Capítulo 1

Capítulo 1

Há esse lugar encantado no centro de Trempton City. Uma livraria empoeirada e vazia, com uma cafeteria nada movimentada e um sino enferrujado na porta. Assim como as paredes descascadas, os móveis são velhos e o cheiro de couro se mistura ao aroma do café e ao papel dos livros. Nos seus melhores dias, você verá um grupo apaixonado de leitores ávidos em busca de algum entretenimento. Nos piores, as gotas da chuva de verão pingarão em suas cabeças através das inúmeras rachaduras no teto, enquanto você tenta se acomodar numa poltrona, servido de um bom café.

Seu nome é Coelho Branco, como em Alice no País das Maravilhas, e ao contrário do que a maioria das pessoas nessa cidade costuma pensar, este é um dos melhores lugares do mundo.

Foi aqui onde me refugiei nos meus piores momentos. Foi em meio aos livros e edições de mangás variados que eu encontrei conforto quando meu pai me disse que moraria fora do país, quando sofri minha primeira decepção amorosa e quando descobri que toda a minha vida já estava traçada antes mesmo de eu ter a chance de descobrir o que gostaria de fazer com ela.

Estico as pernas sobre o carpete velho, minhas costas apoiadas contra uma estante de história em quadrinhos já caindo aos pedaços. Aumento o volume do meu fone de ouvido quando Bitter Sweet Symphony começa a tocar. É o tema de um dos meus maiores prazeres culpados, Segundas Intenções — virei fã de Sarah Michelle Gellar depois deste filme.

Antes que chegue o refrão, eu fecho os olhos, tentando limpar minha mente da agonia e angústia que consomem meu peito agora, mas, mesmo assim, as lágrimas vêm com força.

Era para ser um dia animado hoje. Um dia de comemoração. Bem, pelo menos foi assim que eu imaginei que seria. No entanto, não há muito o que se esperar dos domingos na casa da minha família. Não quando há almoços importantes dos quais eu não faço questão de estar. Não quando eu me lembro que na segunda-feira estarei ingressando numa universidade como Joe Bixby, e que minha mãe, provavelmente, espera que eu tenha o sucesso que ela teve naquele lugar. Que eu me sinta digna e honrada de estar lá, assim como ela se sentiu um dia.

É engraçada a maneira como a vida brinca com a gente. Quer dizer, eu não sou exatamente uma hater do Joe Bixby. Quem não quer ser selecionado para estudar em uma das maiores universidades de música do país? Eu tive muita sorte em ser considerada boa o bastante no que faço para, finalmente, conseguir uma vaga naquele lugar, mas por que uma parte de mim ainda se sente vazia? Por que eu não estou feliz com isso, embora ansiosa para o que está por vir?

A única coisa que me deixa animada é saber que na segunda-feira eu já terei saído de casa. Não me entenda mal, eu gosto da minha mãe e do meu padrasto, mas também gosto de ter paz, e não era isso o que eu tinha em casa. Nada de jantares, bolsas de grife ou ouvir como não pareço ser filha de Dionne, apenas porque sou exatamente o oposto dela. Apenas eu, minhas responsabilidades como universitária e minhas esquisitices.

Passo para a próxima música no celular e deslizo o dedo por mais uma página da HQ do Capitão Flecha, meu super-herói favorito. Embora já tenha lido todas as edições publicadas até agora, eu folheio as páginas como se fosse a minha primeira vez, já tendo o bônus de saber onde estão as minhas partes favoritas, mas não deixando de me emocionar com cada cena empolgante.

Estou em uma parte interessante — quando o Capitão Flecha encontra sua amada Thabita desmaiada nos escombros de uma igreja e acredita que ela está morta. Tudo isso, depois de vencer uma das batalhas mais épicas de toda a franquia.

— Debaixo deste céu tempestuoso e diante da dor que me dilacera o peito... — reproduzo a fala que já decorei de cor. — Eu derramo, aqui e agora, minha querida Thabita, o sangue real que carrego... porque, sem você, de nada isto importa.

