revelado tão facilmente a ela.

— Está bem, pode continuar. — Falou duro e forte.

Os soldados seguiam seus caminhos e os prisioneiros continuavam a se separar em dois também dentro da prisão, fazendo os novatos terem de passar entre eles para prosseguir. Sorte de Henry que ninguém havia escutado quando dissera seu nome. Em pouco tempo, Henry conseguiu ver as paredes rochosas da caverna e os muitos tipos de minérios que haviam nelas.

— E aí, Henry? Tá tudo bem? — Aren tentou acalmá-lo.

— Ele deve estar do mesmo jeito que nós — resmungou Vrad.

Aren fulminou o irmão nos olhos, antes que a amargura a abatesse na forma de um suspiro e a fila os obrigassem a seguir em frente.

— Limite atingido? Mas quem anda pegando jovens demais? — Ouviram os gritos da mulher do lado de fora da caverna. — Vão, façam o que devem fazer.

Aquilo só podia significar uma coisa. E, sim, era o que os estavam pensando.

— Vocês ouviram a capitã, vamos! — ordenou um soldado aos demais, todos apontando seus rifles.

A seguir, apenas tiros e gritos eram ouvidos. Henry arregalou os olhos e se esforçou para continuar e não chorar de pânico. As várias vozes às suas costas imploravam que não, enquanto só o que o restante sabia fazer era correr.

A onda de jovens desesperados virava várias vezes os corredores que quase conseguiram fazer os novatos se perderem, com exceção de Henry, que se perdia facilmente de qualquer jeito. Mesmo que fosse para seguir reto em um labirinto com um único caminho que levasse ao lugar certo, mesmo que fugir do som absurdamente cruel dos tiros fosse assim tão fácil, ele se perderia. Começava a hesitar, procurando por Aren e Vrad, duvidando que ainda estivessem vivos, mas aquelas mãos continuavam a empurrar suas costas para mais longe por corredores que não conhecia.

Depois de um tempo, o garoto moreno não conseguia sentir mais nada, além de seus pés pisando no chão de pedra e acertando alguns pedregulhos que entravam em suas solas e seu coração, que parecia bater tão alto que explodia em seus tímpanos, até que finalmente se ouviu o barulho do enorme portão de ferro da prisão abaixar, e os prisioneiros sobreviventes entraram em suas celas.

Naquela noite, Henry chorou. Tentava pensar em algo para ocupar sua mente, mas a dor que começava nos seus pulmões e ia ao peito se misturava a dor de cabeça que tinha por causa da rajada de tiros. Se continuasse a tentar, os únicos pensamentos fáceis que conseguiria fazer entrar seriam as lembranças das quais gostaria de manter longe desde dois dias atrás.

Exceto, talvez, por um sorriso.

...

A cada passo a caverna escurecia mais e mais até que, finalmente, a manada de adolescentes entrasse no refeitório — somente o tempo de pegarem um pão e um copo d’água — e, mais à frente, chegassem a um hall onde havia inúmeras portas e alguns homens de jaleco aguardando em frente a essas saletas.

— Estas são as novas cobaias — falou um dos soldados que os acompanhava. — Podem brincar como quiserem com eles.

E essa frase os assustou? É claro que sim. O que mais iriam ter que passar ali, além de entrarem em uma sala aterrorizante, onde tinha uma maca para cada um deles e, ao lado dela, um cilindro transparente com um líquido verde escuro? Aquela frase desencadeou a resposta de cada uma das possíveis perguntas.

Tentaram lutar para saírem dali, mas estavam acorrentados, cercados por guardas com armas de choque. Qualquer coisa que fizessem não ajudaria em nada. As agulhas entrando em seus corpos davam-lhes sensações de dor acima de dor, que logo fizeram com que cores lindas tomassem conta de suas visões; e a queimação do líquido entrando em seus corpos era horrível.

Qualquer outra coisa, a partir dali, era dor e Henry não conseguia se lembrar.

...

De volta à sua cela, enfim, Henry acordou novamente para a realidade saindo de sua cama de pedra. Suas costas doíam, mas o pouco tempo que permanecera naquela prisão já fora o suficiente para que ele se acostumasse com isso. Sentou-se na beira, não sabendo o que mais fazer naquele dia. Dia após dia, preso naquele cubículo, suas ideias para passar o tempo iam se esgotando. Fazia tempo que já não sabia mais contá-las e, simplesmente, deixou que elas passassem. Tinha certeza que estava com dezoito anos, mas nem ligava mais quanto tempo havia se passado, desde então, ou em que ano estava realmente. Afinal, era difícil contar quanto mais se convencia de que ficaria ali por toda a eternidade.

