Tobias ajustou a gola de sua camisa impecavelmente branca, o reflexo no espelho devolvendo a imagem de um homem que parecia ter tudo. Um cirurgião plástico renomado, com uma clínica próspera no coração da cidade, e prestes a se casar com Anny, uma mulher considerada uma das mais belas e cobiçadas socialites. O casamento, marcado para dali a poucas semanas, prometia ser o evento do ano, selando a união de dois mundos que, na superfície, pareciam perfeitamente alinhados. Dinheiro, status, beleza – o pacote completo. Tobias, aos trinta e poucos anos, sentia que finalmente estava concretizando mais um sucesso em sua vida meticulosamente planejada.
Ele sorriu para o espelho, um sorriso que não alcançava completamente seus olhos. Havia uma leve apreensão. Não nervosismo de noivo, mas uma intuição silenciosa, um pequeno nó no estômago que ele vinha ignorando nas últimas semanas, atribuindo ao estresse pré-casamento. Anny era linda, charmosa, e se encaixava perfeitamente no que a sociedade esperava de sua noiva. Mas havia algo... uma frieza, talvez? Uma falta de conexão genuína que ele justificava como sendo apenas o jeito dela. Ela não era de demonstrações efusivas de carinho, preferia gestos grandiosos, joias caras e eventos sociais. E Tobias, imerso em sua carreira, aceitou isso como a dinâmica do relacionamento deles. Naquela tarde específica, ele estava no local da cerimônia, um salão elegante e suntuoso, para uma última revisão dos arranjos florais e do posicionamento do altar. Anny estava em uma sala adjacente, que deveria ser seu camarim no grande dia, acompanhada de algumas amigas para discutir os últimos detalhes do vestido e da decoração. Tobias finalizou a conversa com a florista e decidiu ir até Anny para cumprimentá-la e talvez roubar um beijo rápido, apesar de saber que ela não gostava de ser "bagunçada" antes da hora. Ao se aproximar da porta do camarim, ouviu risadas altas e o som da voz de Anny, clara e estridente, falando. Ele hesitou por um momento, pensando em bater, mas algo na intensidade da conversa o fez parar. As palavras flutuaram pela fresta da porta semiaberta, chocando-se contra ele como pedras frias. "... mas é claro que eu vou casar com o Tobias! Você viu o tamanho da clínica dele? E os contatos? Aquela cobertura no centro? Menina, meu futuro está garantido!" A risada dela ecoou novamente, acompanhada pelas das amigas. O sorriso de Tobias congelou. O nó em seu estômago apertou violentamente. Ele se encostou na parede fria do corredor, incapaz de se mover. Uma das amigas respondeu, a voz um pouco mais baixa, mas ainda audível: "Mas Anny, e o Marcos? Você não disse que o amava?" Houve um silêncio breve, seguido por um suspiro teatral de Anny. "Ah, o Marcos... paixãozinha, sabe? Adoro a emoção, os encontros escondidos... mas amar? Amor não paga as contas, querida! Amor não compra bolsa de grife, nem garante um lugar na capa das revistas. O Tobias... ele é o investimento certo. É a segurança que eu preciso. E ele é tão... ingênuo. Acha mesmo que eu estou apaixonada por ele. É hilário!" Outra amiga riu. "Então é só pelo dinheiro e status, assuma!" "Exatamente! Querem um brinde à minha inteligência financeira? Vou casar com o Tobias, pegar tudo que puder, e depois... bem, depois a gente vê. Marcos pode ser divertido por fora, mas o Tobias é a mina de ouro. Ele me dá a vida que eu mereço. E pensar que ele caiu direitinho na minha teia!" O mundo de Tobias desabou. Não foi um terremoto estrondoso, mas um colapreço silencioso e interno. Cada palavra de Anny, cada risada de suas amigas, perfurava a imagem que ele tinha construído daquela relação. Ingênuo. Ele, Tobias, o cirurgião plástico bem-sucedido, o homem que controlava cada aspecto de sua vida, era um ingênuo. Uma mina de ouro a ser explorada. Ele não sentiu raiva de imediato. Sentiu-se oco. Traído em sua essência mais profunda. A dor era física, um soco na boca do estômago, a respiração curta e difícil. O suor frio brotou em sua testa. A imagem de Anny, antes