 Solto um suspiro ao perceber que ainda estou chorando quando uma lágrima pinga sobre a página velha. É uma cena muito bonita para não chorar, reconheço, mas eu preciso me controlar. Jesus Cristo, estou na TPM? Tudo bem que hoje foi um dia realmente difícil, mas não é possível que esteja tão emotiva assim.

Preciso lavar meu rosto.

Fecho a HQ e procuro me levantar, apoiando-me na estante molenga atrás de mim, mas antes que eu tenha a chance de me equilibrar, uma sombra gigante e escura se inclina em minha direção.

— Merda! — Eu me encolho ao esperar pela queda iminente da estante, sentindo minha morte prestes a vir. Até prendo a respiração, numa cena bem teatral para quem está preocupada em morrer, mas então uma voz grossa me assusta, fazendo com que eu salte para o lado.

— Mas que diabos...!?

Eu tiro os fones de ouvido e olho para cima, meus óculos embaçados devido ao choro me impedindo de ver muito além de uma silhueta vestida de preto, mas o suficiente para saber que não foi a estante que quase caiu em cima de mim, mas um cara.

— Minha nossa... — Levo a mão ao peito. — Você me assustou.

Eu quem deveria estar dizendo isso — ele rebate, pouco paciente. — Tem problemas com poltronas ou algo assim? — E dando tapinhas em uma das poltronas, ele resmunga: — Embora eu não te julgue. Não é de se admirar se essas coisas estiverem cheias de pulga.

Tiro meus óculos para limpá-los, então os ponho de novo. Ele está me encarando, o que me perturba além do normal. Se existe algo mais constrangedor do que chorar em público, é chorar diante de um cara gostoso. Meu orgulho está sendo moído como os grãos de café na cafeteria não muito longe dali.

— Sinto muito — eu digo. — Não sabia que teria outra pessoa por aqui.

— Até onde sei, esse é um lugar público, amor. — Sua cabeça se inclina, como se ele só houvesse percebido meu estado agora. Tenho certeza de que um rosto inchado por conta de um choro incessante e olhos avermelhados não é a primeira coisa que uma garota gostaria de exibir a um rapaz bonito, mas ele está bem empenhado em me analisar, por isso eu fico quieta. — Você está bem? — Sua voz não demonstra muita emoção. Não sei se está preocupado ou apenas curioso.

Já estou tão acostumada a mentir sobre isso, que a resposta sai automaticamente:

— Estou bem.

Ajeito meus óculos com a ponta do dedo e faço uma varredura nele. Seus cabelos são escuros, como as penas de um corvo. Liso e grosso, com algumas ondulações nas pontas, caindo por sua testa e orelhas. Os olhos são quase pretos e encapuzados. Uma pinta discreta no queixo que só adiciona algo ao seu charme. O que mais me chamou a atenção é a maneira como ele observa o lugar, como uma raposa astuta sempre atenta ao seu redor, ou apenas uma criança curiosa buscando significado a tudo o que vê. As maçãs do rosto são levemente proeminentes, o que me faz imaginar como ele ficaria sorrindo, e isso me leva a analisar os seus lábios... e isso me leva a nada além do erro. Eu não deveria estar encarando os lábios carnudos dele. Muito menos o imaginar sorrindo. E, definitivamente, não deveria estar pensando em como esse suéter preto de gola alta fica bem em seu corpo musculoso. Ele parece ser mais o tipo de jaquetas de couro, se eu for levar em consideração as inúmeras pequenas argolas na orelha direita ou o piercing que atravessa a sobrancelha esquerda. Há algo selvagem por trás de sua elegância. Algo que o faz fugir deste estereótipo e o deixa ainda mais intrigante.

Estou prestes a considerar o quanto esse cara seria bom como o futuro pai dos meus filhos, quando ele infelizmente abre a boca outra vez:

— Então você estava apenas chorando nesse chão poeirento porque não tinha nada de mais interessante pra fazer?