O almoço havia sido há algumas horas, talvez muitas. Lembrou-se de ter arrumado uma briga com alguém para se distrair um pouco — isso vinha acontecendo com cada vez mais frequência, não só consigo —, mas de qualquer jeito os guardas sempre o paravam, o espancavam e depois o dia seria igual aos outros. Nunca mudava.

Na cela onde Henry ficava tinha um buraco na parede e uma lareira, além da porta de ferro com vários buracos como se fossem enfeites nela. A lareira, mesmo precária, era ótima para sentar-se à frente durante os dias frios, a única coisa ali que mantinha vários vivos.

Sempre igual... Sempre igual...

Nunca mudava.

Antes que Henry pudesse pensar em fazer qualquer coisa, um dos carcereiros abriu a porta da cela que fez um rangido para alertá-lo. Como de costume, Henry tentou se afastar, pois sabia que nunca vinha nada bom quando aquilo se abria. Ele era o rato de laboratório daqueles malditos soldados todos os dias. Ninguém mais recebia um tratamento melhor que esse.

Um dia, os cientistas o abriram sem anestésicos para testar as suas habilidades curativas; no outro, faziam com que ele lutasse até a exaustão, mesmo que isso significasse ser mutilado ou mutilar quem não gostaria de realmente estar machucando. No fim das contas, todos eram mandados de qualquer jeito para que treinassem o dia inteiro. Já era impossível contar quantas vezes haviam quebrado algum osso do corpo só durante o treino, desmaiado de dor ou sido submetido a ter seus órgãos cortados para que se regenerassem e recomeçassem. A última opção era imposta a quem desistisse antes do tempo.

A pior lembrança de Henry fora a do rapaz que tivera seu corpo partido ao meio, então carregado por outros prisioneiros, pois os próprios guardas pouco se importavam.

Um soldado de uniforme branco entrou em seu quarto pela porta aberta.

— Venha, Gransys! — Os guardas eram os únicos a saberem o nome completo de Henry e, mesmo assim, nunca falavam “Gransys” perto de outros detentos. “Talvez alguém do alto escalão me queira vivo”, ele deduziu. Assim como ele, Henry se perguntava se mais alguém era protegido.

— Você tem uma luta!

— E o que vai acontecer? Quanto tempo isso vai durar?

— O tempo que quisermos — respondeu o guarda. — O Dragão Branco não escolhe os piores e quem não for bom o suficiente, vai para a...

— Sala de execução. Tô sabendo disso.

Henry tremia de raiva e de medo. Mais medo, pois sabia que sua rápida perda de peso significava um risco. Um medo que o impedia de conseguir se mover, encolhido em seu canto favorito.

— Vocês têm até o final do ano para serem bons o suficiente — o guarda completou, sem piedade, estalando a tira de couro que usava para espancar os desobedientes. — Ainda bem que você é bom.

— Não consigo sair desta cela. É o único lugar que faz eu me sentir seguro. — Henry falava a verdade, mesmo sabendo que ninguém ali se importaria.

— Então está bem — respondeu o soldado, com seu ódio e desprezo fervendo em sua voz, enquanto tirava Henry da cela à força. Aquele punho cerrado em volta do seu pescoço parecia bem mais forte que o normal. — Eu ajudei você a sair, agora vá!

Esse era o dia a dia de Henry. Horrível. Sempre igual. Sempre igual. Nunca mudava. Quem um dia ele foi e tudo o que aprendeu fora dali ficou para trás, e agora apenas o pequeno mundo totalmente encolhido restava, tornando a prisão a única realidade que Henry conhecia.

A velocidade violenta com que isso acontecia era tanta, que, ao invés do que ele imaginava, a imagem daquele sorriso se tornava cada vez mais nítido em sua mente.

Chegou ao coliseu quando já estava acontecendo uma luta. Nenhuma torcida, apenas, silêncio e cochichos preocupados. Dustin Firebird e um garoto que teve azar de ir contra ele. Henry conhecia os boatos em relação a ele. Diziam que Dustin já conseguira escapar uma vez, mas o pegaram foi sorte dele voltar vivo. O que, tecnicamente, tornava o seu nome o mais importante de toda a Forja do Dragão entre os prisioneiros — exceto pelo nome de Henry, ainda um segredo —, pois ele conhecia as lacunas na segurança e as possíveis saídas. Seu sorriso diante do medo à sua frente carregava maldade... Ou talvez inocência?

