5 Janaína

Eu mal posso dizer como essa quinta-feira começou. Quando eu acordei, minha irmã me ignorou completamente, minha mãe brigava pelo telefone com meu pai e quando eu encostei perto, ela automaticamente desligou o telefone e sorriu, depois disso alguém pegou meu telefone e escondeu, ninguém me deixou usar a Internet, ou qualquer coisa do tipo, a televisão ficou desligada.

Eu me sentei na sala depois do café, de braços cruzados, enquanto minha mãe e irmã fingiam que nada estava acontecendo.

— Alguém sabe onde está o controle da TV? Ou pelo motivo que ela está fora da tomada? Meu telefone?

— Não é melhor explicar logo mãe? — Minha irmã se joga no sofá e coloca os pés no meu colo

Eu e Lavínia não temos segredos, ela se parece comigo, herdamos o cabelo da mamãe, ondulado, escuro e pesado, ela não gosta muito quando alguém fala da nossa semelhança, odeia ser comparada a irmã mais velha, eu particularmente não me importo. Sei que ela quer me contar algo, os olhos brilham, o que quer que seja tem a ver comigo.

— Mãe! — Lavínia grita de novo — Mãe!

— O quê!?

Mamãe aparece com o cabelo bagunçado, limpando as lágrimas dos olhos, nesses dois dias que se passaram eu descobri duas coisas sobre minha mãe, eu já imaginava que ela era sensível e extremamente sentimental, mas ela estava se mostrando muito sensível à história toda de Davi e que ela conhecia os pais dele, aparentemente amigos de ensino médio, tinham sido amigos muito próximos.

— Eu posso contar para Jana o que está acontecendo? Diz que sim.

— Eu ainda acho melhor esperar seu pai.

— Eu acho melhor me contar logo, o que pode ser tão ruim assim? Nada pode superar esses dois dias.

Mãe e Lavínia se entreolham, minha mãe consente com a cabeça, e se juntar a nós no sofá. Ela respira profundamente e sorri, segurando minha mão, parece pronta para anunciar um novo morto.

— Ontem a noite algo horrível aconteceu… — Mamãe faz uma pausa dramática — Alguém fez uma postagem como se fosse o Davi… ele… dizia que…

— Acusava você de assassinato! — arregalei os olhos enquanto Lav atropelva mamãe nas palavras — Acusava os outros que estavam com você também e tinha uma foto horrível do corpo de Davi! — Lav continua me encarando, mas não reajo — Eu vi, mainha viu, todo mundo viu, mas já tiraram do ar o post.

— Fizeram essa coisa horrível mesmo?

— Sim.

Lav tira do bolso e me entrega meu celular, ela corre para conectar a Internet e no exato momento que meu celular conecta, ele trava, encaro as duas enquanto espero que volte a funcionar, clico em uma das notificações e acabo redirecionada a uma página que diz que aquilo foi excluído, tento alguns outros e acabo na mesma. A tantas mensagens que eu mal posso pensar qual abrir primeiro, tias com quem eu quase nunca falo me mandam mensagem, foco nas quase 100 mensagens de Rafaela.

As mais recentes perguntam onde eu estou, se eu estou a ignorando, se ainda vou no enterro, subo ate as primeiras mensagens daquela sequência.

Eu espero que você não esteja dormindo. A coisa ficou louca.

JANAÍNA PELO AMOR DE DEUS OLHA ESSE CELULAR!

ESTÃO TE CHAMANDO DE ASSASSINA.

Há diversos prints, começo a baixa-los, leio o primeiro, olho para minha mãe, esperando que ela tenha uma explicação mágica para aquilo. Vejo a foto de Davi e respiro lentamente para impedir qualquer reação exagerada, a foto de Davi entra em meu coração rapidamente, volto a ler a legenda da foto.

Por que você me matou? Eu não fiz isso.

O que eu fiz para merecer isso? Eu não sei.

Não existe mais clube dos sem segredos já que você ainda não assumiu que me matou. Esse clube nunca existiu.

— Isso é um completo absurdo! O Davi morreu e agora estão brincando com a imagem dele! Ninguém tem mais respeito por nada! — Grito indignada

— Eu falei com o pai dele, ele está bastante preocupado, principalmente depois que leu aquela mensagem que mandaram para vocês, sobre o segredo da diretora. Ele já acionou a polícia.