Confesso que sou uma garota que não viveu muito. Alguém que não teve tanto contato com rapazes, mas nunca vi alguém tão enervante quanto esse cara. Ele é sincero, o que lhe atribui alguns pontos; no entanto, também é desagradável.

Sem querer me abalar com sua sugestão rude, eu mantenho a postura neutra.

— Eu achei que isso tivesse sido óbvio pra você desde o começo.

Uma sobrancelha escura se arqueia.

— Não sou tão bom com palpites.

Ele se senta em uma das poltronas, pernas cruzadas e braços sobre o encosto, como um deus em seu trono. O olhar de raposa ainda está lá, observando ao redor. Seus lábios se inclinam em desagrado quando ele nota a estante velha na qual eu estou inclinada. E é quando eu percebo que ainda estou sentada no carpete sem uma razão aparente, meu rosto todo vermelho e inchado. Uma tremenda bagunça. Sentindo vergonha do meu estado lamentável, eu recolho meu celular e a HQ e me levanto. Tiro a poeira da minha bunda antes de me sentar na poltrona diante dele.

— Se você está procurando por livros novos, veio no lugar errado — eu me adianto em dizer. Sei que esse lugar já viu dias melhores, mas é meu favorito no mundo inteiro. Não vou observar quieta enquanto esse cara o julga. — Este é um lugar de clássicos. Só há edições velhas.

— Não me diga. — Ele solta algo semelhante a um bufo de escárnio, que eu não sei se poderia considerar como um riso. — Você vem sempre aqui?

Isso não pareceu uma cantada, então não me preocupo em responder com sinceridade.

— Desde os meus dez anos de idade. Por quê?

Ele balança a cabeça, intrigado.

— Porque você pode me ajudar.

Ele está de brincadeira? Cruzo os braços, desconfiada.

— Não acho que esteja disponível.

— Eu te pago um café.

Uma risada borbulha da minha garganta.

— Isso costuma funcionar? — pergunto, embora já saiba a resposta.

Ele abre um sorriso brilhante, o que me desnorteia por um momento. Sim, ele é muito bonito quando sorri também.

— Quase sempre. — E antes que eu possa replicar, emenda: — Mas não precisa se preocupar, amor. Não estou dando em cima de você. — Se levanta. — Vai me ajudar ou não?

Tenho vontade de dizer para ele não me chamar de amor, mas decido não crescer mais esta conversa. O quanto antes eu ajudá-lo, antes poderei sair daqui e choramingar sozinha pelo meu vexame de ter sido pega chorando nos fundos de uma livraria velha enquanto lia uma história de super-heróis.

Sem esperar por uma resposta minha, ele segue para as prateleiras, os olhos atentos nos títulos velhos.

— O que você está procurando, exatamente? — eu pergunto.

— Edições especiais das HQs do Capitão Flecha.

Eu assobio baixinho.

Uou. Isso vai dar um dinheirão. Você sabe, né?

Ele ri.

— Estou ciente.

Sentindo-me um pouquinho mais animada ao reconhecer seu interesse pelo meu super-herói favorito, me empenho em procurar com mais afinco.

— Eu estava lendo uma HQ do Capitão Flecha quando você chegou — informo animadamente. — A cena dos escombros... Você sabe do que estou falando, já que também é um fã, certo?

Ele franze a testa, claramente confuso.

— Eu nem conheço esse cara. — Imediatamente, sinto como se um balde de água fria houvesse sido jogado na minha cabeça. Claro que ele não conhece. Ele tem defeitos. Quando não digo nada, ele continua: — Mas uma amiga minha é fã, então estou disposto a dar estes de presente a ela, e não achei essas coisas na internet, o que é bizarro. Ao que tudo indica, este seria o único lugar onde eu iria encontrar em Trempton City.

Eu abro um sorriso, apesar da decepção.

— Você não vai encontrar na internet porque essas HQs não foram comercializadas fora de Trempton City, por incrível que pareça. A criadora dos quadrinhos se chama Erica Hunnam, e ela é uma das mais famosas de Trempton City. Suas obras são tão procuradas que você não encontra mais dessas coisas em formato físico em lugar nenhum. Essa livraria é o único lugar em que ainda se comercializam estes quadrinhos. E sobraram poucos, se você quer saber.