O oponente de Dustin tinha o poder de madeira, e ele, o poder de ferro. Esse poder o tornava mais forte e com um soco conseguiu quebrar uma barreira de madeira que surgira em seu caminho, e mais um para acertar o oponente e vencê-lo. Nunca o fazia forte demais para matar alguém ou fazê-lo sangrar, mas sempre ficavam roxos. Fazia isso não para alimentar seu ego, mas o combate, a adrenalina, sentir seu sangue correr e seu corpo se aquecer era o melhor passatempo.

Henry nunca venceu, pois, sabia que se vencesse iriam ver o seu nome completo no ranking, mas, aparentemente, os guardas da prisão o viam como alguém forte. Nunca ganhou, mas, tinha certeza que eles sabiam que era porque Henry deixava que o vencessem e, por isso, ainda não havia morrido ou sido morto. Enquanto, às vezes, a morte acontecia no ringue ou fora dele, quando os soldados dragões brancos viam que era alguém fraco demais e o executavam diante dos presos, entre o horário de treino e o descanso — até mesmo durante o almoço.

Talvez pensassem que a decapitação, fuzilamento, envenenamento ou qualquer outra morte fosse algo divertido para se assistir, não importando a hora.

O coliseu era a céu aberto, de modo que todos conseguiam ver, pelo menos uma vez por semana, as nuvens negras carregadas e sentir a chuva em seus corpos, lavando tudo de si. Mas, por todas as coisas que passavam pela semana, aquele lugar era o que menos queriam ver. Ninguém queria enfrentar o outro, muito menos matar alguém — apenas não queriam ser mortos.

Henry entrou no coliseu ao mesmo tempo em que Dustin saía, passando bem ao seu lado. Dava para sentir o cheiro de suor no ar. Perdeu mais uma luta, deixando levar um ataque que poderia ser letal, principalmente por ter sido uma lança transpassando pelo seu corpo, mas graças a sua regeneração não morreria tão cedo. O oponente foi um garoto com o poder de força, apenas. Ouvia dizerem que aqueles que a radiação não interage muito bem, conseguiam, pelo menos, alguma força ou velocidade maior.

— Desculpe! Droga! Você sai dessa, né? — A preocupação de seu oponente era clara. Tentou se aproximar e tirar a lança de Henry, mas viu que ele já fazia isso.

— Tenho que sair daqui — sussurrou. — Não sei se há alguma saída, mas tenho que tirar todos daqui.

Seu oponente poderia até ter ficado com um pouco de inveja ou orgulho por enfrentar alguém com um poder de verdade, mas sabia que Henry nunca lutou para valer. Era essa a grande dúvida que todos que venceram Henry tinham na cabeça: o porquê dele fazer isso.

A regeneração completou mais rápido que o esperado. Todos, inclusive os guardas, viram que ele fizera o mesmo outra vez.

— Ei, você! — chamou-lhe um dos guardas. Henry se levantou do chão, limpando o sangue de sua boca e esperando que o guarda o punisse.

— Vá para a biblioteca, é sua vez de trabalhar lá! Vá ajudar o velho. — Aparentemente haviam desistido dele, por enquanto.

Finalmente. O único lugar, além de sua cela, que o ajudava a relaxar. O velho bibliotecário quase sempre o chamava, pois sabia que o jovem gostava de leitura e isso poderia ajudá-lo a organizar melhor as coisas. E a Henry, sua mente traumatizada. Era uma ajuda mútua.

Henry não esperava que lhe dessem algum trabalho desses logo após uma luta. Esperava que fossem levá-lo ao laboratório para participar de mais alguns testes e ver como estava indo seu “super soldado”, ou então que fosse trabalhar em algum outro lugar, como na limpeza do depósito de armas, que era difícil em toda a parte, pois havia aquele cheiro terrível de qualquer coisa que não fosse humana, morta, misturada ao cheiro de pólvora e poeira demais. Sem falar nas aranhas – morria de medo delas. Mas mandá-lo trabalhar na biblioteca era quase como se tivesse chegado ao céu e ainda recebido uma bela de uma recompensa.