bela e desejáv transformou-se em algo grotesco em sua mente, uma caricatura de ambição fria e calculista. Sem fazer barulho, Tobias se afastou da porta. Não havia necessidade de confrontação. Não havia mais nada a dizer. A verdade, feia e cruel, tinha sido entregue a ele sem filtros, vinda diretamente da boca da mulher com quem ele planejava passar o resto da vida. O casamento, a festa, os planos de futuro – tudo virou pó em um instante. Ele caminhou pelo corredor elegantemente decorado como um autômato. As flores, as toalhas de mesa finas, os lustres de cristal – tudo parecia uma piada de mau gosto. Ele precisava sair dali. Precisava de ar. Precisava de um lugar onde pudesse absorver a magnitude daquela decepção. Seu carro parecia longe. As ruas da cidade pareciam embaçadas enquanto ele dirigia sem rumo certo. A cada semáforo, a cena se repetia em sua mente: Anny rindo, chamando-o de ingênuo, falando sobre Marcos e dinheiro. O volante parecia escorregadio em suas mãos suadas. Ele estacionou o carro de qualquer jeito em uma rua movimentada e saiu, os pés o levando quase por instinto. Não queria ir para casa, o apartamento que ele e Anny haviam decorado juntos. Queria sumir, desaparecer. Onde ir? Um lugar barulhento, talvez, para abafar os ecos das palavras dela em sua cabeça. Ou um lugar escuro, onde pudesse se esconder Encontrou um bar. Não um dos lugares chiques que costumava frequentar para encontros de negócios ou jantares sociais. Era um bar de esquina, com pouca luz, cheiro de bebida e fumaça, e a música alta o suficiente para ser intrusiva, mas não a ponto de ser dançante. Perfeito. Um lugar para se afogar. Ele se sentou em um banco no balcão, a madeira fria sob seus cotovelos. Pediu a bebida mais forte que lhe veio à mente. Uma dose dupla de uísque. O garçom o serviu sem fazer perguntas, acostumado com a solidão e o sofrimento disfarçado dos clientes que buscavam refúgio ali. Tobias segurou o copo, sentindo o calor e o peso. Olhou para o líquido âmbar, seu próprio reflexo distorcido na superfície. Lembrou-se da aliança que usava – a verdadeira aliança de noivado que ele havia escolhido com tanto cuidado, um símbolo de um futuro que ele acreditava ser real. Parecia pesada e falsa em seu dedo agora. Aquele metal frio representava uma mentira elaborada. Levou o copo à boca e bebeu em um único gole. O álcool queimou sua garganta, uma dor física bem-vinda que distraiu momentaneamente a dor emocional. Ele fechou os olhos por um instante, respirando fundo, tentando controlar o tremor em suas mãos. Ingênuo. A palavra zumbia em seus ouvidos. Como ele pôde ser tão cego? Como não viu os sinais? Talvez ele não quisesse ver. Estava tão focado em construir a vida perfeita, a imagem perfeita, que se esqueceu de olhar para a substância, para a verdade por trás dos sorrisos e das promessas. Outro copo. E mais um. O barulho ao redor começou a diminuir, substituído por um zumbido em sua própria cabeça. A tristeza profunda começou a se misturar com uma raiva fria, uma revolta contra Anny, contra as amigas dela, contra a própria situação. Ele tinha sido usado. Manipulado. E a humilhação era quase tão dolorosa quanto a traição. O barman o observava discretamente, um olhar de quem já viu aquilo muitas vezes. Tobias não se importou. Ele estava ali para esquecer, para entorpecer a dor, para se afastar o máximo possível do homem que, poucas horas antes, acreditava estar no caminho da felicidade. O futuro que ele planejou havia sido destruído, e ele não tinha ideia de como começar a reconstruir, ou se ele sequer queria tentar. A única certeza era que algo dentro dele havia mudado para sempre naquela tarde, uma mudança que, sem que ele soubesse ainda, acabaria por levá-lo a caminhos inesperados e a encontros que transformariam sua vida de maneiras que ele nunca poderia ter imaginado. A aliança em seu dedo parecia queimar. Ele não conseguia tirá-la. Não ainda. Era um lembrete amargo da farsa em que viveu. Olhando ao redor do bar, para os rostos