Ele franze a testa.

— Isso é sério? Estou impressionado.

Eu dou risada.

— Eu sei, todos ficam. Capitão Flecha é uma relíquia de Trempton City. Ou, ao menos, para os nerds deste lugar. Muito me admira você não saber disso.

— Digamos que eu não me encaixe nos padrões dos Nerds de Trempton.

— Bem, hoje é seu dia de sorte, porque eu sou uma grande nerd, e sei absolutamente tudo a respeito dos quadrinhos do Capitão Flecha.

— Uau... — ele diz. — Acho que descobri algo que te deixa facilmente empolgada.

— Como não ficar? — eu me animo. — Ele é meu super-herói favorito! No episódio em que ele invade os portões do inferno para salvar sua amada Thabita... foi tão romântico e heroico! Veja, eu me arrepio apenas em lembrar.

Seus lábios estão formando uma linha tensa enquanto ele prende um sorriso. Ele está debochando de mim? É meio difícil decifrar sua expressão quando ele está me dando tão pouco com o que trabalhar.

— Desculpe — digo, tentando me recompor. — Eu... eu acho que exagerei um pouco.

— Eu adorei. — Ele balança uma mão, como se pedindo para que eu continuasse. — Vá em frente.

— Eu não posso te contar toda a história do Capitão Flecha. Eu estaria te dando spoilers, e essa série de quadrinhos é boa demais para não ser lida.

Ele sorri.

— Eu vou me lembrar disso. — E soltando um suspiro, volta para o nosso dilema. — Mas então... o que podemos fazer agora? Já vasculhamos uma estante inteira e ainda não encontramos nada.

— Deve estar aqui em algum lugar. Apenas não desanime, ok?

— Certo. — Ele caminha comigo em direção a outra estante, e então voltamos a fazer o que estávamos fazendo antes: conversar e vasculhar.

— Para quem você pretende comprar? — pesco enquanto tento me livrar de uma pilha de livros empoeirados.

— Uma amiga.

Amiga. Bem, ele já disse isso, o que significa que talvez não queira dar muita informação? Será que essa é sua maneira de dizer que ela é sua namorada? Ele não estaria disposto a pagar em torno de quatrocentos dólares em quadrinhos raros se não fosse alguém especial. E por que diabos estou preocupada com isso? Não é da minha conta. E mesmo se fosse, esse cara nunca me daria bola.

Volto a retirar mais uma pilha de quadrinhos da prateleira. Fico triste ao observar o quanto esse lugar é mal administrado.

— Estão todos tão desorganizados. A gente não vai encontrar todas as edições tão cedo.

— Podemos ao menos tentar encontrar algumas? Seria de bom tamanho, eu acho.

Eu aceno com a cabeça e volto minha atenção para a atividade. Percebo que ele está me encarando, então encaro de volta, arqueando uma sobrancelha.

— O que foi?

— Você parece estar tendo um dia difícil.

Procuro ignorar sua pergunta e simplesmente me afasto.

Ele não espera por um convite meu e me segue, caminhando ao meu lado.

Ele para quando eu paro também, meus olhos em uma pilha de livros de romance. Eu costumava fantasiar com esse tipo de história quando era mais nova. Tipo... uns dois anos atrás? É engraçado eu estar falando isso, como se não tivesse apenas dezenove agora, mas parece que o início da minha adolescência aconteceu há séculos.

— Tudo bem se não quiser falar — insiste. — Só não acho que seja algo que você costuma fazer sempre, ficar chorando pelos cantos, sabe? Às vezes é bom conversar com alguém.

Isso me faz voltar o meu foco totalmente para ele. Um desconhecido que eu nunca vi na vida, mas que é bonito demais para o meu gosto, e me surpreendeu ao parecer verdadeiramente preocupado. Ele me viu chorar enquanto eu ouvia rock antigo sentada em um carpete velho. O que de pior pode acontecer?