Também não soube dizer porque o guarda não falara seu nome completo no meio de todos os outros prisioneiros, já que aquele seria o momento perfeito para que se divertissem — como sempre gostavam de fazer —, vendo o ódio no olhar de muita gente e esses mesmos loucos o estripando por querer vingança ou nem tanto — mais por querer —. Mas, se Henry fosse mesmo uma ameaça a todos e alguém o quisesse morto apenas pelo seu nome, não seria má ideia aos “caras maus”. Somente nessa hora que Henry lamentou por nunca ter falado muito na prisão e não ter conseguido muitos amigos, além de pessoas que não iriam protegê-lo caso o restante decidisse que chegara a sua hora. Lamentou por isso, mesmo que não fosse sua culpa nunca ter sido seu forte ser alguém eloquente, e... não. Não era hora para isso, ele tinha um trabalho a cumprir.

O jovem se apressou em chegar o mais rápido possível à biblioteca, passando entre algumas fileiras de presos sendo acorrentados com seus rostos tristes e os guardas os lançando olhares de aviso e perigo, inclusive para o garoto.

Henry não tinha tempo para ligar para isso, pois corria como se fosse seu último dia...

“Se ao menos isso fosse verdade... seria a única coisa que poderia me salvar da rotina psicopata desse lugar”.

Entrou na biblioteca esmurrando a porta contra a parede, vendo que desta vez teria um companheiro para ajudá-lo nas tarefas.

Henry não acreditou quando o viu ali.

— Olá, meu jovem. Parece que o escolheram novamente, não? — disse o velho Gaemon, mostrando seu sorriso de dentadura amarela.

— Me escolheram? Foi você quem pediu, não?

— Pedi? Ah, sim...

Gaemon era um velho bom para todos. Ele não parecia lembrar-se de nada, além da prisão, e nunca demonstrara o menor interesse pelo exterior. Mesmo dizendo que nunca vira o lado de fora, Henry não conseguia acreditar, pois parecia ter conhecimento demais sobre o Universo, o Tempo e o Espaço, Física, Astrofísica, enfim. Sua pele enrugada e quase nenhum cabelo no topo da cabeça, além dos tufos brancos, era uma marca em sua imagem, o que o garoto mais conseguia se lembrar de quando pensava nele. Seu manto marrom cobria o corpo por completo, deixando apenas a cabeça à mostra por cima da gola. O único velho que Henry se lembrava de ter conhecido ali era ele. Também o único, em toda a prisão, que lhe prestava refúgio — não só do mundo, mas de sua mente —, alguém em que Henry podia confiar.

— Então, o que vai ser hoje, hein? Shakespeare? George Martin? Tolkien? Carl Sagan? — Perguntou o velho, voltando a se sentar em sua cadeira, atrás de uma mesa com um computador igualmente antigo para a época, onde estavam todos os títulos da enorme biblioteca.

Em um mundo onde tudo estava morto, inclusive a literatura e seus respectivos autores, era surpreendente a coleção que o velho guardava ali.

O outro ajudante, que Henry engoliu seco quando o viu, logo apareceu de onde estava escondido, atrás de uma estante, carregando uma pilha de livros e colocando-os na mesa de Gaemon.

— Ei! Espere... — O familiar sorriso pungente de Dustin também foi algo que surgiu rápido assim que viu Henry. Ele parecia só alguns centímetros mais alto pessoalmente, e era quase impossível acreditar que fosse um dos mais fortes da prisão. — Foi você o cara que perdeu todas aquelas lutas, não foi?

— Henry.

Dustin riu, uma gargalhada longa e de olhos fechados que quase fez o garoto à sua frente socá-lo. Mas toda aquela raiva foi embora, quando o velho falou...

— Ah, sim, ele é um bom menino. Gransys, este é o seu novo ajudante na biblioteca e... — Henry sufocou e pensou que não fosse mais conseguir respirar, ficando de boca aberta e encarando o velho mortalmente por ter deixado escapar o seu sobrenome para a pessoa cujo nome representava o segundo maior risco de toda a prisão.

— Eu consegui fazer com que só vocês dois trabalhassem aqui.

Henry olhou para Dustin, temendo, mas, para sua surpresa, em seus olhos negros que o encaravam só o que se podia ver era a tentativa de uma possível amizade. “Ótimo”, os pulmões gelados do garoto puderam voltar a trabalhar novamente.

— E então, carinha, vamos guardar esses livros? — perguntou Dustin.