desconhecidos e as vidas solitárias, Tobias se sentiu mais perdido do que nunca.Dois anos se passaram. A dor aguda da traição de Anny havia se transformado em uma cicatriz profunda, enterrada sob camadas de sucesso profissional e um cinismo cuidadosamente cultivado. Tobias não era mais o homem ingênuo e confiante que acreditava em contos de fadas de casamentos perfeitos. Ele havia aprendido, da forma mais cruel, que relacionamentos podiam ser transações, e sentimentos, meras ferramentas de manipulação. Ele estava sentado no mesmo tipo de bar escuro e barulhento que se tornou seu refúgio na noite em que seu mundo ruiu. Não era o mesmo bar de dois anos atrás, mas a atmosfera era a mesma: discreta, com a penumbra servindo como um manto de anonimato para almas solitárias ou simplesmente em busca de algo passageiro. Tobias frequentava vários desses lugares pela cidade, misturando-se à multidão, um lobo em pele de cordeiro. Seus dedos tamborilavam no balcão de madeira polida, o tilintar suave do gelo em seu copo de uísque ecoando o ritmo lento de sua respiração
A rotina de encontros casuais, antes um refúgio seguro para Tobias, começava a pesar. Dois anos no jogo da aliança falsa haviam entorpecido parte da dor, mas também o haviam deixado com uma sensação persistente de vazio. Ele era procurado, sim, mas nunca realmente encontrado. Desejado, mas nunca verdadeiramente conhecido. A solidão, antes mantida à distância pela agitação das noites, parecia agora espreitar nas frestas. Nessa noite, ele decidiu variar. Em vez de ir sozinho para um dos seus bares habituais, combinou de sair com Niran, seu melhor amigo de longa data. Niran era um advogado com um senso de humor afiado e uma visão de mundo que, muitas vezes, servia como um contraponto necessário para o cinismo de Tobias. Ele sabia da história com Anny, embora Tobias não entrasse em detalhes, e Niran respeitava o espaço do amigo, oferecendo companhia e distração quando percebia que Tobias precisava. Eles escolheram um bar diferente naquela noite, um pouco mais animado, com uma band
A luz da manhã filtrava suavemente pelas cortinas entreabertas do quarto de Kael, pintando o ambiente com tons dourados e preguiçosos. Tobias acordou sentindo um calor agradável, o peso confortável do corpo de Kael ao seu lado, a respiração suave na nuca. Era uma sensação de paz e contentamento que ele não experimentava há muito, muito tempo. Contrastava bruscamente com as manhãs solitárias e apressadas que se seguiram aos seus encontros casuais. Com Kael, a noite anterior havia sido mais do que física; houve uma conexão, uma leveza e uma sinceridade que o tocaram profundamente. Ele se virou com cuidado para encarar Kael, que ainda dormia, o rosto relaxado e bonito. Um leve sorriso se formou nos lábios de Tobias. Talvez Niran estivesse certo. Talvez ele estivesse pronto para receber algo novamente. Kael despertou lentamente, seus olhos encontrando os de Tobias. Um sorriso genuíno e caloroso iluminou seu rosto. "Bom dia", ele sussurrou, a voz um pouco rouca pelo sono. "Bom dia
A manhã seguinte ao desastre com Kael foi, sem dúvida, uma das piores na vida de Tobias desde a traição de Anny. Ele chegou à clínica com a aparência quebrado, os olhos fundos pela noite mal dormida, as roupas um pouco amarrotadas pela pressa de se vestir e sair do apartamento de Kael. O brilho usual de sua persona pública estava apagado, substituído por uma aura de desespero e confusão. O consultório de Tobias, geralmente um santuário de ordem e perfeição asséptica, parecia alheio ao caos que fervilhava dentro dele. Zenon, seu assistente por cinco anos, estava na recepção, organizando a agenda do dia com sua eficiência habitual. Zenon era o oposto de Tobias em muitos aspectos: calmo, centrado, com uma força silenciosa que transparecia em sua postura ereta e olhar atento. Ele usava óculos que descansavam na ponta do nariz quando estava concentrado, e suas mãos fortes e ágeis se moviam com precisão. Zenon era mais do que um assistente; ele era o braço direito de Tobias, o c