Nunca vou vê-lo novamente, então decido apenas soltar tudo de uma vez só:

— Minha vida é uma bagunça — eu digo, sem coragem de continuar mantendo contato visual. — Quero dizer, eu sou uma bagunça. Por fora, eu sempre tento parecer feliz com a minha vida, mas na verdade eu me sinto sufocada.

Ele grunhe de leve, e então diz:

— E sobre o que você está falando exatamente?

Volto a ajeitar meus óculos antes de me virar para ele. Novamente, sinto aquele choque instantâneo quando o encaro de frente. Ele é realmente bonito.

— Eu vou te contar uma coisa. Algo que mais ninguém além de mim sabe... então, sinta-se sortudo por ser a única pessoa com quem eu compartilho.

Ele inclina a cabeça, de braços cruzados.

— Que honra.

Não deve haver mal algum, não é? Nós mal nos conhecemos. Duvido que ele venha nessa livraria outra vez depois de hoje, então não há problema se eu derramar todos os meus segredos, medos e frustrações em cima dele agora. Eu preciso desabafar.

— Você já se sentiu como se estivesse prestes a cometer o maior erro da sua vida? Mas então, você percebe que se não fizer isso vai estar cometendo um grande erro também?

— Isso envolve mais alguém?

— Sim. Quer dizer, não. Talvez. Na verdade, envolve muitas pessoas.

Ele balança a cabeça, pensativo, mas não diz nada. Eu continuo:

— Estou em um dilema aqui. Por anos, eu tive uma vida que muitos dariam o olho esquerdo para ter, mas depois de um tempo... me dei conta de que isso não é tão empolgante quanto pensei que seria. Estou prestes a ingressar numa universidade renomada e percebi que não é isso o que quero para a minha vida, mas é o que daria orgulho à minha família, e eu não quero decepcioná-los. Você sabe como me sinto?

— Não exatamente. Eu faço o que amo.

Oh, claro. É óbvio que alguém aparentemente tão decidido como ele não se permitiria ser tão covarde quanto eu.

— Invejo você.

— Não diga isso. Eu sei muito bem qual a sensação de se sentir sufocado — diz. — De tentar ser alguém que não queremos ser. Por que você simplesmente não conta a verdade a eles?

— Porque, como eu já disse, não quero decepcioná-los. Estou tão desesperada que estou confessando meus maiores medos a um estranho. Você acha que sou emocionalmente capaz de conversar sobre isso com a minha mãe?

Um leve inclinar de lábios em um sorrisinho triste me diz que ele está compadecido por mim.

— Bem, eu gostaria de ter um conselho ou palavras bonitas para te dizer a respeito disso, mas só posso te oferecer a minha compreensão. Infelizmente, não escolhemos a família que temos.

— Você tem razão. Eu me sinto como o Capitão Flecha, naquela cena em que... — Eu paro, me perguntando o que diabos estou fazendo.

— Capitão Flecha de novo, hein? — ele diz, divertido. — Você falou que não me daria spoilers.

— Desculpe. Eu meio que tenho dificuldade em expressar meus sentimentos, então sempre abuso de metáforas ou comparações pra fazer isso.

— Não estou reclamando — fala. — Faça da maneira que for mais confortável pra você.

Eu limpo minha garganta, tentando ignorar as batidas errantes do meu coração, e retomo:

— Bem, digamos que meu herói favorito passou por uma situação complicada, quando ele teve que decidir rápido se permanecia por mais tempo em um navio prestes a naufragar e tentava salvar alguns tripulantes ou se ele simplesmente saltava para o horizonte e salvava sua própria vida.

A sobrancelha com o piercing se arqueia.

— E o que ele fez, no fim das contas?

— É claro que ele decidiu simplesmente ficar e salvar a todos, e no fim deu tudo certo. Mas é aí que está o problema. Ele é um super-herói e tem o poder do protagonismo, mas eu sou desinteressante demais para ser a protagonista de qualquer história, muito menos possuo superpoderes!