— Gaemon, aonde estes vão?

— Ali. — Apontou o velho, assistindo com tranquilidade o novato virar suas costas e ir na direção contrária. — Ele acerta o caminho.

— Por que falou meu nome? — Henry sussurrou, com raiva. Raiva de toda aquela tranquilidade que, na verdade, ele gostava tanto. Mas, principalmente, raiva por Dustin estar ali em um lugar que antes era seu. — E se ele fosse um dos psicopatas?

— Iria ter que limpar tudo — brincou. Coisa que fez Henry quase morrer. — Ele não é. Eu vi o que vocês dois vão se tornar.

— Viu o futuro? Se você vê, sabe que não jogo nesse time.

— É mais complicado de explicar que apenas vê o futuro, mas podemos chamar assim já que sei o que vai acontecer.

Ficaram em silêncio por uns longos segundos.

— Eu sonhei com lá fora de novo — Henry quebrou o gelo.

— Sonhou é? E como foi? Como é “lá fora”?

— Acho que você sabe, não sabe?

— Que bobagem, Henry... Você sabe que não me lembro de nada. — Ele riu, recolocando seus óculos de leitura achados pelos guardas entre os ratos, voltando à leitura de um livro qualquer. Parecia ser natural para ele não ter memórias que o ajudassem nem sequer a descobrir como fora parar ali.

— Acho que você não tem tantos inimigos aqui assim, Henry.

— Deveria confiar em algum deles?

O velho riu novamente e se ajeitou em sua cadeira, virando-a para que pudesse estar de frente para o jovem.

— Não é sobre confiar, mas sobre temer. Você teme o que eles possam fazer com você, não é? Esse rapaz, por exemplo... — falou, apontando para Dustin, ainda organizando livros no alto da estante, sobre uma escada. — Ele será um bom amigo para você. Teve um passado tão traumatizante ou até mais, coisas que você só passou a conhecer agora. Todos aqui têm um passado triste, com suas próprias perdas.

— Então a lavagem cerebral não é tão ruim assim, é?

— Não diga besteira, garoto. Seu passado, por mais triste que seja, não deve ser ignorado. Por causa dele você é quem você é hoje, independentemente se ele foi bom ou ruim pra você.

— Mas que droga! E quanto a Dustin? Quer que ele seja meu amigo? — Henry falou vendo o sorriso serpentino no rosto do outro jovem. Isso sim era o que mais punha medo nele. Entre vários com olhares abatidos, Dustin era aquele que mantinha um sorriso alegre. — Não preciso de amigos. Só quero morrer e sozinho. Talvez ninguém ligue.

— Ninguém vem ao mundo para viver ou morrer sozinho.

— Tá, mas eu estou falando de alguém sem esperança alguma! Estou falando de mim! — disse Henry. — Eu não tenho mais nada! Nem tenho mais uma família!

— Que tal formar a sua própria família? Hum? — O velho o encarou com seus olhos cheios de cataratas que ele não podia tratar ali dentro. Logo, seria como se aquele mundo externo fosse vazio, somente suas visões permaneceriam, mas Henry não tinha como saber disso.

— Não é tão fácil assim.

— Você ainda sonha, não sonha?

— Sonho com a guerra. Essa guerra, que está destruindo tudo... — Olhou pela janela vendo os pinheiros longe dali, imaginando o que podia haver depois daquelas nuvens. Que lugares ainda existiam... se sua casa ainda... Henry suspirou. “Não”. — Nada de equipamentos nucleares, mas... por que você tá me perguntando isso? Eu achava que você...

— Acabou — o velho o interrompeu.

— O quê? — perguntou Henry, incrédulo.

— A guerra, ela acabou. No começo deste ano. Estamos em 2046, no mês de janeiro, e ela acabou antes do primeiro dia de fato nascer.

— Uau! — Henry sorriu pela primeira vez, desde muito ou pouco tempo atrás.

Dustin deixou cair uma pilha de livros no chão, puxando Henry de volta à realidade. Seus olhos rapidamente se abateram.

— Isso que eu vi foi um sorriso de esperança? Por que agora sabe que pode sair? — perguntou Gaemon, sorrindo também.

O garoto abaixou sua cabeça e suspirou, antes de dizer:

— Sim. Foi.

— Mas, então por que não está sorrindo mais?

— Você.

O velho entendeu. Não havia ninguém esperando por ele.