O silêncio na sala de Tobias na clínica era denso, quebrado apenas pelo tique-taque de um relógio de parede e pela respiração pesada de Tobias. Ele ainda segurava o telefone, o olhar fixo em Zenon, que o encarava com uma expressão que misturava confusão, alerta e uma boa dose de ceticismo. A demanda de Kael ecoava na mente de Tobias: "me faça conhecer seu ex-parceiro". A impossibilidade da situação era gritante, mas a esperança de não perder Kael era ainda mais forte. "Zenon...", a voz de Tobias era um sussurro rouco. "Você... você ouviu?" Zenon assentiu lentamente, seus olhos por trás dos óculos não desviando do rosto pálido de Tobias. "Ouvi, Tobi. Ele quer conhecer seu 'ex-parceiro'. A pessoa com quem você 'fingiu' estar casado... usando a aliança." Zenon pausou, a compreensão total do absurdo atingindo-o. Seus olhos se arregalaram levemente. "Você não está pensando que...?" Tobias deu um passo à frente, estendendo as mãos em um gesto de súplica. "Você é a única pessoa que s
A segunda-feira após a "proposta" de Tobias a Zenon amanheceu com uma mistura de ansiedade e determinação no ar. Tobias estava estranhamente eufórico, impulsionado pela pequena faísca de esperança reacendida com Kael e pela (relutante) aceitação de Zenon em participar da farsa. Zenon, por outro lado, parecia ter aceitado seu destino com uma resignação sombria, mas com a seriedade e o pragmatismo que o caracterizavam. Se ele tinha que fingir ser um ex-parceiro, ele faria direito. A primeira ordem do dia, segundo Tobias, era garantir que Zenon causasse a "melhor impressão" em Kael. "Você tem que parecer elegante, sofisticado, o tipo de cara que eu estaria 'deixando' para estar com ele", Tobias explicou no carro a caminho de um shopping de luxo. Zenon apenas revirou os olhos por trás dos óculos, mas não argumentou. Ele sabia que a credibilidade da mentira dependia de todos os detalhes. Eles passaram a manhã em lojas de grife. Tobias, com seu olho clínico (e seu cartão de crédito)
A manhã seguinte ao jantar desastroso (e revelador) com Kael encontrou Tobias em um estado de ansiedade febril. A ideia de ter "dois filhos" pairava sobre ele como uma nuvem carregada de chuva. A promessa impulsiva de Kael em querer conhecê-los significava que a farsa precisava de mais do que uma narrativa; precisava de rostos, vozes, a prova viva da mentira. A única solução, por mais absurda e arriscada que fosse, envolvia os sobrinhos de Zenon, Jade e Sud. Tobias ligou para Zenon assim que chegou à clínica, pulando qualquer formalidade. "Zenon, precisamos trazer os meninos. Hoje." Do outro lado da linha, Zenon suspirou. "Eu imaginei. Tobi, tem certeza disso? Envolver as crianças... é um passo a mais na loucura." "Não temos escolha!", Tobias respondeu, a voz tensa. "Kael quer conhecê-los. E rápido. É a única maneira de sustentar essa nova camada da mentira. Por favor, Zenon. É pela causa... pela causa do Kael. E agora pela causa de não sermos descobertos." Zenon hesitou
O caos pós-anúncio da "viagem em família" na loja de brinquedos atingiu um novo patamar. Sud, ainda eufórico com a promessa da praia, rapidamente esqueceu a viagem anteriormente cancelada e se concentrou no presente: um paraíso de brinquedos à sua disposição, com "Papai Tobias" pagando. Jade, sempre estratégica, aproveitou a oportunidade de ouro para garantir seus "pagamentos" adiantados, além das aulas de balé.Enquanto Tobias, Zenon e Kael caminhavam pelos corredores coloridos, Jade e Sud agiram com a precisão de pequenos predadores de shopping. Eles apontavam para brinquedos, corriam de um lado para o outro, faziam exigências com vozes agudas e inegavelmente fofas."Papai Tobi, olha esse robô gigante! Eu preciso dele pra minha coleção!", Sud exclamou, puxando a calça de Tobias."E eu, Papai Tobias, preciso daquela casa de bonecas nova. É pra 'desenvolver minha imaginação' para o balé, sabe?", Jade acrescentou, com um sorriso inocente que não enganou Zenon nem por um segundo.Tobias