Ele não diz nada logo de início. Apenas permanece calado por um momento, me observando. Quando finalmente diz algo, fico surpresa com sua resposta:

— Você tem razão quando diz que não é uma super-heroína. Nem sempre dá pra deixar todo mundo feliz. Às vezes, nós temos que ser um pouco egoístas, sabe?

Puxo a barra da minha camiseta, já com medo de perguntar, mas não resistindo:

— Então você acha que eu deveria...

— Saltar — complementa.

— Mas esse é um risco grande.

— Nascer já não é um? — rebate simplesmente. — Busque a sua felicidade.

Quando finalmente chego em casa, já é tarde o suficiente para que o almoço tenha acabado, mas cedo demais para que eu não consiga me livrar da chuva de perguntas da minha mãe.

— Evelyne, onde você esteve!? — ela questiona. — Fiquei preocupada quando você saiu sem sequer dizer aonde ia.

— Tia Jodie já foi embora?

— Sim. Ela mandou um beijo pra você.

Me controlo para não revirar os olhos. Que ela vá a merda com seus beijos.

Tia Jodie foi o principal motivo de eu ter sumido antes mesmo do almoço estar na mesa. Ela tem a mania irritante de sempre me comparar com Cassidy, a filha do meu padrasto, e eu não suporto seus olhares julgadores toda vez que me vê numa roupa de lojas de departamento.

— Desculpe pelo sumiço. Passei na livraria e acabei perdendo a noção do tempo — respondo.

— Não vou reclamar porque quero que aproveite bastante seus hobbies antes de ingressar na Joe Bixby — diz minha mãe. — Você não vai ter tanto tempo para suas bobagens quando começar na faculdade, querida.

Uma bola de ferro se assenta em minhas costas, fazendo meus ombros caírem em puro desânimo.

Como explicar para ela que livros e desenho não são apenas o meu hobby, ou uma bobagem, mas o que eu gostaria de fazer pelo resto da minha vida? Como explicar que, apesar de não detestar o piano, eu acho tudo isso muito chato e só me esforço tanto para agradá-la? Não é fácil ser aberta sobre isso quando você passou a vida inteira escutando o quanto Joe Bixby foi importante na vida da sua família, o quão orgulhosa sua mãe é por ter participado das Ravens, uma das irmandades mais requisitadas da universidade, e que sempre foi seu sonho que suas gerações futuras seguissem os mesmos passos que ela.

Minha mãe é uma grande pianista hoje em dia. É percussionista na Orquestra Sinfônica de Trempton City, além de ter sido professora de música por muito tempo. Ela é a definição de orgulho para toda sua família, inclusive para mim. Desde muito tempo, Dionne Dixon — atualmente Dionne Briggs — foi minha maior inspiração de vida, e é por esse motivo que acho tão difícil decepcioná-la e dizer que não quero seguir os mesmos passos que ela.

Um barulho de salto alto vindo das escadas me tira de meus pensamentos tristes. Apenas uma pessoa nessa casa além de Dionne andaria de saltos dentro de casa, e ela é Cassidy, minha meia-irmã.

— Finalmente, você chegou — ela diz, entrando em meu campo de visão. — Viu, Di? Eu falei pra você que ela ainda estava viva.

Como sempre, Cassidy está incrível. Suas roupas são da moda; os cabelos, que agora estão tingidos em um tom de mel, estão presos em um rabo de cavalo bem-feito. Ela é sempre tão bonita. Se não levarmos em consideração a pele negra e os longos cabelos ondulados, nós não somos em nada parecidas. Cassidy é um ano mais velha que eu, consequentemente está um ano adiantada na universidade. É uma linda flor delicada, uma dama feita para bolsas Gucci e chás da tarde. Eu sou uma bagunça que prefere passar o fim de semana enfiada numa mesa de RPG online usando meias e pijamas desgastados enquanto como o maior pacote de Doritos que encontrar. Ela gosta de música clássica e nasceu para o violino, um talento herdado de seu pai e atual regente da Orquestra Sinfônica de Trempton City. Se isso não for o bastante, ela foi selecionada para concorrer no festival anual de música do Joe Bixby e convidada a participar das Ravens — a irmandade requisitada da qual mencionei — quase que instantaneamente. Eu não esperaria nada diferente de alguém tão popular quanto Cass. Ela é perfeita e tudo o que eu não consigo — ou faço questão de — ser. Mas antes que me levem a mal, eu não tenho inveja dela. Gosto muito de Cass e a considero uma irmã, mas é muito difícil não achar que devo me comparar com ela o tempo todo quando as pessoas fazem isso sem esforço algum.