— Eu não sou mais capaz de sonhar com um mundo lá fora há anos, meu jovem — ele disse, enfim. — Você ainda sonha. Ainda há esperança em você. Além disso, você pode se tornar muito mais sábio do que eu e ter muito mais para ensinar aos jovens do seu futuro. Eu não sei quando o meu tempo vai chegar, mas acredito que, depois que meus sonhos sobre o mundo exterior se foram, a minha sabedoria não passou de ilusão. Só espero este corpo ir embora. É você quem deve sair, e não eu.

Do lado de fora da biblioteca, berros de agonia vindo dos presos podiam ser ouvidos.

— É impossível! Não dá para escapar daqui... E eu... Eu sou fraco demais.

— Mas ele não é. E você também não. Há força em você e se tornará como seu pai.

Agora fora a vez de Henry entender a situação em que estava. Então, boquiaberto diante do sorriso largo do velho, soube o que ele planejava.

— Então é por isso que você...?!

— Dustin — ele interrompeu, ainda olhando para Henry. — Como vai o trabalho, aí atrás?

— Bem! Eu acho.

— Já é alguma coisa. — Seu sorriso mal cabia no rosto, diante da incredulidade de Henry.

Enquanto isso, o jovem ainda não entendia como não percebera isso antes. Olhou para o livro nas mãos do velho, parando seus olhos na gravura de uma Tiamat negra na capa, alarmando-se.

— O que está lendo?

— Uma história feita antes de eu nascer, acredito. Não sei se pertence ao lugar de onde vim, mas é uma grande obra. O Dragão Negro, se chama.

— Uma história sobre a facção que comanda esse lugar?

— Não, garoto. É justamente o contrário. É sobre um grupo que jurou acabar com os dragões brancos, obviamente a cor negra foi escolhida para ser oposta a deles. Cor que a luz não atinge e não é capaz de revelar. Eles seriam os rebeldes. Que pena! Era para eles terem sido a nossa esperança.

Henry olhou para Gaemon, examinando-o. Por um momento pensou ter visto tristeza em seus olhos, mas lembrou-se de algo importante que precisava contar para ele.

— Eu preciso falar com você — Henry disse, olhando sério para Dustin. — Mas tem que ser a sós. Eu acho que tem alguém me mantendo vivo aqui dentro, e...

Mais uma vez ouviram um estrondo junto de uma chuva de outros barulhos. Sim, mais uma vez Dustin deixara cair pilhas de livros da estante. Isso foi o suficiente para acabar com a paciência do velho.

— Pelo amor de qualquer deus que ainda estiver vivo por aí, ajude esse menino antes que destrua meus livros! — gritou o velho, angustiado. Realmente, os livros eram para ele os únicos amigos que tinha. As únicas coisas boas dentro de todo aquele inferno. — Ainda não está tão forte — resmungou para si mesmo, mas não estava falando de Dustin... — Ao menos, eu pude ensinar algo a vocês.

Então dormiu. Somente acordou quando um guarda entrou, após ter esmurrado a porta.

— Entre! — disse Gaemon, com a voz rouca por ter acabado de acordar, quando o dragão branco já estava no meio da sala.

— Você! — A voz do soldado era mais poderosa e maior que todos ali. Seu dedo apontava diretamente para o rosto pálido de Henry. — Amanhã é o seu dia! Você vai enfrentar Jay!

Henry sufocou o ar. Jay era um dos líderes da prisão, o que ocupava uma das três primeiras colocações no ranking.

Pelo visto, as mesmas pessoas que o queriam vivo, agora já não queriam mais.

— Se você perder, você morre! É sua única chance de mostrar que é útil ao Dragão Branco, Gransys! — Falou o guarda, batendo a porta ao sair. Seu sorriso perverso era tão grande quando achara que havia revelado seu sobrenome que, realmente, não restavam mais dúvidas do quanto o queriam morto a partir de agora.

— Gransys? — perguntou Dustin, franzindo as sobrancelhas com dúvida. — Esse nome era para ser assustador, ou alguma coisa assim?

— Como puderam permitir isso? — perguntou o velho, para si mesmo, assombrado.

— Acho que, se falarem meu nome na frente de todos, eu posso mesmo morrer. Tem muita gente que parece odiar esse nome. — Henry olhou pela janela, para além do horizonte quadrado e com grades que ele podia ver; imaginando que, se quisesse mesmo sair, teria que parar de fingir lutar. — Eu não tenho outra escolha.

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