— Isso é ótimo. — Lav diz enquanto me abraça — É claro que ninguém acredita que você é uma assassina.

— Quanto mais rápido isso for resolvido melhor. — Devolvo o abraço — Preciso falar com o pessoal…

— Deixe para depois, eles também devem estar chocados, principalmente que ainda tem o velório para ir. Ainda quer ir? — Minha mãe pergunta e apenas confirmo com a cabeça, não tem motivo para não ir

Nós continuamos com a conversa, minha mãe fala coisas sobre morte, vida e um lugar melhor, Lav diz sobre o que sua turma está pensando sobre a morte e diz que não irá conosco, eu concordo, ela ainda está no primeiro ano, com certeza não o conhecia.

As horas se passam devagar, tentei ler, assistir algo para parar de pensar em morte, perto do meio-dia tomei um banho e vesti uma blusa escura e calças. Lav bateu na porta do quarto e entrou para me dar um abraço.

— O que sua turma sabe? — Não consigo deixar de perguntar, sei que todos estão fofocando incansavelmente

— Não muito. — Ela se senta na minha cama — Estão dizendo que ele morreu na escola e que na diretoria tinha um rastro de sangue… Quem o matou mudou o corpo de lugar, é isso.

— Não tem como ele ter morrido na escola, somente nós estavamos lá, mas teve o barulho do banheiro, a bomba…

— E se tivesse alguém escondido? Alguém que queria matar e o puxou?

— Então para que tirar o corpo de dentro da escola?

— Porque foi um aluno. É o que todo mundo pensa.

Balanço a cabeça, alguem na escola seria cruel a esse ponto? Eu e Lav vamos almoçar, o almoço foi rápido e sucinto, as três da tarde resolvemos sair, fazemos uma pequena oração antes, mamãe e eu saímos sem muita pressa, preferimos ir caminhando e pelo caminho mais longo, mesmo que desse algumas voltas desnecessárias.

Quando chegamos a tantos carros que eu mal posso contar, também da para ver que tem bastante gente em volta do caixão, mamãe aperta minha mão e entramos. Consigo ver metade do terceiro C ali, os olhares se voltam para mim, mas logo voltam ao chão, minha mãe encontrou algum conhecido e parou para conversar tristemente, eu continuei e fui até o caixão. Davi estava ali, parado, de olhos fechados, cabelos bem arrumados, sublime. Fechei meus olhos enquanto estava ali, ele tinha ido para um lugar melhor, com certeza tinha. Arrastei meus pés para longe, procurando pelos pais dele, mas a única imagem que consegui focar foi a de Pedro, destruído e arrassado, como eu nunca tinha visto antes.

Ele estava em pé em um lado mais escondido, vestido de preto, com seu cabelo também escuro um pouco bagunçado, estava em uma tremedeira descomunal na tentativa de evitar chorar com o rosto e olhos vermelhos, andei até ele e pousei a mão em seu ombro, ele me olhou com tão sem vida, que cheguei a duvidar que realmente era Pedro que estava ali.

— Porque a gente não se senta? — Ia ser idiota se eu perguntasse se estava tudo bem — Quer água? Alguma coisa?

— Você pode reviver os mortos? — As palavras saltaram da boca dele em sussurro — Algum de vocês aqui pode? Traze-lo de volta… Vocês são cruéis, vieram todos…

Foi então que eu notei, de onde Pedro estava ele tinha uma visão privilegiada do lugar, e principalmente dos outros que eu ainda não tinha notado. Emanuel mantinha o olhar no chão e as mãos enfiadas nos bolsos da calças jeans, estava ao lado de uma mulher bonita, ela mexia incessantemente no celular, seu cabelo alisado estava preso em rabo de cavalo, a pele negra contrastava bem com o vestido vinho que ela usava; Miguel estava sozinho de jeans e uma blusa azul escura sentado em uma cadeira encarando o caixão fervorosamente, ele deixou um suspiro escapar e esfregou os olhos; Ísis estava de mãos dadas a Luís que conversava baixinho com outro rapaz, meu olhar se cruza com o de Ísis, a tensão, talvez um pouco de medo, e um fogo, lágrimas caem dos olhos dela, desvio o olhar de volta para Pedro.