“Você deveria ser como Cass” disse tia Jodie hoje cedo, quando tentei explicar a ela que não precisava de um vestido de dois mil dólares porque certamente não o usaria.

“Tem certeza de que você é a filha de sangue?” ela rebateu um segundo depois, rindo feito uma gralha irritante, então foi naquele momento que eu decidi me esgueirar para fora de casa, até que estivesse esparramada num carpete velho e fedorento da Coelho Branco.

Sou patética, eu sei, mas qual o problema das pessoas em lhe dar opiniões que você não pediu? Seria tão mais fácil se eu fosse mais decidida e menos medrosa e simplesmente mandasse todos eles irem à merda.

Volto a me lembrar do cara da livraria. Ele, certamente, é o tipo de pessoa que mandaria minha tia ir à merda. Eu deveria seguir os seus conselhos. Arrancar esse band-aid e simplesmente me ver livre de toda essa pressão. Qual seria a reação deles se eu simplesmente dissesse que não quero ir para o Joe Bixby, faltando apenas algumas horas para, finalmente, assumir a vaga que muitas pessoas nesta cidade dariam um órgão para ter?

Basta dizer. São apenas algumas palavras. “Não quero mais”. “Isso não é para mim”. “Foda-se toda essa merda, estou fora”.

— Eu tenho algo para dizer — solto, de repente, surpreendendo até a mim mesma. Minha respiração começa a se acelerar. Não sei exatamente o que estou prestes a fazer, mas com certeza estou buscando coragem para isso.

— Sim, querida? — diz minha mãe.

Olho para a mulher que me deu a vida e simplesmente travo. Sua aparência é impecável. Seu terninho branco e cabelos curtos dão um ar elegante e moderno, a maquiagem é nude, com uma sombra dourada e discreta, reluzindo muito bem contra sua pele marrom escuro. Mesmo depois dos anos que se passaram, ela ainda é a mulher mais bonita que eu já vi. Por mais que eu odeie ser comparada a ela ou saber que as pessoas esperam que eu seja ao menos metade do que Dionne já foi, eu confesso que sinto uma pontada de orgulho quando penso que sou filha de uma das maiores.

— Eu... eu quero dizer que... — Este seria o momento certo de dizer a eles que não quero estudar piano. Não quero ser uma aluna do Joe Bixby, muito menos uma aspirante a socialite. Quero trabalhar com desenhos e vender a minha arte, e mesmo que eu quebre a cara mais tarde, serei uma pessoa falida e feliz, porque vou continuar tentando seguir meu sonho.

O bolo na minha garganta fica mais espesso, sinto minha saliva grossa, e tenho dificuldade para engolir. Minhas mãos suam e eu aperto a bainha da minha blusa, procurando um meio de não surtar.

Preciso pular deste navio. Preciso ser egoísta ao menos uma vez na vida e me tornar minha própria heroína.

Vamos lá, Evelyne, são apenas algumas palavras.

— Eve...? — minha mãe incita, os olhos começando a ficar assustados.

— Eu... — gaguejo, sentindo minha determinação morrer.

Jesus, eu não consigo. Não consigo ser corajosa e seguir o conselho do cara da livraria.

Eu decido ficar no navio, e talvez esse tenha sido o meu primeiro erro na série de merdas que aconteceram depois.

— Eu... — minha língua congela, e então eu digo a primeira mentira que me vem à mente: — Eu acabei de ser convidada para fazer parte das Ravens, assim como Cass.

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