— Vieram fazer essa cena? — Pedro pergunta

— O quê? — O encaro

— Vocês são um bando de babacas. — Pedro fala para mim

Sou pega de surpresa, ele acabou de usar a palavra babaca? Não qualquer xingamento horrível e menosprezador? É, os ânimos estão realmente diferentes.

— Pedro…

— O quê!? — Ele praticamente grita fazendo todos olharem para nós, os olhos dele se cravam nos meus e ele começa a sair do velório

Eu vou atrás, e já na calçada da capela, ele se vira bruscamente, seria ameaçador se a cara dele não fosse a mais triste do mundo.

— Porra! Vai me seguir agora? Vocês mataram meu melhor amigo! Vocês o abriram no meio e vão ficar fazendo essa ceninha? Pobres coitados assassinos, assumam.

— Ninguém o machucou. — A voz de Emanuel é serena — Nenhum de nos tocou nele!

— Parem de mentir! Assumam a responsabilidade do que fizeram! — Ele balança o dedo, o apontando para nós

— Estamos falando a verdade. — Protesto incansavelmente

— Não estão! Alguém desligou a luz e nesse exato momento que ele sumiu, evaporou sem barulho? Nem tentem falar que foi uma queda de energia, eu sei que não foi.

— Por que íamos fazer isso? — Digo, me sinto observada, não pelos olhares dos que passam na rua, algo mais estranho

— Eu vi vocês contando por aí, tentando livrar suas caras, é sério mesmo que iam colocar uma bomba de fumaça na escola? A culpa é de vocês!

— Você não tem argumentos para acusar! Respeita o momento! — Pede Emanuel

— E o que você sabe sobre enterrar alguém? — Aquela frase é tão carregada que me estilhaça por dentro, Pedro não consegue evitar e se debulha em lágrimas

— E o que você sabe? — Devolve Emanuel com raiva

— O que eu sei!? Realmente quer que eu diga? Quer que eu fale sobre o fato do Davi estar morto aos dezessete anos? Ou quer que eu fale sobre o jeito que foi contado? Ou melhor, como a mãe dele ficou o esperando, a noite toda, a manhã toda e descobriu por um e-mail que ele estava jogado em uma praça! Como não é culpa de vocês?

— Apenas não é! — Emanuel grita, voltando para o velório

Eu e Pedro nós encaramos, fico na dúvida se devo andar até ele ou dar as costas, mas tanto me aproximar, talvez acalma-lo seja o melhor a se fazer, mas ele me encarar em ódio e aponta o dedo para minha cara.

— Vai falar alguma coisa ou só me olhar com essa cara de cumplice de assassinato?

Estou prestes a responder, mas um homem aparece, é alto e usa um terno, seu cabelo branco está bem penteado e o olhar é frio, ele não troca palavras com nenhum de nós dois, apenas pega Pedro pelo braço e o arrasta para dentro de um carro chique parado ali perto, volto para o velório, para o lugar que estava antes e vendo todos dali puxo o celular, abrindo o print do post de Davi.

Por que você me matou?

O que eu fiz para merecer isso?

Não existe mais clube dos sem segredos já que você ainda não assumiu que me matou.

Chega a ser mórbido, mas a algo que só me chama atenção agora. O Clube dos sem segredos, ninguém tinha escutado isso além de nós, não sei se eles contaram um ponto tão insignificante da nossa conversa a alguém. Quem estava mandando as mensagens e fazendo esses posts estava na biblioteca, e até então só duas opções faziam sentido, ou um de nós é o culpado, ou havia mais alguém na biblioteca. Guardo o celular, me recostando na parede, Miguel se levanta e anda até mim, parando ao meu lado, ele esfrega os olhos impedindo que as lágrimas desçam.

— Oi... — Digo

— O que foi aquilo lá fora? — Ele me olha

— Pedro acha que fomos nós. Acha que fizemos essa covardia com o Davi… — Tento não chorar — Pelo visto os dois eram grandes amigos.

O choro alto de uma senhora que se debruça no caixão nos cala por alguns instantes, eu choro e Miguel segura minha mão de um jeito delicado. A mulher pede o filho de volta.

— Precisam pegar quem fez isso. Urgentemente. — Miguel diz sem soltar minha mão — Eu vou pegar água para você.

Ele some um pouco enquanto tento me acalmar, e volta com um copo de água na mão, além da companhia de Emanuel e Ísis, tremendo bebo a água. Ísis me abraça, enquanto Emanuel se escora em Miguel, posso ver as pessoas olhando para nós, posso sentir cada parte gritante do olhar deles dizendo que somos culpados, mas poderia ter sido qualquer um além de nós, não poderia?

— Vamos lá para fora. — Finalmente Emanuel sugere — Minha mãe está me vigiando.

— Por que? — Pergunto

— A escola entrou em contato com ela, depois do post, minha mãe vai advogar defendendo a escola, mesmo que não tenha nenhum processo correndo ainda… E é claro, somos suspeitos depois daquele post.

Do lado de fora da capela, nos sentamos em um banquinho, ficamos em silêncio por um tempo, até que resolvo perguntar.

— Desculpem, mas eu preciso perguntar. Algum de vocês contou sobre o clube?

— Que clube? — Eles me encaram de forma estranha

— O clube dos sem segredos.

Primeiro param para pensar, Ísis franze o cenho se esforçando para lembrar, Miguel também vasculha em sua mente, Emanuel é o único que se lembra.

— Que você sugeriu… Como brincadeira?

— Sim... É que estava post, sobre não existir mais o clube dos sem segredos, e isso foi falado quando estávamos somente nós cinco na biblioteca.

— É verdade… — Ísis cruza os braços

— Alguém falou alguma coisa?

— Não me lembro, principalmente aqui e agora. — Miguel diz

— Sim, mas por que exatamente essa parte? — Ísis se inclina para frente, nos fazemos o mesmo — Alguém está tentando colocar a culpa na gente, é óbvio, então temos que nos manter firmes. Não levem provocações a sério, só o tanto de gente que falou coisa comigo hoje, não dá para entender.

— Vou falar com minha mãe sobre isso que a Janaína trouxe. — Todos concordamos

— Vamos… — Miguel fala tímido — Vamos pensar isso mais tarde, ok? Em respeito ao Davi.

— Sim... — Emanuel encara a mãe que está parada na porta da capela — Acho melhor pararmos por aqui…

— Ok. — Ísis se levanta — Mas, porque o Davi? Isso não foi um assalto, nem nada do tipo… Apenas não sei!

— Temos que ficar de olho. — Digo inquieta

Ísis volta para dentro abraçando Luís logo de cara, Emanuel faz o mesmo e vai com a mãe até a parte dos bebedouros, Miguel demora um pouco ao meu lado, e apenas com um sorriso sem mostrar os dentes, ele volta para o enterro. Minha mente começa a pensar em várias coisas. Tento me lembrar de algum barulho, algo estranho, o barulho que vinha do banheiro, o barulho da bomba de fumaça… Por que o Davi, porquê?

Vejo minha mãe conversar com mais adultos que não conheço, entre eles a mãe de Davi, penso se devo ou não ir até elas, e antes que decida minha mãe me chama, abraço os pais de Davi intensamente, não consigo controlar as lágrimas.

— Eu sinto muito. Muito mesmo. — Digo em meio a uma crise de choro — Davi era legal, a gente achou que ele tinha saído… Ele ia ver o Pedro…

— Eu sei… — A mãe dele apertou o abraço, me senti acolhida e quebrada ao mesmo tempo

Não consigo parar de tremer, minha mãe me leva de volta para um canto e me ajuda a respirar melhor, tento limpar minha mente, mas a cada vez que fico mais tranquila, as coisas não parecem ter sentido. Se Davi fez algo, por que ser pego na escola? Se ele não fez nada, por que ser morto? Quem era Davi exatamente?

É então que minha mente me sugere algo completamente duvidoso, mas até então, eu só conheço uma única pessoa que se disse amigo do Davi, uma única pessoa que parecia conheço-lo verdadeiramente, eu teria que ir interrogar Pedro.

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